Fernando
Rocha:
A formação do analista baseada nos três
elementos do tripé, a meu ver, continua válida. No entanto, o que importa não é
somente o aspecto formal, mas sobretudo, a maneira como estes três pilares são
realizados numa formação; ou seja, o que importa é a maneira como este tripé
responde àquilo que é propriamente psicanalítico, ajudando o candidato a
tornar-se apto a ocupar o “lugar de analista”.
Foi
no segundo Congresso Internacional em Nuremberg, em 1910, que se deu a conhecer
os problemas da organização psicanalítica. A Psicanálise produzira uma
linguagem própria, um novo universo de pensamento, e mobilizara vários campos
de conhecimento. A idéia de Freud era a de organizar o que fosse psicanalítico, começando-se assim a pensar quais as condições que
deveriam ser transmitidas a todos os candidatos a psicanalista. Foi em torno
disso que começa a história da formação, com suas bases na análise pessoal
(chamada de didática), supervisão e aprendizado do saber teórico. Chegou-se,
então, a uma discrepância que até hoje enfrentamos: o que a psicanálise se
propõe enquanto processo e o que ela é enquanto instituição.
Se, por definição, a
psicanálise quebra com qualquer ‘estatuição’ exata, essa ordenação na formação
do analista pode ser uma espécie de violência, de redução contra o que é
psicanalítico. Esse é um impasse, um paradoxo, com o qual se defronta uma
formação psicanalítica. Enquanto a instituição tem regras estatuídas e precisa
delas inclusive para ser uma instituição, a análise é a derrubada de ordenações
exatas, é a tentativa através da regra fundamental, de pesquisar o desejo. É,
portanto, fundamental que a sociedade de psicanálise se dê conta e não fique
cega a essa dialética entre o “instituinte e o instituído”.
Neste
sentido, é interessante ressaltar que
Freud, ao introduzir a noção de formação em psicanálise, empregou o
termo Ausbildung, e o fez ressaltando
uma concepção de formação que conduzisse a uma prática de autocrítica, de
interrogação, em oposição à noção de modelo. Trata-se da possibilidade de
interrogar-se, principalmente no que se refere ao trabalho empreendido com o
paciente. Assim, as acepções depreendidas do termo Ausbildung possibilitam vislumbrar o papel fundamental que a
análise pessoal, a supervisão e os seminários teóricos podem adquirir na
formação psicanalítica. É neste sentido que aparece toda a importância do que
se entende pelo termo formação.
Quando
o ato de formar e educar atrela-se ao sentido de modelar, prevalece uma
perspectiva de formação que visa adaptar ou adequar,distanciando-se do que se
propõe uma formação psicanalítica. Entretanto, outras concepções abordam a ação
de formar ou educar como práticas que preparam o sujeito para lidar com o novo,
o imprevisível, entendendo que há, nesse processo, uma implicação com a “tarefa
de renovar o mundo”, ou seja, uma formação ou educação apoiada na criatividade.
Delineiam-se, então,
duas perspectivas opostas quanto ao ato de formar: uma, em que a formação,
restringindo-se a um ato informativo, sem a preocupação de desenvolver uma
capacidade crítica, visa modelar o sujeito ao já existente; outra que,
percebida em sua globalidade, transcende a informação ou mesmo o conhecimento,
realçando que a importante tarefa da formação é a de conduzir o sujeito para a
“emancipação” e não para a “adaptação” (Adorno, 1995)[1].
2. Crês que independizar
a análise pessoal dos Institutos de formação poderia favorecer a formação de
analistas mais emancipados, criativos e críticos?
Fernando Rocha:
Sim, mas não imuniza, como uma vacina, contra a não
emancipação, a falta de criatividade e de auto-criltica. Mas, se a análise
pessoal é concebida como sendo o fundamento
da identidade do futuro analista, a independência entre análise pessoal
do candidato e a instituição, é uma proposta que pode indicar a preocupação de
proteger a análise das influências da Instituição.
