sábado, 16 de agosto de 2014

PERGUNTAS PARA O BRASIL - SOBRE FORMAÇÃO PSICANALITICA OCAL




1. A ti te parece que o tripé formativo do psicanalista – análise didática, supervisão e seminários teóricos – segue tendo vigência? Pensas que deveria sofrer modificações ou acréscimos? Nesse caso, quais seriam?

 Fernando Rocha:
 A formação do analista baseada nos três elementos do tripé, a meu ver, continua válida. No entanto, o que importa não é somente o aspecto formal, mas sobretudo, a maneira como estes três pilares são realizados numa formação; ou seja, o que importa é a maneira como este tripé responde àquilo que é propriamente psicanalítico, ajudando o candidato a tornar-se apto a ocupar o “lugar de analista”.
            Foi no segundo Congresso Internacional em Nuremberg, em 1910, que se deu a conhecer os problemas da organização psicanalítica. A Psicanálise produzira uma linguagem própria, um novo universo de pensamento, e mobilizara vários campos de conhecimento. A idéia de Freud era a de organizar o que fosse  psicanalítico, começando-se  assim a pensar quais as condições que deveriam ser transmitidas a todos os candidatos a psicanalista. Foi em torno disso que começa a história da formação, com suas bases na análise pessoal (chamada de didática), supervisão e aprendizado do saber teórico. Chegou-se, então, a uma discrepância que até hoje enfrentamos: o que a psicanálise se propõe enquanto processo e o que ela é enquanto instituição.
Se, por definição, a psicanálise quebra com qualquer ‘estatuição’ exata, essa ordenação na formação do analista pode ser uma espécie de violência, de redução contra o que é psicanalítico. Esse é um impasse, um paradoxo, com o qual se defronta uma formação psicanalítica. Enquanto a instituição tem regras estatuídas e precisa delas inclusive para ser uma instituição, a análise é a derrubada de ordenações exatas, é a tentativa através da regra fundamental, de pesquisar o desejo. É, portanto, fundamental que a sociedade de psicanálise se dê conta e não fique cega a essa dialética entre o “instituinte e o instituído”.
            Neste sentido, é interessante ressaltar que  Freud, ao introduzir a noção de formação em psicanálise, empregou o termo Ausbildung, e o fez ressaltando uma concepção de formação que conduzisse a uma prática de autocrítica, de interrogação, em oposição à noção de modelo. Trata-se da possibilidade de interrogar-se, principalmente no que se refere ao trabalho empreendido com o paciente. Assim, as acepções depreendidas do termo Ausbildung possibilitam vislumbrar o papel fundamental que a análise pessoal, a supervisão e os seminários teóricos podem adquirir na formação psicanalítica. É neste sentido que aparece toda a importância do que se entende pelo  termo formação.
            Quando o ato de formar e educar atrela-se ao sentido de modelar, prevalece uma perspectiva de formação que visa adaptar ou adequar,distanciando-se do que se propõe uma formação psicanalítica. Entretanto, outras concepções abordam a ação de formar ou educar como práticas que preparam o sujeito para lidar com o novo, o imprevisível, entendendo que há, nesse processo, uma implicação com a “tarefa de renovar o mundo”, ou seja, uma formação ou educação apoiada na criatividade.
Delineiam-se, então, duas perspectivas opostas quanto ao ato de formar: uma, em que a formação, restringindo-se a um ato informativo, sem a preocupação de desenvolver uma capacidade crítica, visa modelar o sujeito ao já existente; outra que, percebida em sua globalidade, transcende a informação ou mesmo o conhecimento, realçando que a importante tarefa da formação é a de conduzir o sujeito para a “emancipação” e não para a “adaptação” (Adorno, 1995)[1].

2. Crês que independizar a análise pessoal dos Institutos de formação poderia favorecer a formação de analistas mais emancipados, criativos e críticos?


