sábado, 11 de outubro de 2014

Ensaio psicanalítico sobre o ciúme: o ciúme e a música popular

Fernando Rocha[1]

Eu vi com os meus olhos e observei bem um pequeno tomado de ciúmes: ainda não falava e não podia, sem empalidecer, lançar o seu olhar para o espetáculo amargo do seu irmão de leite.
(Santo Agostinho)[2]

RESUMO
Este ensaio apresenta um diálogo entre a visão psicanalítica do ciúme e como ele é expresso na cultura em vários tempos e lugares, com especial ênfase na música popular brasileira. Também discute a tênue fronteira que separa ciúme, inveja e avidez, apoiando-se em clássicos da psicanálise e do teatro, mostrando como esses fenômenos são cantados e representados pelo imaginário social.  Em sua análise, o autor mostra ainda como o ciúme é estruturante da psique humana e como está na origem do amor.
Palavras-chave: Ciúme; inveja; psicanálise; música popular brasileira 


Inicio este ensaio com a composição Gota d’água, por expressar o ciúme na sua forma mais extremada. De Chico Buarque de Hollanda e Paulo Pontes, é tema da versão brasileira da peça teatral Medeia, adaptada em 1975 por Oduvaldo Vianna Filho.[3]

Já lhe dei meu corpo, minha alegria, já estanquei meu sangue quando fervia;/Olha a voz que me resta, olha a veia que salta, olha a gota que falta, pro desfecho da festa, por favor,/Deixe em paz meu coração/Que ele é um pote até aqui de mágoa/E qualquer desatenção faça não/Pode ser a gota d’água/Pode ser a gota d’água/Pode ser a gota d’água.

Clássico do teatro grego, Medeia, de Eurípedes (413 a.C.), retrata a tragédia de ciúme da mulher abandonada por seu marido, Jasão, a quem Medeia muito havia ajudado em difíceis tarefas. Jasão tinha ido a Cólquida para obter o “velo de ouro”[4]. Ao chegar a Corinto ele, já casado, apaixona-se pela filha do rei Creonte e abandona Medeia, que, humilhada e desconsolada, elimina a rival e seu pai com seus poderes mágicos e, além disso, mata os próprios filhos. Não poderia haver vingança maior do que a de tirar do homem, objeto de seu ciúme, a sua descendência.
A peça aborda o ciúme como avassalador tormento de alma que, revelando-se sentimento atemporal, retrata, tanto na versão grega quanto na brasileira, a angústia de mulheres possuídas pelo extremo do ciúme, em sua forma trágica.
Mais do que uma alegoria, Medeia guarda uma atemporalidade, expressa nos vários casos de filicídio no mundo contemporâneo. Como exemplo, temos o caso de um homem londrino, P.W., que, ciente de que a ex-mulher estava namorando on-line, tem um acesso de ciúme e estrangula os dois filhos com o cabo do computador, tentando, em seguida, matar-se com uma overdose de medicamentos. Foi condenado a 28 anos de prisão. Aqui no Brasil podemos citar o exemplo do comentado caso N., em que a madrasta e o pai foram acusados do homicídio de uma criança. Não se trata de exemplos isolados nem raros. Filicídios, sejam pelo pai, seja pela mãe, causados por ciúmes, povoam as páginas policiais dos mais diferentes países. No caso do filicídio praticado por Medeia na tragédia grega, o ciúme atinge os limites do pensável.
Felizmente, porém, o ciúme pode se expressar nos mais variados matizes, do extremo mais horrendo da tragédia ao ciúme “como perfume do amor”, como cantou Vinicius de Moraes em uma de suas canções. Essa dimensão do ciúme faz evocar a origem da palavra. Ciúme deriva do latim zelumen, evoluindo para “zelo” em português, e, segundo Valdemiro Rodrigues (1953), ciúme inspira-se na palavra “cio” (dos animais), significando “zelo de amor”. Nesta música também aparece a ideia do ciúme como “um mal de raiz”:

Vire esta folha do livro e se esqueça de mim/Finja que o amor acabou e se esqueça de mim/Você não compreendeu que o ciúme é um mal de raiz/E que ter medo de amar não faz ninguém feliz/Agora vá sua vida como você quer/Porém não se surpreenda se uma outra mulher/Nascer de mim, como no deserto uma flor/E compreender que o ciúme é o perfume do amor (Medo de amar, Vinicius de Moraes).

No entanto, Paul-Laurent Assoun (2011)[5] chama a atenção para o fato de que a palavra alemã utilizada por Freud para designar o ciúme é Eifersucht, que designa literalmente “o medo apaixonado, excitado, de perder o amor de alguém ou de ter que dividi-lo” (Assoun, 2001, p. 9). E também “o temor de ter que renunciar a alguma coisa que poderia gerar benefícios ou direito, o que implica a defesa ciumenta” (ibidem, p. 9). O termo Eifersucht seria composto de duas partículas: eifer, que designa o zelo, e sucht, que se refere ao movimento passional com “conotação patológica, espécie de paixão mórbida” (Freud, 1897, citado por Assoun, 2011, p. 9).
Sucht é, assim, um vocábulo que designa “uma necessidade crescente doentia, a ponto de se empregar esse termo como sinônimo de adição” (Assoun, 2011, p. 9). Nessa concepção, sucht refere-se a uma necessidade que visa a se satisfazer intensamente, de maneira a buscar o objeto suscetível de provocar a satisfação dessa necessidade imperiosa, aumentando em força, de tal maneira que adquire uma dimensão invasora e patológica. O termo freudiano sucht marcaria a dimensão da apetência pulsional (wunsch, verlangen) polarizada sobre um objeto eletivo. Dessa forma, o termo se assemelharia semanticamente a rivalidade. Além disso, o adicto tem, de fato, uma relação possessiva e ciumenta com seu tóxico.
Dizer Eifersucht é, portanto, situar o ciúme no registro “aditivo – da dependência mórbida (sucht)” (Assoun, 2011, p. 10). O ciumento apresentaria uma “forma de zelo – intempestivo – em relação ao objeto de sua chama. Ele não o larga um milímetro sequer e organiza todos os seus atos e preocupações em torno dele, sob o modo conjugado de atração e de ressentimento” (ibidem, p. 10).
Em outra abordagem, Freud (1922, p. 271) apresenta o ciúme como a “chave da vida psíquica normal e patológica”, dizendo:

O ciúme é um daqueles estados emocionais, como o luto, que podem ser descritos como normais. Se alguém parece não possuí-lo, justifica-se a inferência de que ele experimentou severa repressão e, consequentemente, desempenha um papel ainda maior em sua vida mental inconsciente (Freud, 1922, p. 271).