Na Sociedade Psicanalítica de Paris,
onde fiz minha formação (de 1969
a 1979), esta independência foi uma conquista e achei a
experiência válida. Com o propósito de proteger a análise pessoal do candidato,
em 1970 foi abandonada a análise didática, possibilitando que o desejo de
tornar-se analista pudesse ser realmente analisado, não sendo confirmado por
antecipação. Para a S.P.P., "qualificar uma análise como didática lhe impõe
um objetivo que anula a sua especificidade".
Com esses procedimentos, a S.P.P. assumia que a análise didática não era a
melhor solução nem para se formar um analista nem para evitar “candidatos conformistas, não criativos,
instalados em uma repetição mortífera da mesmice” [2].
Valorizando
um percurso pouco diretivo de formação, a S.P.P incentiva a emergência de
estilos variados e o desenvolvimento da subjetivação e da identidade própria de
cada um. A formação na S.P.P pretende favorecer a “diversidade, a autenticidade
e a responsabilidade”.
- Como se pode evitar o doutrinamento teórico nas
supervisões?
Fernando Rocha:
Vai depender do posicionamento ético do
supervisor. Durante o exercício de sua
clínica, o analista em formação, em análise ou em supervisão, estará
irremediavelmente sozinho com o seu analisando; é pois o responsável pelos seus
atos analíticos. Da solidão, ao longo do processo analítico, emergem incertezas
e dúvidas que colocam à prova o seu narcisismo. A inevitabilidade dessa
situação lança-o em busca de certezas ou
garantias, seja através de um saber teórico, seja através de um saber de
outrem, a fim de obter respostas.
Freud, em A dinâmica da transferência
(1912), nos chama a atenção para o fato
de que o fenômeno transferencial instaura-se de forma mais intensa no sujeito
submetido à análise do que naquele que não o está. Com freqüência, ao
iniciar seu primeiro trabalho clínico, o
analista em formação está ainda em análise. Esta simultaneidade de papéis
provoca intensa ativação de suas vivências inconscientes. Desse modo, se é
fundamental que o analista ocupe a posição de suporte, de receptáculo das
vivências do analisando, quando ainda em formação ele terá que experienciar,
concomitantemente, uma vivência na qual ora se vê como analisando, ora como
analista. E é justamente ao longo deste percurso que surge a figura do
supervisor. Considerando que no momento em que ocorre a supervisão o analista
em formação encontra-se particularmente susceptível a incluir no seu campo
transferencial o supervisor, este deve ter como reposta a delicadeza que
acolherá as interrogações do analista em formação, ajudando-o a emergir e a
tornar-se analista na sua singularidade. Ao supervisor, resta apenas o que lhe
concerne: não se colocar como modelo a ser imitado, mas como elemento
catalisador.
A supervisão seria,
assim, um dos momentos de uma travessia, de um encontro com uma experiência
que, confrontada com outras, permitiria a cada aprendiz forjar a sua própria
maneira de proceder.
Uma das principais funções
do supervisor é a de ajudar o supervisando a suportar a angústia do não-saber,
a sustentar a espera necessária para que
haja nomeação, revelação, elaboração dos processos inconscientes, sem inserir
nessa brecha essencial um saber defensivo, seja da ordem de um saber teórico,
seja da ordem de um saber prévio sobre o desejo do analisando. Através de sua
dupla escuta – das associações do analisando e das associações do analista –, o
supervisor poderá algumas vezes perceber
e indicar movimentos através dos quais se deu um fechamento no processo
inconsciente, em que, com freqüência, um saber foi colocado como resistência.