Fernando Rocha:
Sim, mas não imuniza, como uma vacina, contra a não emancipação, a falta de criatividade e de auto-criltica. Mas, se a análise pessoal é concebida como sendo o fundamento  da identidade do futuro analista, a independência entre análise pessoal do candidato e a instituição, é uma proposta que pode indicar a preocupação de proteger a análise das influências da Instituição.
         Na Sociedade Psicanalítica de Paris, onde fiz minha formação (de 1969 a 1979), esta independência foi uma conquista e achei a experiência válida. Com o propósito de proteger a análise pessoal do candidato, em 1970 foi abandonada a análise didática, possibilitando que o desejo de tornar-se analista pudesse ser realmente analisado, não sendo confirmado por antecipação. Para a S.P.P., "qualificar uma análise como didática lhe impõe um objetivo que anula a sua especificidade". Com esses procedimentos, a S.P.P. assumia que a análise didática não era a melhor solução nem para se formar um analista nem para evitar “candidatos conformistas, não criativos, instalados em uma repetição mortífera da mesmice[2].
Valorizando um percurso pouco diretivo de formação, a S.P.P incentiva a emergência de estilos variados e o desenvolvimento da subjetivação e da identidade própria de cada um. A formação na S.P.P pretende favorecer a “diversidade, a autenticidade e a responsabilidade”.

  1. Como se pode evitar o doutrinamento teórico nas supervisões?

         Fernando Rocha:
 Vai depender do posicionamento ético do supervisor. Durante o exercício  de sua clínica, o analista em formação, em análise ou em supervisão, estará irremediavelmente sozinho com o seu analisando; é pois o responsável pelos seus atos analíticos. Da solidão, ao longo do processo analítico, emergem incertezas e dúvidas que colocam à prova o seu narcisismo. A inevitabilidade dessa situação lança-o em busca de  certezas ou garantias, seja através de um saber teórico, seja através de um saber de outrem, a fim de obter respostas.
 Freud, em A dinâmica da transferência (1912),  nos chama a atenção para o fato de que o fenômeno transferencial instaura-se de forma mais intensa no sujeito submetido à análise do que naquele que não o está. Com freqüência, ao iniciar  seu primeiro trabalho clínico, o analista em formação está ainda em análise. Esta simultaneidade de papéis provoca intensa ativação de suas vivências inconscientes. Desse modo, se é fundamental que o analista ocupe a posição de suporte, de receptáculo das vivências do analisando, quando ainda em formação ele terá que experienciar, concomitantemente, uma vivência na qual ora se vê como analisando, ora como analista. E é justamente ao longo deste percurso que surge a figura do supervisor. Considerando que no momento em que ocorre a supervisão o analista em formação encontra-se particularmente susceptível a incluir no seu campo transferencial o supervisor, este deve ter como reposta a delicadeza que acolherá as interrogações do analista em formação, ajudando-o a emergir e a tornar-se analista na sua singularidade. Ao supervisor, resta apenas o que lhe concerne: não se colocar como modelo a ser imitado, mas como elemento catalisador.
A supervisão seria, assim, um dos momentos de uma travessia, de um encontro com uma experiência que, confrontada com outras, permitiria a cada aprendiz forjar a sua própria maneira de proceder.
Uma das principais funções do supervisor é a de ajudar o supervisando a suportar a angústia do não-saber, a sustentar a espera necessária para  que haja nomeação, revelação, elaboração dos processos inconscientes, sem inserir nessa brecha essencial um saber defensivo, seja da ordem de um saber teórico, seja da ordem de um saber prévio sobre o desejo do analisando. Através de sua dupla escuta – das associações do analisando e das associações do analista –, o supervisor  poderá algumas vezes perceber e indicar movimentos através dos quais se deu um fechamento no processo inconsciente, em que, com freqüência, um saber foi colocado como resistência.
O espaço da supervisão deve também comportar o interesse pela relação entre a clínica e a teoria, incluída aí a reflexão sobre o trabalho das entrevistas preliminares, o diagnóstico, a entrada em análise, bem como a direção do tratamento e a finalização do processo. Se o divórcio entre teoria e prática é incompatível com a função do trabalho analítico, o trabalho de teorização dentro de uma supervisão possui certas características. Concordo com os autores que pensam que ele deve ser concebido como um trabalho conjunto de teorização flutuante, correlato àquele da atenção flutuante.
Sendo um espaço de travessia fundamental, no qual o supervisando poderá vivenciar a construção, sempre inacabada, de sua identidade de analista, a supervisão deverá comportar, da parte do supervisor, o respeito ao estilo e a escolha do caminho teórico do supervisando - desde que os pilares fundamentais do pensamento psicanalítico estejam presentes - , o que certamente contribuirá para que não se formem simples discípulos, mas verdadeiros analistas.

  1. No nível do currículo de ensino teórico dos institutos haveria um ideal de malha curricular que consideras favorecer essas mesmas qualidades antes destacadas?