 O ciúme faria parte da estrutura psíquica do sujeito, organizada a partir da experiência dos ciúmes infantis.
Na perspectiva freudiana, há o ciúme “normal” ou competitivo, o ciúme projetivo – que faz com que o sujeito atribua ao parceiro ou parceira seus próprios desejos de infidelidade – e o ciúme delirante articulado à paranoia (Freud, 1922).
O ciúme “normal” seria composto de pesar, dor e sofrimento, decorrentes de pensamentos que envolvem a perda do objeto amado e da ferida narcísica dos sentimentos hostis dirigidos contra “o rival bem-sucedido e de maior ou menor quantidade de autocrítica, que procura responsabilizar por sua perda o próprio ego do sujeito” (ibidem, p. 271).
Embora considerado “normal”, não se trata de um ciúme derivado de uma situação real e nem que esteja sob o controle completo do ego consciente. É um ciúme que se encontra profundamente enraizado no inconsciente. Por ser uma continuação das primeiras manifestações da vida emocional da criança, origina-se do complexo de Édipo do primeiro período sexual (Freud, 1922).
O “ciúme normal” estaria presente tanto na estruturação e descoberta do eu como na percepção do outro. Lacan (1981, p. 47) diz que “o eu constitui-se ao mesmo tempo que o outrem no drama do ciúme”. Para ele, “o sujeito é uma discordância que intervém na satisfação especular devido à tendência que esta sugere. Ela implica a introdução de um terceiro objeto, que, na confusão afetiva como na ambiguidade especular, substitui a concorrência de uma situação triangular”.
Em interessante comentário, Assoun (2011) ressalta também que Lacan devolve a contribuição freudiana para uma metapsicologia do ciúme, retomando ainda a questão da posição estruturante deste a partir de sua função especular, bem como de sua oscilação simbólica.
Já o ciúme projetivo é apresentado por Freud (1922, p. 272) como aquele que deriva, tanto nos homens quanto nas mulheres, “da própria infidelidade concreta na vida real ou de impulsos que sucumbiram à repressão”. O ciúme decorrente de tal projeção, embora possuindo “um caráter quase delirante”, é mais acessível ao trabalho analítico pela exposição das fantasias inconscientes da própria infidelidade do sujeito (ibidem, p. 293).
O terceiro tipo de ciúme, o delirante propriamente dito, embora também tenha sua origem em impulsos reprimidos no que tange à infidelidade, nele o objeto é do mesmo sexo do sujeito.
Podemos depreender da perspectiva psicanalítica que o amor começa pelo ciúme. O ciúme estaria ligado ao sentimento de amor, ao sentimento de insegurança, no qual explode com a necessidade que se tem do objeto amado. Em carta a Ludwig Binswanger, Freud (1920, citado por Assoun, 2011, p. 5) diz que “é o ciúme que parece poder nos dar a compreensão mais profunda da vida psíquica, tanto normal como patológica”.
Para o compositor gaúcho Lupicínio Rodrigues (1914–1974), comparado por Augusto de Campos a Nelson Rodrigues na coragem de desnudar os sentimentos dos brasileiros, nem “as pessoas de nervos de aço, sem sangue nas veias e sem coração” estão isentas do ciúme. Vejamos o que ele diz no samba “Nervos de aço”:

Você sabe o que é ter um amor, meu senhor?/Ter loucura por uma mulher/E depois encontrar este amor, meu senhor/Nos braços de um outro qualquer/Você sabe o que é ter um amor, meu senhor?/E por ele quase morrer/E depois encontrá-lo em um braço/Que nem um pedaço do seu pode ser/Há pessoas de nervos de aço/Sem sangue nas veias e sem coração/Mas não sei se passando o que eu passo/Talvez não lhe venha qualquer reação/Eu não sei se o que trago no peito/É ciúme, despeito, amizade ou horror/Eu só sei é que quando a vejo/Me dá um desejo de morte ou de dor.

Para o saudoso radialista Luis Carlos Saroldi, Lupicínio Rodrigues teria conseguido formular como ninguém o que se poderia chamar, parodiando requintada terminologia sartriana, de sentimento de “cornitude”. E é exatamente esse ingrediente o responsável pelo sucesso estrondoso de Nervos de aço em 1947, revisitado trinta anos depois por Paulinho da Viola.
Mas a descrição do ciúme como “um desejo de morte ou de dor” vai reaparecer, sob outras palavras e melodia, no samba-canção que chegou ao sucesso em 1951 na voz de Linda Batista e que se tornou um modelo do gênero conhecido como música de fossa ou dor-de-cotovelo[6].

Eu gostei tanto, tanto, quando me contaram/Que te encontraram bebendo e chorando na mesa de um bar/E que quando os amigos do peito por mim perguntaram/Um soluço cortou sua voz não lhe deixou falar/Mas eu gostei tanto, tanto quando me contaram/Que tive mesmo de fazer esforço pra ninguém notar/O remorso talvez seja a causa do seu desespero/Você deve estar bem consciente do que praticou/Me fazer passar tanta vergonha com um companheiro/E a vergonha é a herança maior que meu pai me deixou/Mas enquanto houver força em meu peito eu não quero mais nada/Só vingança, vingança, vingança aos santos clamar/Você há de rolar como as pedras que rolam na estrada/Sem ter nunca um cantinho de seu pra poder descansar (Vingança, Lupicínio Rodrigues)

Arrigo Barnabé disse:

Não acredito em nada que não tenha angústia, isso talvez é o que mais me atrai nas canções de Lupicínio, e também a raiva, gosto muito de trabalhar com a raiva, a revolta. Nele tudo é verdadeiro, e raiva e angústia é meio difícil fingir. Por essa observação penetrante do ser humano nas situações limites da dor amorosa, por este humor que permeia as canções, um humor voltado para a ironia e o sarcasmo, por tudo isso estava atravessada a vontade de cantar Lupicínio (Barnabé, 2010/2011).

O ciúme é sentimento presente em crianças e adultos. Mas também entre irmãos, ou mesmo filhos que brigam pelo amor de um dos pais. Podemos considerar inaugural do ciúme e da inveja humanos a história bíblica de Caim e Abel, respectivamente, o primeiro e o segundo filho de Adão e Eva. Caim lavrava a terra enquanto Abel pastoreava ovelhas. Caim trouxe do fruto da terra uma oferta ao Senhor, e Abel também trouxe (a sua oferta) das suas ovelhas. O Senhor valorizou a oferta de Abel, o que não expressou em relação a Caim. Este, irado, sentindo-se desvalorizado e enciumado, matou o irmão.

E agora maldito és tu desde a terra, que abriu a sua boca para receber da tua mão o sangue do teu irmão. Quando lavrares a terra, não te dará mais a sua força; fugitivo e errante serás na terra (Bíblia Sagrada, Gênesis 4.12,13 ).

Também podemos ver o ciúme retratado entre habitantes de duas cidades, como Petrolina, em Pernambuco, e Juazeiro, na Bahia. Na música O ciúme, Caetano Veloso aborda de forma poética este sentimento entre os habitantes de duas cidades separadas por uma ponte sobre o rio São Francisco – o “velho Chico” –, objeto do ciúme:

Dorme o sol à flor do Chico meio-dia/Tudo esbarra embriagado de seu lume/Dorme ponte, Pernambuco, Rio, Bahia/Só vigia um ponto negro o meu ciúme/O ciúme lançou sua flecha preta/E se viu ferido justo na garganta/Quem nem alegre nem triste nem poeta/Entre Petrolina e Juazeiro canta/Velho Chico vens de Minas/De onde o oculto do mistério se escondeu/Sei que o levas todo em ti, não me ensinas/E eu sou só eu só eu só eu/Juazeiro, nem te lembras desta tarde/Petrolina, nem chegaste a perceber/Mas na voz que canta tudo ainda arde/Tudo é perda tudo quer buscar cadê/Tanta gente canta tanta gente cala/Tantas almas esticadas no curtume/Sobre toda estrada sobre toda sala/Paira monstruosa a sombra do ciúme.