O espaço da supervisão
deve também comportar o interesse pela relação entre a clínica e a teoria,
incluída aí a reflexão sobre o trabalho das entrevistas preliminares, o
diagnóstico, a entrada em análise, bem como a direção do tratamento e a
finalização do processo. Se o divórcio entre teoria e prática é incompatível
com a função do trabalho analítico, o trabalho de teorização dentro de uma
supervisão possui certas características. Concordo com os autores que pensam
que ele deve ser concebido como um trabalho conjunto de teorização flutuante, correlato àquele da atenção flutuante.
Sendo um espaço de
travessia fundamental, no qual o supervisando poderá vivenciar a construção,
sempre inacabada, de sua identidade de analista, a supervisão deverá comportar,
da parte do supervisor, o respeito ao estilo e a escolha do caminho teórico do
supervisando - desde que os pilares fundamentais do pensamento psicanalítico
estejam presentes - , o que certamente contribuirá para que não se formem
simples discípulos, mas verdadeiros analistas.
- No nível do currículo de ensino teórico dos
institutos haveria um ideal de malha curricular que consideras favorecer essas
mesmas qualidades antes destacadas?
Fernando Rocha:
O currículo do Instituto na Sociedade Brasileira de
Psicanálise do Rio de Janeiro, compõe-se de
cursos chamados de “introdutórios” e de “eletivos”. Vou me servir deste
exemplo para tecer algumas reflexões sobre o que poderíamos considerar
“introdutório” ou “eletivo” em uma formação psicanalítica, na medida em
que temos nesta formação uma perspectiva
emancipadora do sujeito.
Introduzir é um vocábulo de origem latina - indro-ducere - que significa "levar
para dentro", "fazer entrar", "fazer penetrar",
acepções que nos remetem à noção de
conduzir à raiz , ao fundamento[3]. Essas diferentes possibilidades de significar
o termo introdução nos fazem perguntar o que seria "conduzir para dentro"
em uma formação psicanalítica. Se aceitarmos que tal formação visa criar no
sujeito um movimento de emancipação, ela deve propiciar vias, caminhos, que possibilitem a mobilidade do sujeito no
sentido de um auto-conhecimento, de uma auto-crítica, desenvolvendo-lhe a
capacidade de fazer escolhas.
As significações
oferecidas pelo vocábulo introdução nos facultam articulá-lo
com o termo alemão Ausbildung, empregado por Freud para
designar a noção de formação em psicanálise[4]. Constituído pelo prefixo aus
que designa o "movimento de
dentro para fora" - correspondendo aos prefixos latinos ex,
es -[5] e da raiz bild em que
uma das significações é a de construir - tanto no sentido material como mental -, o termo Ausbildung
pode ser compreendido como um movimento que, partindo de uma construção ocorrida no interior do sujeito, direciona-se
para fora. Assim, tanto o termo introdução quanto Ausbildung conotam
um movimento essencial de um voltar-se para dentro de si, de um ir para dentro para que posteriormente
a coisa construída possa emergir, trazendo,
porém os efeitos das raízes, ou dos fundamentos de si mesmo, possibilitando um
renascer criativo. A propósito dessa questão, Mannoni nos lembra que quando
Freud introduziu a noção de formação em psicanálise empregando o termo Ausbildung,
o fez querendo ressaltar uma concepção de formação que conduzisse a uma
prática de autocrítica, de interrogação, em oposição à noção de modelo.
Trata-se de um "voltar-se para dentro de si" como possibilidade de
interrogar-se, principalmente no que se refere ao trabalho empreendido com o
paciente [6].
Assim, as acepções depreendidas do termo Ausbildung possibilitam vislumbrar o
papel fundamental que a análise pessoal adquire na formação psicanalítica.
Deste modo, considero
como “introdutório”, na formação psicanalítica, todas as práticas capazes de
produzir saberes que conduzam o analista em formação para dentro de si, a fim
de vivenciar a possibilidade de se autocriticar, de duvidar e de lançar
interrogações sobre si mesmo, sobre seu trabalho clínico e sobre as raízes
formadoras da teoria psicanalítica. Nessa perspectiva, o introdutório torna-se imprescindível como uma das possibilidades do
candidato a psicanalista realizar escolhas, relativizar conhecimentos quando confrontado com a clínica.
