Novo livro: "Janelas da psicanálise - Transmissão, clinica, paternidade, mitos, arte"
Fernando Rocha
RESENHA DO LIVRO:
Psicanálise, multiplicidade
e interdisciplinaridade
Betty Bernado Fuks[1]
Resenha
de Fernando José Barbosa Rocha, Janelas
da Psicanálise: transmissão, clínica, paternidade, mitos, arte. São Paulo:
Editora Blucher. 2019, 334p. “Série Psicanálise Contemporânea”.
Em
tempos de penúria, quando alguns
continuam insistindo em vulgarizar a
Psicanálise, reduzindo-a a um saber
dogmático a serviço de suas próprias instituições; e outros
fazem avançar, com estardalhaço na mídia, a ideia de que o lugar do inconsciente na contemporaneidade
não é mais aquele construído por Freud,
um livro que contradiz tais afirmativas, bem definido, incisivo, e
escrito em linguagem clara e precisa,
merece saudações. Brindemos,
então, a edição do segundo livro do
psicanalista Fernando Rocha, recém lançado pela editora Blucher: Janelas da Psicanálise: transmissão clínica,
paternidade, mitos, arte.
O
excelente Prefácio assinado por Joel Birman - “Cartografias da psicanálise” - permite uma melhor apreensão dos quinze
ensaios e uma entrevista que compõem
ordenadamente os quatro capítulos dessa
obra. Interligados, eles são
apresentados sob a rubrica “janelas”, categoria que faz jus,
como bem assinala o prefaciador, à
posição ética de Rocha frente aos
registros pluridimensional e interdisciplinar da psicanálise. Nota-se,
de saída, que o grande desafio do autor foi o de tecer
em conjunto os diversos ensaios e os diversos temas que se propôs perscrutar,
obedecendo ao princípio de que no psiquismo habitam uma pluralidade de traços,
que mantém concatenação entre si, e energia circulante. Nesse diapasão, o livro possui três qualidades
fundamentais para enfrentar a crise contemporânea da psicanálise citadas acima:
rigor, multiplicidade e interdisciplinaridade.
Na
primeira “janela” – Psicanálise e Transmissão - Fernando Rocha aborda a questão da formação
psicanalítica de maneira particularmente original: estabelece um diálogo
interdisciplinar entre a noção freudiana de formação e as ideias dos filósofos Theodor
Adorno e Hanna Arendt, de que o processo
de formação é algo da ordem da emancipação do sujeito em relação aquilo que
recebe do Outro. Através desse diálogo o
autor procura fazer avançar a noção de transmissão da psicanálise evitando o confrontar disciplinas já constituídas das
quais, na realidade, nenhuma consente em ceder à outra. Essa posição dialógica, segundo Barthes[2]
permite ao pesquisador criar um novo objeto,
o Texto. No caso, o texto de Rocha
possui uma iluminação filosófica capaz de subverter os dogmas da discursividade
obsessiva que impera nas instituições psicanalíticas.
Em
Psicanálise e clínica, a segunda “janela”,
o leitor terá acesso à uma modalidade singular de exercício da terceira das
profissões impossíveis, a psicanálise. Indubitavelmente
trata-se de um mérito a tentativa do
autor de expor alguns casos e vinhetas
clínicas em intima consonância com uma variedade de temas - perda, luto, resiliência, trauma, corpo,
narcisismo -, mesmo tendo afirmado que o relato clinico é
uma tarefa “impossível”. Um paradoxo perfeitamente admissível, quando se trata
de refletir e pensar a transmissão da psicanálise. O tema das “entrevistas
preliminares”, já desenvolvido com precisão no primeiro livro de Rocha, Entrevistas Preliminares em Psicanálise
(Casa do Psicólogo, 2011), reaparece na apresentação
de uma vinheta clínica. Através dela o autor apresenta o que considera ser a função
principal de tais entrevistas: estabelecer um corte para transformar o sintoma em sintoma
analítico no trabalho de retificação subjetiva do candidato à analise. Esse seria o único destino
possível para que o analisando chegue a se reconhecer como partícipe da situação
geradora de sofrimento.