           Fernando Rocha:
O currículo do Instituto na Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, compõe-se de  cursos chamados de “introdutórios” e de “eletivos”. Vou me servir deste exemplo para tecer algumas reflexões sobre o que poderíamos considerar “introdutório” ou “eletivo” em uma formação psicanalítica, na medida em que  temos nesta formação uma perspectiva emancipadora do sujeito.
 Introduzir é um vocábulo de origem latina - indro-ducere - que significa "levar para dentro", "fazer entrar", "fazer penetrar", acepções que nos remetem à noção de  conduzir à raiz , ao fundamento[3].  Essas diferentes possibilidades de significar o termo introdução nos fazem perguntar o que seria "conduzir para dentro" em uma formação psicanalítica. Se aceitarmos que tal formação visa criar no sujeito um movimento de emancipação, ela deve propiciar vias, caminhos,  que possibilitem a mobilidade do sujeito no sentido de um auto-conhecimento, de uma auto-crítica, desenvolvendo-lhe a capacidade de fazer escolhas.
As significações oferecidas pelo vocábulo introdução nos facultam articulá-lo com o termo alemão Ausbildung, empregado por Freud para designar a noção de formação em psicanálise[4]. Constituído pelo prefixo aus  que designa o "movimento de dentro para fora" - correspondendo aos prefixos latinos ex, es -[5] e da raiz bild em que uma das significações é a de construir - tanto no sentido material como mental -, o termo Ausbildung pode ser compreendido como um movimento que, partindo de uma construção  ocorrida no interior do sujeito, direciona-se para fora. Assim, tanto o termo introdução quanto Ausbildung conotam um movimento essencial de um voltar-se para dentro de si, de um ir para dentro para que posteriormente a coisa construída possa emergir, trazendo, porém os efeitos das raízes, ou dos fundamentos de si mesmo, possibilitando um renascer criativo. A propósito dessa questão, Mannoni nos lembra que quando Freud introduziu a noção de formação em psicanálise empregando o termo Ausbildung, o fez querendo ressaltar uma concepção de formação que conduzisse a uma prática de autocrítica, de interrogação, em oposição à noção de modelo. Trata-se de um "voltar-se para dentro de si" como possibilidade de interrogar-se, principalmente no que se refere ao trabalho empreendido com o paciente [6]. Assim, as acepções depreendidas do termo Ausbildung possibilitam vislumbrar o papel fundamental que a análise pessoal adquire na formação psicanalítica.
Deste modo, considero como “introdutório”, na formação psicanalítica, todas as práticas capazes de produzir saberes que conduzam o analista em formação para dentro de si, a fim de vivenciar a possibilidade de se autocriticar, de duvidar e de lançar interrogações sobre si mesmo, sobre seu trabalho clínico e sobre as raízes formadoras da teoria psicanalítica. Nessa perspectiva, o introdutório torna-se imprescindível como uma das possibilidades do candidato a psicanalista realizar escolhas, relativizar  conhecimentos quando confrontado com a clínica.
Já o termo “eleger”, remete a uma ação que implica escolha, portanto, ganho e perda. Diante de diferentes "objetos"/situações/cursos, o ato de eleger torna o sujeito ciente de que, qualquer que seja sua opção, haverá sempre uma perda e não só ganho. A vivência desse paradoxo certamente reforçará  a necessidade de um curso introdutório, principalmente quando este visa atingir e influenciar os re-arranjos psíquicos do sujeito, já que inclui a análise pessoal.
Se eletivo é o que cada um elege para si para complementar uma formação, esse ato implica não só o aprimoramento intelectual, ou a  subjetividade do analista, mas a  possibilidade de eleger, suportar abrir mão de alguma coisa em proveito de outra.
  1. Que relação tu pensas que devem guardar entre si os fundamentos freudianos com os achados das correntes pós-freudianas? Como achas que devem ser ordenados esses distintos campos da teoria na transmissão que se dá durante a formação analítica?