Já o termo
“eleger”, remete a uma ação que implica escolha, portanto, ganho e perda. Diante de diferentes
"objetos"/situações/cursos, o ato de eleger torna o sujeito ciente de
que, qualquer que seja sua opção, haverá sempre uma perda e não só ganho. A vivência
desse paradoxo certamente reforçará a
necessidade de um curso introdutório, principalmente
quando este visa atingir e influenciar os re-arranjos psíquicos do sujeito, já
que inclui a análise pessoal.
Se eletivo é o que cada um elege para si para complementar uma formação, esse ato
implica não só o aprimoramento intelectual,
ou a subjetividade do analista, mas
a possibilidade de eleger, suportar
abrir mão de alguma coisa em proveito de outra.
- Que relação tu pensas que devem guardar entre si
os fundamentos freudianos com os achados das correntes pós-freudianas?
Como achas que devem ser ordenados esses distintos campos da teoria na
transmissão que se dá durante a formação analítica?
Fernando Rocha:
Na
experiência de sua análise pessoal, o candidato a analista irá ter a
experiência dos conceitos desenvolvidos pela psicanálise a partir de Freud,
numa “psicanálise em ato”. Assim, acredito que seja sobretudo na análise pessoal que se dá a
experiência da transmissão da psicanálise.
A
elaboração curricular, por sua vez, deverá
manter a intenção de ordenar
aquilo que foi vivenciado na experiência
viva da análise, através do estudo teórico desses conceitos fundamentais, a partir do estudo da obra
freudiana tais como: o inconsciente, a repetição, o recalque, a resistência, a
sexualidade, a pulsão, o narcisismo, o complexo de Édipo, transferência, entre
outros. A partir daí, o currículo
institucional deverá propiciar aberturas para o estudo das contribuições dos
pós-freudianos, promovendo a pluralidade teórica, assim como também o estudo
das intersecções da psicanálise com os demais saberes.
Como
ser psicanalista não é uma questão de
titulação, devemos marcar a diferença entre uma Instituição de Formação de
Psicanalistas e a Psicanálise na Universidade. Uma Instituição de Formação tem
que incluir em sua proposta curricular a multiplicidade de percursos próprios a
uma formação individual e, portanto, diferenciada. Assim, tem que valorizar no
seu projeto não a transmissão acadêmica dos princípios e conceitos
psicanalíticos (isso cabe à Universidade), mas a descoberta individual do
inconsciente, a partir de um percurso próprio e singular.
Portanto, a Clínica Psicanalítica poderá ser compreendida como um lugar a partir do
qual se interrogue – e daí advenha – o psicanalista e sua formação, pensada
como permanente.
- Que papel tu atribuis à produção escrita na
formação analítica?
Fernando Rocha:
Irei me limitar aqui,
mais propriamente, à escrita da experiência clínica que envolve a questão dos
relatórios clínicos.
Quando se diz que o
relato clínico é uma “tarefa
impossível”, é no sentido de que nele tentamos comunicar uma história de
transferências, que é um fenômeno inconsciente, logo, algo que é da ordem do
processo primário. Esse comunicar, no entanto, somente torna-se possível a
partir de uma linguagem simbólica, cuja expressão exige o
processo secundário. Assim, o relato escrito de uma experiência clínica
psicanalítica pode ser entendido como um tipo de criação reveladora de uma
tentativa de travessia de um caminho
que, perpassando a experiência do inconsciente – expressa na cena analítica por
intermédio da transferência / contratransferência –, chega ao escrito.