Na
terceira “janela” – Psicanálise: paternidade e mitos –, Rocha mergulha nos estudos que abrangem a
conexão Psicanálise e Cultura, sem perder de vista a importância vital de se manter muito próximo da clínica e
da metapsicologia. Razão pela qual a questão Pai em psicanálise aparece em sua obra
articulada em base a materiais míticos e clínicos. Imediatamente o leitor identifica o alinhamento de Rocha à tese freudiana, exposta no Projeto para uma psicologia científica, de que o destino do indivíduo não pode ser
estudado fora da cultura em que está inserido.
Nesse sentido, o livro oferece algumas reflexões importantes sobre o sujeito
contemporâneo que mostram o quanto o autor se mantém fiel às categorias psicanalíticas. É possível
extrair das elaborações do conceito de compulsão à repetição, exposto minunciosamente nesse segmento, elementos para uma crítica psicanalítica à cultura
contemporânea. Nas entrelinhas do texto de Rocha não faltam recomendações ao
leitor de procurar seguir o exemplo de
Freud, um analista que jamais ignorou a política de seu tempo.
A
importância da experiência interdisciplinar na obra de Rocha aparece com
vigor na última “janela” do livro – Psicanálise e arte -. Destaco
aqui o verso de Mário Quintana, citado pelo
autor – “Quem escreve poesia resgata um afogado” –, pois me remete ao próprio afogar da psicanálise,
quando um analista se limita a aplicar conceitos psicanalíticos à literatura ou
à arte propriamente dita. Na contra mão
dessa vertente, Rocha segue o conselho de
Freud de “depor as armas” diante
do artista e do escritor e relança
algumas questões a partir do que lhe é possível encontrar na arte, concebida
como forma privilegiada de acesso ao inconsciente. Assim, nosso
autor se inclina sobre a essência musical para traduzi-la em forma visível; toma
a música como campo de investigação, enquanto textualidade, a partir do qual é possível dizer algo sobre o
real que não alcança dizer com os elementos da teoria. Em termos de acréscimo à teoria psicanalítica
trata-se de um trabalho próximo ao real da clínica, momento em que o analista tem
condições de fazer progredir a teoria. Nesse ponto, a
expressão “janela para o real” criada por Lacan para designar a fantasia que recobre o real inassimilável – aquilo que
se traduz clinicamente através da angústia e do trauma -, seria ideal para
distinguir a aplicação fantasmagórica da teoria sobre a arte, da modalidade de leitura à letra que visa possibilitar
a emergência de um não-dito. Não é em vão, que no capítulo seguinte, Rocha
se debruce sobre a questão do ciúme paranoico. Maneira pela qual reivindica o
interesse de seus leitores psicanalista e os de outras áreas, pelo estabelecimento
de relações inesperadas entre psicanálise, literatura e arte.
Para finalizar retorno à problemática da
transmissão. Dessa vez reiterando o fato de que a psicanálise detém a gloriosa
apreensão do tempo, de modo a fazer
conviver passado e presente no mesmo lugar;
o que assegura que o humano é
impregnado pela “dívida simbólica” que
provém das gerações precedentes. A
defesa do autor pela noção freudiana de
temporalidade psíquica na apresentação de seus casos clínicos e dos conceitos
lacanianos de desejo do analista e de sujeito suposto saber, resume de forma definitiva sua adesão à máxima
de Goethe registrado por Freud em Totem e
Tabu - “Aquilo que herdastes de
teus ancestrais, conquista para faze-lo teu” -. Assim, ainda que de modo obliquo, o livro se
torna o retrato do desejo de Rocha de conjugar a complexidade psicanalítica à
reescritura do que vem a ser as noções psicanalíticas de transmissão, clínica e
paternidade, e ao seu percurso reflexivo dos estudos
interdisciplinares entre a psicanálise e a arte.
[1] Psicanalista,
doutora pela Escola de Comunicação e Cultura da UFRJ, Pesquisadora do CNPq e professora
do Programa de Pós-graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade
Veiga de Almeida (RJ)
[2]
Barthes, R. (1988) Jovens Pesquisadores. Em
O rumor da língua. São Paulo:
Editora Brasilense.