            Fernando Rocha:  
            Na experiência de sua análise pessoal, o candidato a analista irá ter a experiência dos conceitos desenvolvidos pela psicanálise a partir de Freud, numa “psicanálise em ato”. Assim, acredito que seja  sobretudo na análise pessoal que se dá a experiência da transmissão da psicanálise.
            A elaboração curricular, por sua vez, deverá  manter a intenção  de ordenar aquilo que foi vivenciado na  experiência viva da análise, através do estudo teórico desses conceitos  fundamentais, a partir do estudo da obra freudiana tais como: o inconsciente, a repetição, o recalque, a resistência, a sexualidade, a pulsão, o narcisismo, o complexo de Édipo, transferência, entre outros. A partir daí, o  currículo institucional deverá propiciar aberturas para o estudo das contribuições dos pós-freudianos, promovendo a pluralidade teórica, assim como também o estudo das intersecções da psicanálise com os demais saberes.
            Como ser  psicanalista não é uma questão de titulação, devemos marcar a diferença entre uma Instituição de Formação de Psicanalistas e a Psicanálise na Universidade. Uma Instituição de Formação tem que incluir em sua proposta curricular a multiplicidade de percursos próprios a uma formação individual e, portanto, diferenciada. Assim, tem que valorizar no seu projeto não a transmissão acadêmica dos princípios e conceitos psicanalíticos (isso cabe à Universidade), mas a descoberta individual do inconsciente, a partir de um percurso próprio e singular.
Portanto, a  Clínica Psicanalítica poderá  ser compreendida como um lugar a partir do qual se interrogue – e daí advenha – o psicanalista e sua formação, pensada como permanente.

  1. Que papel tu atribuis à produção escrita na formação analítica?

     Fernando Rocha:
Irei me limitar aqui, mais propriamente, à escrita da experiência clínica que envolve a questão dos relatórios clínicos.
Quando se diz que o relato clínico é  uma “tarefa impossível”, é no sentido de que nele tentamos comunicar uma história de transferências, que é um fenômeno inconsciente, logo, algo que é da ordem do processo primário. Esse comunicar, no entanto, somente torna-se possível a partir  de uma  linguagem simbólica, cuja expressão exige o processo secundário. Assim, o relato escrito de uma experiência clínica psicanalítica pode ser entendido como um tipo de criação reveladora de uma tentativa de  travessia de um caminho que, perpassando a experiência do inconsciente – expressa na cena analítica por intermédio da transferência / contratransferência –, chega ao escrito.
Tal aproximação, no entanto, não se faz alcançável na experiência psicanalítica, pois se nela há um objeto – o inconsciente –, esta experiência é da ordem da singularidade, constituindo-se em cada sujeito como uma “viagem” única e imprevisível. Viagem, que como escreveu J. B. Pontalis é “comparável a navegar à bússola: é somente a posteriori  que se estabelecem os mapas e os levantamentos. Mas estes são indispensáveis à elaboração de uma experiência, de outra maneira não governável”.[7]
Escrever, é então, tentativa de reinserção na ordem simbólica, já que a transferência do vivido ao escrito não é um decalque de um dado.
Se as regras que organizam o campo psicanalítico voltam-se para que o fenômeno da transferência e contratransferência possa se instaurar, como relatar vivências que são da ordem do inconsciente?  Somos obrigados a aceitar que a  “transferência não se relata, não se escreve, nem se traduz; ela não é um texto: daí a insuficiência básica de todo resumo de análise tome ou não a forma narrativa, seja história de caso ou disposição de fragmentos[8]”.
Concordamos com Viderman[9], que considera o processo analítico como uma possibilidade de inscrição pelo paciente de sua história, inscrição esta que implicaria não uma história contada, (aquela que o paciente nos traz – seu romance familiar), mas uma história  construída em sua análise. Assim, não é o passado que o paciente vai evocar através de todos os meios de distorção que as defesas lhe impõem, mas seu próprio passado. E essa passagem do definido para o possessivo marca a passagem da história à construção mítica; de uma história objetiva irrecuperável à história imaginária.
Seria pertinente, então, nomearmos relatório clínico aquilo que, dos aspectos da experiência analítica, tornaram-se conscientes, o que possibilita inferir que haja uma escolha do analista que, entre os vários aspectos possíveis de serem relatados, escolhe apenas alguns e não outros.  Portanto, o relatório clínico é o momento de revelação de uma escolha deliberada do que está escrito, traduzindo a possível implicação tanto teórica quanto subjetiva do analista.
Escrever a experiência clínica psicanalítica seria, assim, impossível, embora possamos escrever sobre uma experiência clínica. Podemos arriscar dizendo que tal escrita – por pressupor uma escolha – constitui-se também  num momento de discriminação do analista, no qual ele, tomando distância da situação clínica, pode melhor elaborá-la. Assim, o momento de escrever a clínica é um momento de “descolamento”, de recuperação de seu próprio nome, já que o analista esteve imerso nos movimentos transferenciais.
 Podemos dizer, então, que o lugar de analista pressupõe uma capacidade de identificação e de desidentificação constantes; capacidade de deixar-se invadir, habitar pela transferência do paciente, podendo dela discriminar-se.  A impossibilidade de  operar tal separação é reveladora de que cabe ao analista interrogar-se sobre seus impedimentos. 
Além disso, a produção escrita estando necessariamente submetida à língua, revela-se insuficiente quando pretendemos expressar o oceano de idéias que em nós habita. O confronto com essa impossibilidade conduz a uma vivência de angústia que, se não for englobada como parte do processo de produção criativa, levará à paralisia do próprio ato de escrever. Se todo ato criativo produz tensão, na produção escrita essa tensão vincula-se, em parte, ao anseio de controlar o eventual leitor, na busca do impossível: fazê-lo ler exatamente o que supomos ter escrito.  Toda produção escrita nos conduz ao confronto com os limites próprios dos códigos que permitem expressar uma idéia. Esses limites nos levam, necessariamente, a uma vivência na qual somos obrigados a fazer escolhas. Escolhas que implicam perdas.
Se não podemos esquecer das perdas, não podemos também negar que a escrita, além de propiciar a discriminação do analista, pode conduzir ao pensar sobre si mesmo e à reflexão teórica.