Tal aproximação, no
entanto, não se faz alcançável na experiência psicanalítica, pois se nela há um
objeto – o inconsciente –, esta experiência é da ordem da singularidade,
constituindo-se em cada sujeito como uma “viagem”
única e imprevisível. Viagem, que como escreveu J. B. Pontalis é “comparável a navegar à bússola: é somente a
posteriori que se estabelecem os mapas e
os levantamentos. Mas estes são
indispensáveis à elaboração de uma experiência, de outra maneira não
governável”.[7]
Escrever,
é então, tentativa de reinserção na ordem simbólica, já que a transferência do
vivido ao escrito não é um decalque de um dado.
Se as regras
que organizam o campo psicanalítico voltam-se para que o fenômeno da
transferência e contratransferência possa se instaurar, como relatar vivências
que são da ordem do inconsciente? Somos
obrigados a aceitar que a “transferência não se relata, não se escreve,
nem se traduz; ela não é um texto: daí a insuficiência básica de todo resumo de
análise tome ou não a forma narrativa, seja história de caso ou disposição de
fragmentos[8]”.
Concordamos com Viderman[9],
que considera o processo analítico como uma possibilidade de inscrição pelo
paciente de sua história, inscrição esta que implicaria não uma história
contada, (aquela que o paciente nos traz – seu romance familiar), mas uma
história construída em sua análise.
Assim, não é o passado que o paciente vai evocar através de todos os meios de
distorção que as defesas lhe impõem, mas seu próprio passado. E essa passagem
do definido para o possessivo marca a passagem da história à construção mítica;
de uma história objetiva irrecuperável à história imaginária.
Seria pertinente, então,
nomearmos relatório clínico aquilo que, dos aspectos da experiência analítica,
tornaram-se conscientes, o que possibilita inferir que haja uma escolha do
analista que, entre os vários aspectos possíveis de serem relatados, escolhe
apenas alguns e não outros. Portanto, o
relatório clínico é o momento de revelação de uma escolha deliberada do que
está escrito, traduzindo a possível implicação tanto teórica quanto subjetiva do
analista.
Escrever a experiência clínica psicanalítica
seria, assim, impossível, embora possamos escrever sobre uma experiência clínica. Podemos arriscar dizendo que tal
escrita – por pressupor uma escolha – constitui-se também num momento de discriminação do analista, no
qual ele, tomando distância da situação clínica, pode melhor elaborá-la. Assim,
o momento de escrever a clínica é um momento de “descolamento”, de recuperação
de seu próprio nome, já que o analista esteve imerso nos movimentos transferenciais.
Podemos dizer, então, que o lugar de analista
pressupõe uma capacidade de identificação e de desidentificação constantes;
capacidade de deixar-se invadir, habitar pela transferência do paciente,
podendo dela discriminar-se. A
impossibilidade de operar tal separação
é reveladora de que cabe ao analista interrogar-se sobre seus
impedimentos.
Além disso, a produção
escrita estando necessariamente submetida à língua, revela-se insuficiente
quando pretendemos expressar o oceano de idéias que em nós habita. O confronto
com essa impossibilidade conduz a uma vivência de angústia que, se não for
englobada como parte do processo de produção criativa, levará à paralisia do
próprio ato de escrever. Se todo ato criativo produz tensão, na produção
escrita essa tensão vincula-se, em parte, ao anseio de controlar o eventual
leitor, na busca do impossível: fazê-lo ler exatamente o que supomos ter
escrito. Toda produção escrita nos
conduz ao confronto com os limites próprios dos códigos que permitem expressar
uma idéia. Esses limites nos levam, necessariamente, a uma vivência na qual
somos obrigados a fazer escolhas. Escolhas que implicam perdas.
Se não podemos esquecer
das perdas, não podemos também negar que a escrita, além de propiciar a
discriminação do analista, pode conduzir ao pensar sobre si mesmo e à reflexão
teórica.
- Acreditas que os Institutos deveriam estimular a
investigação durante a formação? Se fosse assim, qual a maneira que
consideras mais adequada para realizar isso? Crês que deveriam existir políticas
institucionais nas Sociedades formadoras – inclusive ao nível de obter
subsídios – nesse sentido?