Afinal, qual a origem do ciúme? O ciúme se origina nas relações precoces da infância humana, no instante fundamental da vida, em que dependemos do amor materno para sobreviver. É por isso que toda relação amorosa contém, na sua origem, um sentimento de posse e pretende ser única e exclusiva. Portanto, quanto melhor elaboramos ou simbolizamos a perda dessa dependência infantil, mais autônomos conseguimos ser e menos ciúme vamos sentir.
Segundo Lacan (1981, p. 48), “a observação experimental da criança e as investigações psicanalíticas, demonstrando a estrutura do ciúme infantil, trouxeram à luz do dia o seu papel na gênese da sociabilidade e, simultaneamente, do próprio conhecimento enquanto humano”. Essas pesquisas teriam revelado que o ciúme representa não só uma rivalidade vital, mas também uma identificação mental.
O ciúme infantil é evocado por Lacan (1981), quando cita Santo Agostinho: “Eu vi com os meus olhos e observei bem um pequeno tomado de ciúmes: ainda não falava e não podia, sem empalidecer, lançar o seu olhar para o espetáculo amargo do seu irmão de leite”.
A prematuração do ser humano ao nascer é importante para a compreensão do ciúme e da inveja. Diferente dos outros animais, o pequeno humano nasce prematuro, antes da completa mielinização do sistema nervoso, e, consequentemente, num extremo estado de dependência. Se observarmos outros animais, veremos que logo após o nascimento eles ficam de pé e buscam se alimentar de maneira ativa. Já o pequeno humano, devido ao seu estado de total dependência, vive uma experiência inicial na qual a construção do eu será calcada numa relação dual com a mãe como espelho propiciador de uma primeira identificação, em que o olhar da mãe vai funcionar como o lago para o pequeno Narciso. É por essa época que a criança começa a vivenciar a mãe como todo-poderosa, objeto de inveja, e vai ansiar para si esse poder percebido. É interessante notar que o termo inveja origina-se de videre – ver. Daí a origem das expressões “olho gordo”, “mau-olhado”, “olho de seca-pimenteira”, etc.
Elliot Jaques, citado por Melanie Klein (1968, p. 18)[7], chama a atenção para a raiz etimológica da palavra inveja: “do latim invidia, que deriva do verbo invideo – olhar alguém atravessado, considerá-lo com desconfiança ou rancor, jogar-lhe o mau-olhado, invejar ou guardar rancor de alguém”. Ele ilustra seu comentário utilizando a frase de Cícero: “provocar uma infelicidade por um mau-olhado”.
Embora universal, o ciúme está longe de ser visto como natural, pois, atravessando as relações afetivas, evoca os mais diversos sentimentos.
No artigo “Ciúme e traição: reflexões antropológicas”, a antropóloga Mirian Goldenberg apresenta interessantes dados de 1996 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, de homens e mulheres das camadas médias urbanas do Rio de Janeiro, que evidenciaram que, embora o ciúme e a infidelidade consistam em um dos principais problemas vividos nos relacionamentos amorosos, homens e mulheres apresentavam um discurso paradoxal, no qual, de um lado, há a exigência de privacidade, independência e autonomia e, de outro, de “sinceridade absoluta”, cumplicidade e complementaridade.
A autora indaga: como conciliar o não conciliável? Como fazer dialogar “sinceridade absoluta e cumplicidade com respeito à privacidade e à individualidade?” Como combinar o sentimento de posse contido num relacionamento amoroso e o desejo de preservação dos espaços individuais?
Há um paradoxo importante que se deve levar em consideração: enquanto a sexualidade humana é naturalmente poligâmica, a sociedade em que vivemos é monogâmica. Ou seja: a natureza é poligâmica e a nossa sociedade é monogâmica. Nossa cultura tenta resolver essa contradição. A fidelidade, então, não é natural, mas uma tomada de posição, derivando de uma escolha absolutamente racional.

De noite eu rondo a cidade/a te procurar hei de encontrar/No meio de olhares espio/em todos os bares você não está/Volto pra casa abatida/desencantada da vida/O sonho alegria me dá/Nele você está/Ah, se eu tivesse quem bem me quisesse/este alguém me diria/Desiste esta busca é inútil eu não desistia/Porém com perfeita paciência volto a te buscar hei de encontrar/Bebendo com outras mulheres/rolando dadinho jogando bilhar/E neste dia então/Vai dar na primeira edição/Cena de sangue num bar na avenida São João (Ronda, Paulo Vanzolini).

Uma das características humanas, diz Freud em Totem e tabu (1913), é desejar o que é proibido. Daí a proibição ser um elemento importante para fazer ressurgir o desejo. Esse gosto pelo proibido justifica a necessidade de criar um mandamento como o nono, que ordena “não desejar a mulher do próximo”. A existência desse mandamento revela que o desejo existe no humano e carece de interdição. Essas interdições se impõem na cultura, revelando-se muitas vezes adequadas, ao possibilitar o apaziguamento das pulsões. Na ausência desse apaziguamento, há o possível aparecimento de patologias e, neste sentido, diferentemente das religiões, a psicanálise propõe soluções singulares.
Não sendo possível desvincular o ciúme do adulto do ciúme da criança, ou seja, do ciúme compreendido como uma estrutura do psiquismo humano, haverá sempre uma raiz infantil no ciúme do adulto.
Uma música do repertório popular que nos evoca a imagem de um ciúme adulto com suas raízes infantis é Lábios que beijei, composição de J. Cascata e Leonel Azevedo, um dos maiores sucessos da brilhante carreira de Orlando Silva, gravada em 1937:

Lábios que beijei, mãos que afaguei/Numa noite de luar assim/O mar no céu bramia/E o vento a soluçar pedia/Que fosses sincera para mim/Nada tu ouviste/E logo partiste/Para os braços de um outro amor/Eu fiquei chorando/Minha mágoa cantando/Sou a estátua perenal da dor/Passo as noites soluçando com meu pinho/Carpindo a minha dor sozinho/Sem esperanças de vê-la jamais/Deus tem compaixão deste infeliz/Por que sofrer assim?/Compadecei-vos dos meus ais/Tua imagem permanece imaculada/Em minha retina cansada/De chorar por teu amor/Lábios que beijei/Mãos que afaguei/Volta dá lenitivo à minha dor.