  1. Acreditas que os Institutos deveriam estimular a investigação durante a formação? Se fosse assim, qual a maneira que consideras mais adequada para realizar isso? Crês que deveriam existir políticas institucionais nas Sociedades formadoras – inclusive ao nível de obter subsídios – nesse sentido?

Fernando Rocha:
      Penso que a investigação psicanalítica, por excelência, é o próprio trabalho clínico de investigação do inconsciente. Como aponta Freud, "Na psicanálise tem existido desde o início um laço inseparável entre cura e pesquisa" (....). "O conhecimento trouxe êxito terapêutico", mas (....) "é  somente pela execução do nosso trabalho analítico que podemos aprofundar nossa compreensão [sobre] o que desponta da mente humana..." (Freud, 1927). Na medida em que a clínica se comprometa com a transmissão da psicanálise, espera-se um compromisso que, através de apresentações, uma circulação das experiências obtidas nos atendimentos da clínica produza efeitos de pesquisa.
      Acho importante que se organizem os mais diversos grupos de pesquisa, sejam  sobre determinadas organizações psíquicas, tais como o trabalho com a psicose, a questão da psicossomática, a relação pais-bebê, sejam sobre o aprofundamento dos conceitos psicanalíticos,  além de trocas com outros saberes.
     
  1. Acreditas que a psicanálise deva ter algum tipo de inserção cultural – as chamadas interfaces como, por exemplo, a história, filosofia, música, arte, política, literatura – nas quais a psicanálise realiza intercurso científico com outras áreas do saber? Como pensas que deve ser essa relação?