Fernando Rocha:
Penso que a investigação psicanalítica, por excelência, é o
próprio trabalho clínico de investigação do inconsciente. Como aponta Freud,
"Na psicanálise tem existido desde o início um laço inseparável entre
cura e pesquisa" (....). "O conhecimento trouxe êxito terapêutico", mas (....) "é somente pela execução do nosso trabalho
analítico que podemos aprofundar
nossa compreensão [sobre] o que
desponta da mente humana..." (Freud, 1927). Na medida em que a clínica
se comprometa com a transmissão da psicanálise, espera-se um compromisso que,
através de apresentações, uma circulação das experiências obtidas nos
atendimentos da clínica produza efeitos de pesquisa.
Acho importante que se organizem os mais diversos grupos de
pesquisa, sejam sobre determinadas
organizações psíquicas, tais como o trabalho com a psicose, a questão da
psicossomática, a relação pais-bebê, sejam sobre o aprofundamento dos conceitos
psicanalíticos, além de trocas com
outros saberes.
- Acreditas que a psicanálise deva ter algum tipo
de inserção cultural – as chamadas interfaces como, por exemplo, a
história, filosofia, música, arte, política, literatura – nas quais a
psicanálise realiza intercurso científico com outras áreas do saber? Como
pensas que deve ser essa relação?
Fernando Rocha:
Não tenho dúvida quanto a importância da inserção
cultural da Psicanálise. Se o objeto da
psicanálise é o inconsciente, não podemos ignorar que o homem está inserido
numa cultura.
Podemos observar que a descoberta freudiana está
impregnada pelo interesse de Freud nas mais variadas áreas do saber, tais como
a filosofia, a mitologia, a literatura, a história, as artes, entre outras, interesse este que muito
contribuiu e enriqueceu seu pensamento. Ele foi leitor interessado de Sófocles, Shakespeare, Goethe, Dostoievsky, e
tantos outros. A escritora Lílian Fontes nos lembra que a psicanálise se serve
da literatura e a literatura da psicanálise como auxiliares para a reflexão de
seus conceitos. Assim, diz ela “podemos falar da relação que Freud
estabeleceu com a tragédia – as
tragédias de Sófocles, Shakespeare – de onde
surgiram metáforas temáticas sobre as quais ele criou o seu universo de
análises. (...) Paralelamente, podemos alegar que muitos romancistas da
história da literatura serviram-se dos conhecimentos da psicologia
(psicanálise) para traçar o perfil de seus personagens [10].
Também cedo Freud demonstrou interesse pela
filosofia: ainda quando estudante de medicina, seguiu seminários opcionais dessa disciplina e fez um curso com Brentano
sobre filosofia de Aristóteles. Em pontos importantes da obra freudiana estão
presentes, seja implícita ou
explicitamente, o pensamento de Nietzsche, dos pré-socráticos, de Kant, Newton,
Darwin, Schopenhauer, Platão, Hegel, Spinoza, ficando evidente a importância de
todos esses saberes na construção da psicanálise. Portanto, o intercurso da
psicanálise com as demais áreas do saber é fundamental para o seu progresso.
Na Sociedade Brasileira de
Psicanálise do Rio de Janeiro são vários as atividades que podemos citar
como exemplos de interface da
psicanálise com outras áreas do saber. A revista TRIEB (da qual sou um dos
editores, juntamente com Viviane Frankenthal e Marci Doria Passos), desta
sociedade, tem se voltado para este tipo de reflexão e de troca. A TRIEB já
publicou um volume sobre as relações entre Psicanálise e Cinema [11],
e seus dois últimos números, ainda no
prelo, são consagrados aos temas “Psicanálise e Interface Social” e
“Psicanálise e Literatura”. No volume dedicado à Psicanálise e interface
Social, são descritos vários exemplos do trabalho do psicanalista que amplia
seu exercício clínico para além do consultório: Na SBPRJ um grupo de
psicanalistas vem trabalhado em situações diversas e adversas e começa a produzir reflexões sobre a psicanálise para além do divã e dos
fartos recursos financeiros. O programa da SBPRJ de interface social da
psicanálise - PROPIS - inclui variadas inserções em diferentes campos de
atuação, mas procurando manter sempre o lume da teoria psicanalítica.