Para compreendermos o ciúme no adulto, faz-se necessário compreendermos o ciúme na criança. O ciúme na criança nos remete, inevitavelmente, como já vimos, à sua dimensão estruturante. O ciúme ocorre na passagem da relação dual com a mãe para a ocupação do lugar de filho na relação triangular edípica – no momento marcado pelo medo de perder para outro o seu objeto de completude, de amor primário.
É no estabelecimento da introdução da função paterna que será definida a estrutura do ciúme, originada dos amores infantis. O ciúme nasce no momento denominado por Freud de complexo de Édipo, havendo, portanto, uma profunda ligação entre o ciúme do adulto e o ciúme da criança.
Assim, supõe-se que a vivência imaginária da criança de que foi traída pela mãe com o pai vai abalar a fantasia de onipotência infantil. Embora constitutivos do humano, inveja e ciúme nascem em momentos distintos, sendo a inveja anterior ao ciúme.
Como vimos, o estado de dependência do humano ao nascer o faz experienciar a mãe numa não diferença, em que ele é ao mesmo tempo um outro e si mesmo, num movimento de fusão-desfusão. Ela é vivenciada como aquela capaz de preencher-lhe as faltas e necessidades, levando-o ao sentimento de inveja. Por conseguinte, o bebê vai “perceber” a mãe como todo-poderosa, não diferenciada de si, estando ele ainda indiscriminado. Neste sentido, a inveja é uma experiência narcísica, própria a todos os bebês humanos, anterior à aquisição do sentimento de alteridade e, poderíamos dizer, contemporânea da primeira experiência de satisfação.
O ciúme, contemporâneo do complexo de Édipo, envolve uma relação com o outro. Já a inveja se refere à relação do indivíduo com uma só pessoa, remontando à mais primitiva relação exclusiva com a mãe. Ela decorre da relação de total dependência do bebê com a mãe, sendo esta a fonte de todo o amor. É nessa experiência precoce que ocorrem as marcas de formação tanto da inveja como do ciúme.
Klein (1968) estabelece importante distinção entre a inveja, o ciúme e a avidez. Para ela, a inveja seria o sentimento de cólera que invade um sujeito quando este teme que um outro possua alguma coisa de desejável e que dela goze. Dessa forma, “a impulsão invejosa tende a apoderar-se deste objeto ou a estragá-lo” (p. 17). Já o ciúme se fundaria sobre a inveja, mas, enquanto esta implica uma relação do sujeito com uma só pessoa e remonta a toda primeira relação exclusiva com a mãe, “o ciúme comporta uma relação com duas pessoas no mínimo e convergiria principalmente ao amor que o sujeito sente como lhe sendo devido e tomado por um rival” (p. 18). Por sua vez, a avidez seria a marca de “um desejo imperioso e insaciável, que vai ao mesmo tempo para além do que o sujeito tem necessidade e além do que o objeto pode ou quer lhe acordar” (idem).

Na dimensão inconsciente, a avidez busca essencialmente esvaziar, exaurir ou devorar o seio materno; ou seja, sua finalidade é uma introjeção destrutiva. A inveja não visa apenas à depredação do seio materno, ela tende, além disso, a introduzir na mãe, antes de tudo em seu seio, tudo o que é mau, e primeiramente excrementos maus e partes más do self, a fim de deteriorá-la e de destruí-la. O que, no sentido mais profundo, significa destruir sua criatividade (Klein, 1968, p. 18).

Klein (1968) conclui afirmando que “inveja e avidez tendem à destruição” – a primeira pela via da projeção e a segunda, de modo mais radical, pela introjeção. Já o ciúme seria vetorizado pela relação amorosa com o outro, ainda que mesclado com uma destrutividade de fundo invejoso.

A inveja dirigida ao seio materno e o aparecimento do ciúme estão diretamente ligados. O ciúme se funda sobre a rivalidade com o pai, suspeito e acusado de ter se apoderado do seio materno e da mãe. Essa rivalidade marca os estádios iniciais do complexo de Édipo positivo e negativo, que aparece normalmente ao mesmo tempo que a posição depressiva no decurso do segundo quarto do primeiro ano (Klein, 1968, p. 40).

Para Assoun (2011), a inveja ciumenta estaria aquém da cena originária, momento em que o bebê, ao ver a mãe se afastar, dá-se conta de sua dor. Essa “dor originária” sinalizaria a inscrição no sujeito de um objeto a perder. Trata-se, segundo Freud (citado por Assoun, 2011) da dor “diante do rosto estranho que vem usurpar o lugar do outro materno procurado pelos olhos” (p. 45). Freud apresenta a cena originária da separação como sendo o momento em que a criança vê a mãe se ir, constituindo o acontecimento mudo, pré-histórico do ciúme.
Portanto, mesmo antes da instauração do ciúme, a dor já estaria presente, marcando a existência de um ciúme ulterior na dialética do aparecimento/desaparecimento. A mãe sabe, então, gerir a situação, brincando de desaparecer, prometendo ao mesmo tempo seu reaparecimento. Mais tarde, porém, a criança fará hipóteses sobre as causas desse vaivém materno, atribuindo-o ao pai, explicando o ciúme que permanece infiltrado de dor, já em sua origem (Assoun, 2011).

O ciúme dói nos cotovelos/Na raiz dos cabelos/Gela a sola dos pés/Faz os músculos ficarem moles/E o estômago vão e sem fome/Dói da flor da pele ao pó do osso/Rói do cóccix até o pescoço/Acende uma luz branca em seu umbigo/Você ama o inimigo/Se torna inimigo do amor/O ciúme dói do leito à margem/Dói pra fora na paisagem/Arde ao sol do fim do dia/Corre pelas veias na ramagem/Atravessa a voz e a melodia (Dor de cotovelo, Caetano Veloso).

Se na música popular brasileira o ciúme foi cantado em diferentes matizes, com relação aos clássicos da literatura talvez a obra mais significativa seja Otelo, de Shakespeare, exemplar quando se trata do ciúme. Se fizermos um resumo da trama, encontraremos: Otelo é o general mouro do reino de Veneza que, por ciúmes e inveja, é vítima de uma armadilha do seu alferes Iago, que se vinga de Otelo porque este promoveu Cássio, jovem soldado florentino e grande intermediário nas relações entre Otelo e Desdêmona, em lugar dele, Iago.
Contrariando o pai, Brabâncio, rico senador de Veneza, Desdêmona se casa com Otelo. Mas a raiva do pai contra o casamento foi minimizada porque Otelo gozava da estima e da confiança do Estado, por ser leal, muito corajoso e ter atitudes nobres.
Iago, que odiava Otelo e Cássio, começou a semear a discórdia: hábil e profundo conhecedor da natureza humana e sempre fazendo reflexões sobre a humanidade, Iago sabia que, de todos os tormentos que afligem a alma, o ciúme é o mais intolerável e incontrolável.
Dando continuidade a seu plano, Iago insinuou a Otelo que Cássio e sua esposa poderiam estar tendo um caso. O plano foi tão bem traçado que Otelo começou a desconfiar de Desdêmona. Depois de várias armadilhas criadas por Iago para fazer Otelo acreditar na traição da esposa, Otelo, em total descontrole, asfixia Desdêmona em seu quarto. Ao saber que matara sua amada injustamente, desesperado apunhalou-se, caindo sobre o corpo da mulher. Otelo morre, beijando a quem tanto amava. Ao fim da tragédia, Cássio passa a ocupar o lugar de Otelo e Iago é entregue às autoridades para ser julgado.
Comentando passagens de Otelo, Klein (1968) ressalta que Shakespeare não parece sempre distinguir a inveja do ciúme. E ilustra sua observação com o seguinte verso: “Oh, senhor, cuidado com o ciúme. É o monstro de olhos verdes que desdenha da carne que o nutre” (ibidem, p. 20).
Klein (1968, p. 19) chama a atenção para o fato de o invejoso ser insaciável, sempre insatisfeito. “Monstro de olhos verdes”, traz a inveja enraizada em si, encontrando facilmente um objeto para o qual dirigi-la, revelando o estreito laço entre ciúme, inveja e avidez.
Ainda segundo Klein (1968), Otelo, dominado pelo ciúme, destrói o objeto que ama, o que caracterizaria “uma paixão ignóbil”.