         Fernando Rocha:
            Não tenho dúvida quanto a importância da inserção cultural da Psicanálise. Se o objeto da psicanálise é o inconsciente, não podemos ignorar que o homem está inserido numa cultura.
Podemos observar que a descoberta freudiana está impregnada pelo interesse de Freud nas mais variadas áreas do saber, tais como a filosofia, a mitologia, a literatura, a história, as  artes, entre outras, interesse este que muito contribuiu e enriqueceu seu pensamento. Ele foi leitor  interessado de  Sófocles, Shakespeare, Goethe, Dostoievsky, e tantos outros. A escritora Lílian Fontes nos lembra que a psicanálise se serve da literatura e a literatura da psicanálise como auxiliares para a reflexão de seus conceitos. Assim, diz ela “podemos falar da relação que Freud estabeleceu  com a tragédia – as tragédias de Sófocles, Shakespeare – de onde  surgiram metáforas temáticas sobre as quais ele criou o seu universo de análises. (...) Paralelamente, podemos alegar que muitos romancistas da história da literatura serviram-se dos conhecimentos da psicologia (psicanálise) para traçar o perfil de seus personagens [10].
Também cedo Freud demonstrou interesse pela filosofia: ainda quando estudante de medicina, seguiu seminários opcionais dessa disciplina e fez um curso com Brentano sobre filosofia de Aristóteles. Em pontos importantes da obra freudiana estão presentes, seja  implícita ou explicitamente, o pensamento de Nietzsche, dos pré-socráticos, de Kant, Newton, Darwin, Schopenhauer, Platão, Hegel, Spinoza, ficando evidente a importância de todos esses saberes na construção da psicanálise. Portanto, o intercurso da psicanálise com as demais áreas do saber é fundamental para o seu progresso.
            Na Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro são vários as atividades que podemos citar como  exemplos de interface da psicanálise com outras áreas do saber. A revista TRIEB (da qual sou um dos editores, juntamente com Viviane Frankenthal e Marci Doria Passos), desta sociedade, tem se voltado para este tipo de reflexão e de troca. A TRIEB já publicou um volume sobre as relações entre Psicanálise e Cinema [11], e seus dois  últimos números, ainda no prelo, são consagrados aos temas “Psicanálise e Interface Social” e “Psicanálise e Literatura”. No volume dedicado à Psicanálise e interface Social, são descritos vários exemplos do trabalho do psicanalista que amplia seu exercício clínico para além do consultório: Na SBPRJ um grupo de psicanalistas vem trabalhado em situações diversas e  adversas e começa a produzir reflexões  sobre a psicanálise para além do divã e dos fartos recursos financeiros. O programa da SBPRJ de interface social da psicanálise - PROPIS - inclui variadas inserções em diferentes campos de atuação, mas procurando manter sempre o lume da teoria psicanalítica.
            No editorial deste volume da TRIEB, lembramos que essa intervenção tanto pode ser centrada apenas no campo teórico, isoladamente, como junto a outros saberes, num exercício interdisciplinar, auxiliando a pensar questões que envolvem o ser humano e os enigmas de sua vida, seja através da arte, da política, da universidade, enfim, das inúmeras possibilidades de expressão humana. A prática clínica também pode se dar institucionalmente, em hospitais, escolas, centros de atendimentos e outras formas de assistência. Neste número da TRIEB foi aberto um espaço para a expressão daqueles psicanalistas que têm operado psicanaliticamente em contextos de baixa renda, demandas sofridas e muitas vezes urgentes.
            Concordo com as colegas Liana A. de Melo Bastos e Munira A. Proença,    que afirmaram na TRIEB: “embora, durante algum tempo, muitos psicanalistas tenham dado pouca relevância à preocupação freudiana com o social, na atualidade, mais do que nunca, esta discussão não pode ser ignorada. Além da crítica da contemporaneidade, cabe à psicanálise a elaboração de novas estratégias de atuação psicanalíticas no campo da prática individual e social”[12].       
Assim se ampliam as possibilidades de atuação dos psicanalistas, enfatizando “a dimensão ética da psicanálise e fazendo do ato psicanalítico um ato público”[13].

            9. Ser reconhecido como psicanalista, poderíamos dizer, é um evento marcado por diversos processos que não necessariamente coincidem com o tempo regular de uma formação ou com o tempo em que a pessoa mesma se reconheça, se “sinta psicanalista”. Como foi sua experiência pessoal com esse processo? Quando foi que você “sentiu que era um psicanalista”?