No
editorial deste volume da TRIEB, lembramos que essa intervenção tanto pode ser
centrada apenas no campo teórico, isoladamente, como junto a outros saberes,
num exercício interdisciplinar, auxiliando a pensar questões que envolvem o ser
humano e os enigmas de sua vida, seja através da arte, da política, da
universidade, enfim, das inúmeras possibilidades de expressão humana. A prática
clínica também pode se dar institucionalmente, em hospitais, escolas, centros
de atendimentos e outras formas de assistência. Neste número da TRIEB foi
aberto um espaço para a expressão daqueles psicanalistas que têm operado
psicanaliticamente em contextos de baixa renda, demandas sofridas e muitas
vezes urgentes.
Concordo com as colegas Liana A. de
Melo Bastos e Munira A. Proença, que
afirmaram na TRIEB: “embora, durante algum tempo, muitos psicanalistas tenham
dado pouca relevância à preocupação freudiana com o social, na atualidade, mais
do que nunca, esta discussão não pode ser ignorada. Além da crítica da
contemporaneidade, cabe à psicanálise a elaboração de novas estratégias de
atuação psicanalíticas no campo da prática individual e social”[12].
Assim se ampliam as possibilidades de atuação dos
psicanalistas, enfatizando “a dimensão ética da psicanálise e fazendo do ato
psicanalítico um ato público”[13].
9.
Ser reconhecido como psicanalista, poderíamos dizer, é um evento marcado por
diversos processos que não necessariamente coincidem com o tempo regular de uma
formação ou com o tempo em que a pessoa mesma se reconheça, se “sinta
psicanalista”. Como foi sua experiência pessoal com esse processo? Quando foi
que você “sentiu que era um psicanalista”?
Fernando Rocha:
Antes
de falar sobre ‘se reconhecer’ ou ‘ser reconhecido’ como analista, direi
algumas palavras sobre como ‘conheci’ a Psicanálise: Saindo da adolescência,
andava às voltas com dúvidas vocacionais, quando um parente me falou sobre um
primo que “tratava seus pacientes com palavras”. Aquilo me fascinou. Viajei
para conhecer o tal primo psiquiatra-psicanalista de crianças e que também era
bom violonista. Foi ele quem, pela primeira vez, me apresentou, me fez conhecer Freud.
Foi no processo de minha
análise pessoal, no entanto, que se criaram
condições para que eu me ‘reconhecesse’ analista e onde pude questionar
o meu desejo de ser analista e descobrir
o meu gosto pelo analisar. Mas este desejo só foi “batizado”, quando recebi o
meu primeiro paciente em análise. Assim, acredito que a transmissão da
psicanálise se dá, essencialmente, por meio da experiência analítica, via
transferência, quando o analista se oferece como um lugar para que um saber se
dê. Esse percurso analítico vai indicar que cada um deverá refazer, por sua
própria conta, o caminho da descoberta freudiana.
No meu caso, houve
primeiramente um auto-reconhecimento como analista e, em seguida, o
reconhecimento por parte dos pares, da instituição. Penso que não basta ser
reconhecido pela instituição para garantir a identidade de analista.
Gosto muito da expressão
“ofício de analista”, já que considero que ser analista não é uma profissão, no
sentido tradicional do termo, mas uma função, um lugar que se ocupa quando
se está em situação de análise com um paciente. É a análise pessoal e a
formação que devem nos preparar para ocupar este “lugar de analista” - lugar do
simbólico, de objeto da transferência -,
lugar que pode não estar sendo ocupado,
mesmo quando se está sentado na
poltrona e há um outro no divã. É desse ‘lugar de analista’ que a linguagem
para o analista, antes de se prestar a informar, visa provocar, evocar no
paciente tudo aquilo que de sua história permanece inconsciente, porém
pulsante, à espera de uma expressão – produção de sentido.