O ciúme é uma paixão nobre ou ignóbil segundo o objeto. No primeiro caso, ele (o ciúme) se traduz por uma imolação aguçada pelo medo, no segundo, por uma avidez estimulada pelo temor. A inveja é sempre uma paixão vil, provocando as piores paixões na sua esteira (Crabb, citado por Klein, 1968, p. 19).

Segundo o English Synonym, de Crabb, citado por Klein (1968, p. 19), “o ciúme é o temor de perder o que se possui; a inveja é o sofrimento de ver outro possuir o que se deseja para si próprio. (...) O prazer do outro atormenta o invejoso, que só se compraz no infortúnio dos outros”.
Para Klein (1968), a atitude geral em relação ao ciumento difere da relativa ao invejoso. Ela lembra que em certos países, como a França, um crime passional cujo móvel é o ciúme beneficia-se de circunstâncias atenuantes, devido ao fato de a morte de um rival implicar o amor pela pessoa infiel. O que significa, diz ela, “que em nossa terminologia o amor pelo ‘bem’ existe e que o objeto amado não é danificado ou deteriorado como o seria pela inveja” (p. 19).
Já na literatura brasileira uma obra exemplar que retrata o ciúme é o romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, no qual é narrada a famosa história da desconfiança que o personagem Bentinho tem de sua mulher, Capitu, achando que esta o traía com o seu melhor amigo, Escobar.
Dom Casmurro é uma obra cuja leitura oferece um leque de possibilidades interpretativas, encontrando no personagem Bento férteis elementos sobre a problemática do ciúme, Édipo e homossexualidade[8]. Seguindo o desejo da mãe, Bento foi criado para ser padre, ingressando no seminário. Essa atitude materna expressava o desejo de conservar o filho preso a ela. Após abandonar o seminário, Bento reencontra Capitu, namoradinha da infância. Sua trajetória de vida, até então alimentada pelo desejo materno, tornou-o um sujeito tristonho, frágil e infantilizado. Embora Capitu amasse Bentinho, percebia que para ele era difícil aceitá-la, uma vez que ela não correspondia à imagem da mãe.
Foi ainda no seminário que Bento conheceu Escobar, desenvolvendo por ele tanta admiração que poderia evocar uma relação amorosa parecendo sexualizada (não sublimada pela amizade), percebida por Capitu, que, em certo momento, indaga quem era aquela pessoa que merecia tanto afeto na forma de se despedir.
Bento acaba se casando com Capitu, tem um filho, mas não consegue assumir a função paterna, pois sua identificação com a figura masculina parecia pouco consistente. A impossibilidade de ocupar essa função o leva a uma atitude bizarra e extremada, a ponto de dizer: “Não é meu filho.” Porque prisioneiro do desejo materno, Bento viu-se na impossibilidade de assumir o lugar de “homem-marido e de homem-pai”, o que poderia explicar sua escolha homossexual inconsciente, responsável pelo ciúme (Freitas, 2004).
À medida que cresce o seu impulso homossexual por Escobar, Bento projeta cada vez mais tal impulso em Capitu, o que intensifica seu ciúme. Como bem lembra Freud (1922, p. 273), “o ciúme delirante é o sobrante de um homossexualismo que cumpriu seu curso e corretamente toma sua posição entre as formas clássicas de paranoia”. Como tentativa de defesa contra um forte impulso homossexual, ele pode, no homem, ser descrito pela fórmula: “Eu não o amo; é ela que o ama!” (Idem, p. 273).
Seria, então, o “ciúme paranoico” de Bento a expressão também de uma vivência invejosa? Neste caso, poderíamos pensar que tanto Shakespeare com Otelo quanto Machado de Assis com Bento oscilam entre a inveja e o ciúme? Essa oscilação poderia ser expressa na dúvida trazida por Bento quando indaga se foi realmente traído ou se foi seu “ciúme doentio que (...) o fez deturpar a realidade”. O ciúme doentio conteria a inveja?
Face ao afastamento do objeto amoroso, o ciumento vê-se perdido e sem referência, e tenta desesperadamente recuperá-lo no espelho de sua própria imagem que o outro representa. A expressão de um poeta sertanejo anônimo nos canta:

Tas vendo aquela cacimba naquela baixa acolá?/Te fica pro riba dela, espia que tu verá/A cara da tua cara/Lá debaixo a te espiá/Mas se acaso te arretira/Gurugutu, nem sina/Aquilo que fez contigo faz com outro que vier/Tas vendo aquela cacimba?/É o coração da muié [9].

Resumen
En este ensayo se presenta un diálogo entre la visión psicoanalítica de los celos y su expresión en la cultura en diferentes momentos y lugares, con especial énfasis en la música popular brasileña. También se ocupa  de las fronteras  que separan los celos, la envidia y la avaricia, apoyándose en los autores clásicos del  psicoanálisis y del teatro, mostrando cómo estos fenómenos son cantados y representados por el imaginario social. Los celos son así tratados en sus diferentes tonalidades, desde el más horrendo de la tragedia, hasta los celos como “el perfume del amor". También pone de relieve la contribución del psicoanálisis para una meta psicología de los celos, retomando la cuestión de la posición estructurante de los celos a partir de su función especular, así como su oscilación simbólica. En su análisis, el autor también muestra cómo los celos se originan en la temprana infancia de los humanos, en el  momento clave de la vida en que dependemos del amor materno para sobrevivir. Por último, la conclusión enfatiza que toda relación amorosa contiene, en su origen, un sentido de propiedad, pretendiendo ser único y exclusivo. La autonomía en relación con los celos dependerá de la elaboración o simbolización de esa vivencia infantil.