 Fernando Rocha:
                        Antes de falar sobre ‘se reconhecer’ ou ‘ser reconhecido’ como analista, direi algumas palavras sobre como ‘conheci’ a Psicanálise: Saindo da adolescência, andava às voltas com dúvidas vocacionais, quando um parente me falou sobre um primo que “tratava seus pacientes com palavras”. Aquilo me fascinou. Viajei para conhecer o tal primo psiquiatra-psicanalista de crianças e que também era bom violonista. Foi ele quem, pela primeira vez, me apresentou, me fez  conhecer Freud.
Foi no processo de minha análise pessoal, no entanto, que se criaram  condições para que eu me ‘reconhecesse’ analista e onde pude questionar o meu desejo de  ser analista e descobrir o meu gosto pelo analisar. Mas este desejo só foi “batizado”, quando recebi o meu primeiro paciente em análise. Assim, acredito que a transmissão da psicanálise se dá, essencialmente, por meio da experiência analítica, via transferência, quando o analista se oferece como um lugar para que um saber se dê. Esse percurso analítico vai indicar que cada um deverá refazer, por sua própria conta, o caminho da descoberta freudiana.
No meu caso, houve primeiramente um auto-reconhecimento como analista e, em seguida, o reconhecimento por parte dos pares, da instituição. Penso que não basta ser reconhecido pela instituição para garantir a identidade de analista.
Gosto muito da expressão “ofício de analista”, já que considero que ser analista não é uma profissão, no sentido tradicional  do termo,  mas uma função, um lugar que se ocupa quando se está em situação de análise com um paciente. É a análise pessoal e a formação que devem nos preparar para ocupar este “lugar de analista” - lugar do simbólico, de objeto da transferência -,  lugar que pode não estar sendo ocupado,  mesmo quando  se está sentado na poltrona e há um outro no divã. É desse ‘lugar de analista’ que a linguagem para o analista, antes de se prestar a informar, visa provocar, evocar no paciente tudo aquilo que de sua história permanece inconsciente, porém pulsante, à espera de uma expressão – produção de sentido.
Foi fundamental o reconhecimento por parte de meus pares, o reconhecimento institucional,  na sedimentação da minha identidade de analista. Não resta a menor dúvida que a prática clínica vai aprimorando, vai afinando as nossas condições de ocupação desse lugar de analista. Mas nenhum analista estará isento de sair dele, já que não é um lugar natural, pois, como bem disse Daniel Widlöcher: conduzir-se como psicanalista é ser capaz de desenvolver um modo específico de funcionamento mental que não nos é natural e para o qual nos prepara nossa análise pessoal.[14]
A leitura do interessante livro A Arte cavalheiresca do arqueiro Zen[15][i] nos incita a fazer uma analogia entre o arqueiro e o psicanalista: o perfeito  controle técnico do arco, pelo arqueiro, é apenas  um meio de acesso a um desenvolvimento interior que, por sua vez, repercute sobre o saber: “ao mirar o alvo o arqueiro aponta para si mesmo”. Já a identidade do psicanalista funda-se sobre uma relação com o próprio inconsciente. Neste sentido, o  ofício de analisar nos engaja inteiramente e completamente. Acredito que a formação é interminável e que se ela foi válida, não cessará de nos provocar, de nos manter em questionamento e portanto em transformação, na maioria das vezes imperceptível. Acredito também que essa  transformação depende mais de nossa experiência de análise do que de aquisições de “puro” conhecimento teórico. Sinto-me dentro deste processo de formação interminável - formação para a vida.




[1] Adorno, T. (1995). Educação e emancipação. São Paulo: Paz e Terra.
[2] Faure-Pragier, S. (2001). O implícito no modelo de formação na Société Psychanalytique de Paris. 10a  Conferência de Analistas Didatas no Congresso Internacional da IPA em Nice “Reavaliação do Ensino Psicanalítico: Polêmicas e Mudanças”. Tradução de Marilda Pedreira. Xerox.
[3] Nascentes, A.   Dicionário de Língua Portuguesa. Academia Brasileira de Letras: Departamento de Imprensa Nacional, 1964.
[4] Freud. S. A questão da Análise Leiga (1926).
[5] Ver TOCHTROP, Leonardo. Dicionário Alemão - Português. São Paulo: Globo. 8 edição. 1989.
6MANNONI, M. in “Risque et chance de la supervision”. Études freudiennes, n. 31, maio1989 pg. 29.
[7] J.B. Pontalis, Après Freud. Coll. “Idées”. Paris, Gallimard, 1968.
[8] Entrevista com J. B. Pontalis, realizada por Marcelo Marques. Jornal de Psicanálise. Instituto de Psicanálise da SBPSP. Vol. 35. N 64/65, 2002, pg. 41
[9] S. Viderman. La Construction de L´Espace Analytique. Éditions Denöel, Paris, 1970.
[10] Lílian Fontes. A criação ficcional. O fluxo de consciência em Ulysses, de James Joyce e sua relação com a psicanálise. Rio, 2007. Artigo ainda não publicado. Xerox.
[11]  Revista TRIEB. Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro. Rio, Relume Dumará, Volume III , N. 1 e 2, março/setembro de 2004.
[12] Liana Albernaz de Melo Bastos e Munira Aiex Proença. Psicanálise e Interface Social. Na Revista TRIEB, no prelo.
[13] Idem.
[14] Widlöcher, D. Psychanalyse aujourd´hui: un problème d´identité. L´identité du psychanalyste. Paris, PUF, 1979.
[15] Herrigel, E. (1975). A arte cavalheiresca do arqueiro Zen. São Paulo: Pensamento.









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