Foi fundamental o
reconhecimento por parte de meus pares, o reconhecimento institucional, na sedimentação da minha identidade de
analista. Não resta a menor dúvida que a prática clínica vai aprimorando, vai
afinando as nossas condições de ocupação desse lugar de analista. Mas nenhum
analista estará isento de sair dele, já que não é um lugar natural, pois, como
bem disse Daniel Widlöcher: conduzir-se como psicanalista é ser capaz de
desenvolver um modo específico de funcionamento mental que não nos é natural e
para o qual nos prepara nossa análise pessoal.[14]
A leitura do
interessante livro A Arte cavalheiresca do arqueiro Zen[15][i]
nos incita a fazer uma analogia entre o arqueiro e o psicanalista: o
perfeito controle técnico do arco, pelo
arqueiro, é apenas um meio de acesso a
um desenvolvimento interior que, por sua vez, repercute sobre o saber: “ao
mirar o alvo o arqueiro aponta para si mesmo”. Já a identidade do psicanalista
funda-se sobre uma relação com o próprio inconsciente. Neste sentido, o ofício de analisar nos engaja inteiramente e
completamente. Acredito que a formação é interminável e que se ela foi válida,
não cessará de nos provocar, de nos manter em questionamento e portanto em
transformação, na maioria das vezes imperceptível. Acredito também que
essa transformação depende mais de nossa
experiência de análise do que de aquisições de “puro” conhecimento teórico.
Sinto-me dentro deste processo de formação interminável - formação para a vida.
[1] Adorno, T. (1995). Educação e emancipação. São Paulo:
Paz e Terra.
[2] Faure-Pragier, S.
(2001). O implícito no modelo de formação
na Société Psychanalytique de Paris. 10a Conferência de Analistas Didatas no Congresso
Internacional da IPA em Nice “Reavaliação do Ensino Psicanalítico: Polêmicas e
Mudanças”. Tradução de Marilda Pedreira. Xerox.
[3] Nascentes, A.
Dicionário de Língua Portuguesa. Academia Brasileira de Letras:
Departamento de Imprensa Nacional, 1964.
[4] Freud. S. A questão da Análise Leiga (1926).
[5] Ver
TOCHTROP, Leonardo. Dicionário Alemão - Português. São Paulo: Globo. 8 edição.
1989.
[7] J.B. Pontalis, Après Freud. Coll. “Idées”.
Paris, Gallimard, 1968.
[8] Entrevista com J. B. Pontalis, realizada por Marcelo
Marques. Jornal de Psicanálise. Instituto de Psicanálise da SBPSP. Vol. 35. N
64/65, 2002, pg. 41
[9] S. Viderman. La
Construction de L´Espace Analytique. Éditions Denöel, Paris, 1970.
[10] Lílian Fontes. A criação ficcional. O fluxo de
consciência em Ulysses, de James Joyce e sua relação com a psicanálise.
Rio, 2007. Artigo ainda não publicado. Xerox.
[11] Revista TRIEB.
Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro. Rio, Relume Dumará,
Volume III , N. 1 e 2, março/setembro de 2004.
[12] Liana Albernaz de Melo Bastos e Munira Aiex Proença.
Psicanálise e Interface Social. Na Revista TRIEB, no prelo.
[13] Idem.
[14] Widlöcher, D. Psychanalyse
aujourd´hui: un problème d´identité. L´identité du psychanalyste. Paris,
PUF, 1979.
[15] Herrigel, E. (1975). A arte cavalheiresca do
arqueiro Zen. São Paulo: Pensamento.
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