Palabras clave: Los celos; la envidia; el psicoanálisis; la música popular.
Abstract                                                           
This paper presents a dialogue between the psychoanalytic view of jealousy and its expression in culture at different times and places, with special emphasis on Brazilian popular music. It also addresses the boundary that separates jealousy, envy and greed, relying on classics of the psychoanalysis and of the theater, showing how the social imaginary sings and represents these phenomena. Jealousy is therefore discussed in its various shades, from the most horrendous extreme of the tragedy to the jealousy as “the perfume of love”. In addition, the paper highlights the contribution of psychoanalysis to a metapsychology of jealousy, resuming the issue of its structuring position from its mirroring function, as well as its symbolic oscillation. In his analysis, the author also shows how jealousy emerges in the early childhood relationships, in the fundamental moment of life, where we depend of maternal love for survival. Finally, the conclusion emphasizes that every love relationship contains in its origin a feeling of ownership and aims to be unique and exclusive. The autonomy in relation to jealousy will depend on the elaboration or symbolization of this experience during childhood.

Keywords : Jealousy; envy; psychoanalysis;popular music.




Referências bibliográficas
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[1] Psicanalista. Membro Titular da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro - Formação psicanalitica na Societé Psychanalytique de Paris.
[2]Video et expertus sum zelatem parvulum; nodum loquebatur et intuebatur pallidus amare aspectu conlacteum suum.” Saint Augustin. Confessions, livre I, section 7. Paris: Desclée de Brouwer, 1962, p. 293.
[3] A peça Gota d'água foi escrita em 1975 e publicada em livro homônimo no mesmo ano pela editora Civilização Brasileira. A ideia foi originalmente derivada de um trabalho de Oduvaldo Vianna Filho, que adaptara a peça grega clássica de Eurípedes sobre o mito de Medeia para a televisão, e à memória de quem foi dedicada. No prefácio do livro, os autores registram: “O fundamental é que a vida brasileira possa, novamente, ser devolvida, nos palcos, ao público brasileiro. Esta é a segunda preocupação de Gota d’água. Nossa tragédia é uma tragédia da vida brasileira.” A montagem original contou com coreografia de Luciano Luciani, cenografia e figurino de Walter Bacci, direção musical de Dori Caymmi e direção geral de Gianni Ratto
[4] Velo de ouro: pele de um carneiro divino ao qual se atribuíam poderes mágicos de cura.
[5] Todos os trechos referidos a Paul-Laurent Assoun e citados neste artigo são tradução livre do autor.
[6] Contam que foi Lupicínio Rodrigues o inventor do termo “dor-de-cotovelo”, que se refere à prática de quem crava os cotovelos em um balcão ou mesa de bar, pede uma bebida e chora pela perda da pessoa amada. Conta-se que, constantemente abandonado pelas mulheres, ele buscou na própria vida a inspiração para suas canções, em que a traição, o amor e o ciúme andavam sempre juntos.
[7] Todos os trechos referidos a Melanie Klein e citados neste artigo são tradução livre do autor.
[8] Um interessante trabalho sobre esta temática encontra-se em “Capitolina, a que ama no lugar do outro”, de Luiz Alberto Pinheiro Freitas. In Letras compartilhadas: ciúme, a leitura de um grande tema. Revista de (in) formação para agentes de leitura. Ano 4, 2004. Publicação adotada pela Petrobras.

[9] A cacimba, poema matuto-sertanejo, que aprendi na juventude, expressa bem a vivência do ciúme ligada ao narcisismo. Eu imaginava que o poema fosse de autoria de Catulo da Paixão Cearense ou de Zé da Luz, mas não consegui encontrar a referência exata da autoria.








sábado, 16 de agosto de 2014

TRANSMISSÃO DA PSICANÁLISE EM NOSSOS TEMPOS - Resenha por Betty B. Fuks


Resenha 1 
Transmissão da psicanálise  em nossos tempos.
Resenha do livro “Entrevistas Preliminares em Psicanálise; Rocha Fernando J. B. Casa do Psicólogo. São Paulo. 2011. 219pgs.
Autora: Betty B Fuks.  Psicanalista.
 No conto “A terceira margem do rio”, Guimarães Rosa fala da transmissão: um pai decide e ir-se numa canoa para o meio do rio, sem nunca voltar a uma das duas margens possíveis.  Os filhos assistem à partida do pai que abençoa apenas um deles, aquele que pede para ir junto com ele. Um dia acena a este filho para que  o substitua na tarefa de manter-se no fluxo contínuo do rio.  Mas tomado pelo pânico que o apelo lhe causara, o filho não atende o pedido e o conto, daí em diante, é o relato de sua culpa.  A crítica literária, em geral,  traduz o  impasse entre o pai e o filho como o impasse de todo escritor diante do rio da tradição. Para criar sua obra o escritor deve ocupar o lugar da terceira margem, lugar simbólico que permite a transmissão de  uma herança cultural[1].
O mesmo vale para o impasse dos psicanalistas diante da transmissão e da preservação do  lugar da psicanálise na cultura.   É esta a lição que encontramos no livro, recentemente lançado pela editora Casa do Psicólogo,  Entrevistas Preliminares em Psicanálise.  O autor Fernando José Barbosa Rocha possui um estilo de transmissão que parece estar calcada no mandato de um outro Fernando, o poeta dos heterônimos: Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: "Navegar é preciso;  viver não é preciso"./ Quero para mim o espírito [d]esta frase,    
transformada a forma para a casar como eu sou: Viver não é necessário;  o que é necessário é criar”.   Assim,  o nosso Fernando das entrevistas preliminares propõe,  na introdução do livro,  aproximar, sob a égide da alegoria, navegação e  psicanálise.  Com isso,  aponta um problema que toca de perto a transmissão da psicanálise: de que modo conciliar o valor dos chamados conceitos que instituem a teoria psicanalítica com uma prática que se dá essencialmente na transferência, na relação com o outro, nas formas tornadas possíveis pelo desenvolvimento da linguagem?
               Rocha propõe  as duas grandes qualidades de Freud, criatividade e precisão clínica,  como o norte do trabalho  que irá apresentar nas páginas de  um livro marcado pela leitura de vários autores que se debruçaram sobre a clínica e a teoria  analítica em seu mais de cem anos de existência.    Partindo da própria experiência  que viveu em outro país,  o autor escolhe  trabalhar um dos temas mais importantes da psicanálise, colocado em destaque por Freud no texto “O início do tratamento” em 1912.   Para evitar a interrupção da análise, a fim de se conhecer o caso e decidir sobre a possibilidade de sua analisabilidade  o inventor do método psicanalítico entendia como necessário um tratamento preliminar no qual  o analista avalia as condições do paciente à transferência, motor da análise.   Esse período foi chamado de “entrevistas preliminares” por Jacques Lacan na releitura que empreendeu da escritura freudiana.  Para o mestre de Paris não poderia haver entrada em análise sem as referidas entrevistas.  Ele as definiu como um tempo que compreende a formulação do diagnóstico estrutural até o momento em que se inicia a análise propriamente dita. 
            Num esforço de traduzir a importância deste período, Rocha expõe algumas vinhetas clínicas, o que é extremamente incomum no universo das publicações psicanalíticas.   Diga-se de passagem que são poucos os analistas que têm a coragem de dar testemunho, por escrito,  da condução das análises que empreende.    Nosso  autor  mostra, através de algumas análises que conduziu,   que a prática  das entrevistas preliminares inicia quando um paciente marca uma primeira entrevista com um psicanalista.   Expondo  a experiência,  Rocha  facilita ao leitor apreender do que se trata e qual a função destas entrevistas com a qual o analista procura garantir  o êxito da condução do tratamento.  Por outro lado ressalta, também, que  a diversidade de constelações psíquicas  sempre reservam ao analistas um elemento de surpresa que ele não tem como prever.
           A aspiração de  Rocha  em distinguir o ato clínico do relato do analista certamente foi o que o levou a desenvolver uma técnica  de transmissão a partir da própria experiência psicanalítica.  O que os pacientes lhe transmitiram,  portanto lhe ensinaram durante um determinado período,   é que  a  importância das entrevistas preliminares é de tal monte  que não há análise sem o estabelecimento destas entrevistas.    Rocha deixa claro que no início de um tratamento o analista está diante de uma encruzilhada: criar com o analisante condições para que o sintoma que o leva a procurar um analista seja transformado em sintoma analítico,  ou aceitar a impossibilidade de seguir adiante com a cura.    Ao analista cabe “redirecionar a demanda do entrevistando, podendo, assim, conduzi-lo a uma demanda de análise” (Rocha, p. 35).   Esta ação instala o dispositivo da transferência, o playground, como dizia Freud,  onde se desenrolará uma  análise.   Neste lugar que espelha  não apenas o motor de uma análise mas a própria resistência do inconsciente,   o analista encontra meios de fazer com que o analisante se submeta à associação livre,  cuidando dele próprio  não fugir, jamais,  de manter sua escuta voltada  ao que emerge em função dos efeitos desta regra básica.    A insistência neste dispositivo que emerge nas referidas entrevistas reaparece em todos os capítulos do livro.  No próprio sumário observa-se que o autor, preocupado em circunscrever os momentos  e as condições cruciais  que venham garantir o sucesso da direção de um tratamento,  se manterá do início ao fim da obra fiel ao tema anunciado claramente no próprio título do livro.
         Um outro aspecto do valor da exposição de Rocha  encontra-se na reflexão que o leitor  é levado a fazer sobre o futuro da psicanálise em nosso tempo, um tempo marcado pela cultura do extermínio do sujeito do inconsciente. Ameaças cientificistas pesam sobre a psicanálse : as neurociências, na pretensão de explicar o inconsciente em termos neuronais,  concorrem para que o sujeito do desejo seja categoricamente  exterminado.  Portanto, um livro que dá mostra da importância da transmissão dos valor das ferramentas teóricas que permitem operar a prática clínica,  merece saudações.      “Entrevistas Preliminares” estabelece no último capítulo uma forte resistência a que o corpo biológico -  em voga no momento através da metodologia estatística do DSM e do CID  que  encarrega  a nova psiquiatria  tratar os sofrimentos humanos, exclusivamente, através de medicamentos  e  descartar totalmente o sentido do sofrimento, o sintoma como produção  de linguagem -, se sobreponha ao corpo da linguagem.
          Aí reside, ao meu ver, um dos maiores valores  do livro  em questão:  defender a excepcionalidade das entrevistas preliminares  na contemporaneidade, um tempo invadido pelas patologias do corpo.   Resguardar o que foi prescrito por Freud na contemporaneidade  significa,   navegar com os instrumentos precisos de seu legado e,  ao mesmo tempo, estar aberto à criatividade para enfrentar o acaso com a qual o analista se depara a cada caso, a cada interrupção abrupta do tratamento;  e, finalmente, a cada término de uma viagem por mares nunca dantes navegados. 




RESENHA 2


      
Entrevistas Preliminares em Psicanálise: incursões clínico – teóricas
Rocha, Fernando J. B., Casa do Psicólogo. 2011. 219pp
Resenha por Sandra Gonzaga e Silva

Um aviso ao leitor incauto: este não é um livro sobre Entrevistas Preliminares em Psicanálise. É claro que Fernando Rocha não os está enganando como bem nos alerta Sergio Zaidhaft em seu prefácio ao livro, no entanto é da viagem - análise, seus inícios, mas também seu percurso, que nos fala o autor.
Se” navegar é preciso” e a vida não tem precisão, o cuidado no manejo do enquadre de que fazem parte as entrevistas iniciais e seus atributos é fundamental para conter a inelutável errância do material clínico.
Necessário é dizer, seguindo Fernando, que o diário de bordo desta viagem só poderá ser escrito a posteriori, sendo em suas palavras “a articulação teórica que não diz a vivência do analisando, mas é sobretudo um mapeamento desta.”(pg17)
A afirmação é importante para refletirmos sobre o engessamento da escrita que vemos ocorrer com frequência nos Institutos de formação em psicanálise. A ilusão da fidedignidade entendida como tradução simultânea pode estar entre os fatores que inibem a produção dos relatos psicanalíticos.
Ainda no Cais
Rocha justifica e enfatiza o tempo das entrevistas preliminares como campo de investigação dos critérios de analisabilidade e definição da possibilidade de um dado analista empreender o processo psicanalítico com um dado paciente. Em outras palavras, às interrogações feitas ao candidato à análise, corresponderiam perguntas que o analista se faria sobre seu lugar de analista em relação à determinado analisando.
Tendo sempre como norte a dupla singular analista analisando, são discutidas dentre outras, as noções de pedido de ajuda e demanda de análise, diagnóstico flutuante e divã temperado, balizas para o processo a ser iniciado. É na escuta das entrevistas preliminares que o analista poderá perceber as possibilidades do candidato à análise abrir-se para a construção de novos sentidos no que tange ao seu sofrimento psíquico. A construção de um esboço diagnóstico neste momento orientará as adaptações que porventura sejam necessárias no enquadre analítico. Incluído nesta etapa estará o desejo de analisar do analista, tributário de seu próprio processo análitico.         


Soltando as âncoras
O livro de Fernando Rocha foi elaborado a partir de seminários ministrados em instituições psicanalíticas e em grupos de estudo. Acompanhando os seminários verificamos que ali pelo segundo, já embarcaram os analisandos presentes nas vinhetas clínicas e os autores que a partir de Freud e a ele retornando em releituras iluminadoras, colaboram com o autor na apresentação dos conceitos do arcabouço psicanalítico, que vão sendo revisitados ao longo dos seminários numa integração teórico clínica exemplar.      
É dessa maneira que a apresentação do caso de “Monsieur M” e a eclosão de um ato falho (espada/escada) em uma de suas entrevistas preliminares, põe em evidência o conceito de retificação subjetiva, entendida como a mudança de posição do analisando, que ao se implicar na formação de seu sintoma, muda a relação com sua demanda e retifica seu lugar diante de seu sofrimento, sendo esta a mudança que inaugura sua entrada em análise. (pag55). O conceito intuído por Freud quando lança à Dora a pergunta sobre sua participação na desordem de que se queixa, é nomeado posteriormente pela releitura que lhe dá Lacan.
Essa forma de integrar a vivência clínica com a reflexão teórica de maneira clara e didática a cada seminário, nos permite tomar contato com temas seminais da psicanálise como a transferência, a castração, experiência de satisfação, recalque, ego ideal e ideal de ego, as organizações psíquicas e suas consequências no manejo clínico, as teorias pulsionais etc. A transmissão da psicanálise ancorada na leitura de Freud e dos autores pós freudianos depuradas ao longo da sólida experiência profissional do autor traduz-se numa escrita a um só tempo densa e simples, resultando numa leitura extremamente prazerosa.
Acompanhar a viagem que Fernando Rocha empreende com seus analisandos  tendo como ponto de partida as entrevistas preliminares, possibilita inúmeras reflexões sobre o fazer psicanalítico, seus impasses, sua potência.
Se pensarmos as resistências que a contemporaneidade oferece à psicanálise com seus atributos de eficácia, imediatismo, satisfação plena, o tudo poder, tudo ser, fenômenos sobre os quais Bauman, citado por Rocha, se debruçou em seu livro O mal estar na pós modernidade (pg161,162), poderíamos afirmar que a dimensão ética da psicanálise se instaura quando caminha na contramão da lógica do gozo ilimitado, expressão  da pulsão de morte nos tempos atuais.

Ao desenhar o enquadre analítico como representante da Lei que interdita, limita e propicia o acesso ao simbólico, Rocha vai sublinhar o caráter estruturante do desejo que permite representar ao invés de agir e que discrimina o agir concreto do agir simbólico.”Somente quando nos encontramos interditados, limitados é que podemos aspirar ao ilimitado”(pag67) nos fala Fernando enfatizando o encontro do sujeito com sua incompletude,” submetido à temporalidade que o circunscreve em sua dimensão finita”(pg69).
Em que porto ancoramos?
Guardando a especificidade de cada viagem, as tormentas, as calmarias e as tantas surpresas que enfrentam analista e analisando, chegar ao término do percurso analítico para Fernando Rocha diz respeito a um aspecto formal, pois leva em conta que a experiência analítica uma vez introjetada é uma aventura interminável. Uma análise que termina encontrará o sujeito cuidando de seu desejo, bem acompanhado de si e dos novos laços que construirá em suas novas viagens. 


RESENHA 3

Entrevistas preliminares em psicanálise: incursões clínico-teóricas
Rocha, Fernando J. B. Casa do Psicólogo. São Paulo. 2011. 219 pp.
Resenha por Viviane Frankenthal, psicanalista da SBPRJ.

“Entrevistas Preliminares” - assunto de interesse para os psicanalistas de qualquer tempo e escola - nos é apresentado de um jeito novo desta vez. Sob a forma de seminários, questões são levantadas e reflexões oferecidas, baseadas no pensamento singular clínico e teórico do autor, apurado e depurado durante sua extensa vida profissional.
Como o sofrimento se transforma em demanda de análise?
Fernando Rocha nos conduz pelos caminhos que a psicanálise traçou, ontem e hoje, para compreender essas questões. O fio condutor é o tema das entrevistas iniciais, mas ao puxá-lo, o autor desenrola toda a teoria psicanalítica. Navega pelas águas profundas da psicanálise, trazendo à tona conceitos e acepções de diversos autores da maneira simples que só uma grande experiência pode proporcionar. Os textos mais relevantes da teoria psicanalítica escolhidos a dedo pelo autor fundamentam, de forma clara e didática, seus argumentos.
Proust nos vem à mente quando nos sentimos invadidos pelo mesmo sentimento que ele descreve em “Sobre a leitura”. Ou seja, as tarefas diárias tornam-se meras interrupções para o leitor que se debruça sobre esse texto querendo continuar a ler e refletir sem quebrar o encadeamento criativo que o escritor apresenta. Como em uma conversa solitária, onde a personalidade do autor está presente, não queremos nos distrair...
O original neste livro é a forma como o autor encadeia as ideias para tecer o texto de cada seminário e como o texto de cada seminário, por sua vez, está vinculado ao seminário anterior e ao posterior. Vamos seguindo seu pensamento e nos damos conta, em certa altura do trajeto, de que nosso patrimônio teórico, assim como nossa compreensão da clínica psicanalítica, cresceu. Há um verdadeiro processo de aprendizagem no seguimento desses seminários.
Outro ponto alto no texto são os exemplos clínicos e sua compreensão, vividos pelo próprio autor durante sua vida profissional, desde o início até hoje. Começa com Mireille e o lapso que propicia a sua entrada em análise, após algumas entrevistas preliminares: “eu queria amá-lo” em vez de “eu queria matá-lo”. Ou o ato falho de Monsieur M: “filme de capa e escada”...
Rocha nos alerta para um risco que deve ser evitado nessas entrevistas: “... o estímulo a uma relação transferencial, prolongando o número de entrevistas” (pág. 25). Isso nos fez pensar em um dos primeiros livros de Phillip Roth, “O Complexo de Portnoy” onde o protagonista, deitado no divã do psicanalista Dr. Spielvogel, narra sua história, suas lembranças de criança, da adolescência, seus dilemas sexuais, seus conflitos com a mãe judia e com o pai ausente, durante sessões de análise que se estendem por todo o livro. A narrativa termina com a única fala do psicanalista: “Então, agora talvez a gente possa começar”. O difícil “momento certo” de começar o percurso analítico para o analisando teria a ver com o reconhecimento de seu sofrimento psíquico: “o conflito interno é um estado de sofrimento onde o sujeito “se sabe” participante da situação geradora do sofrimento” (pág. 22). E todo cuidado é pouco para preservar o entrevistando de ser perturbado psiquicamente antes da decisão de tomá-lo em análise. O analista é implicado nessa decisão, cabendo a este interrogar-se sobre sua própria problemática psíquica. Esse caminho nos levará a conceitos básicos da Psicanálise como transferência, ego ideal e ideal de ego.
Entretanto, “trata-se de provar o quê”? Esta é a indagação que o autor se faz sobre as entrevistas preliminares denominadas “análises de prova” por Freud. Envereda pela problemática do diagnóstico diferencial, “diagnóstico flutuante” e analisabilidade, termos sempre caros à clínica psicanalítica e que não podem ser deixados de lado na construção do processo de análise.
Nas entrevistas preliminares, segundo Rocha, o analista faz intervenções que não são interpretações, pois estas terão efeito só após o estabelecimento da transferência. Ainda não utiliza o conjunto de recursos técnicos psicanalíticos, no entanto, “a escuta psicanalítica deverá ser mantida e exercida... já que esse modo de escutar é determinante para propiciar a entrada do potencial analisando em análise” (pág. 44). 
Fernando Rocha nos mostra como a clássica pergunta de Freud à sua analisanda Dora, “Qual é a sua participação na desordem da qual você se queixa?” poderia ser feita, ainda hoje, a todos os analisandos nas primeiras entrevistas.
Revisitamos, então, as recomendações de Freud aos analistas iniciantes e sua oposição a qualquer mecanização da técnica. Passeamos pela criação da neurose de transferência e pelo papel simbólico do contrato analítico, sob a ótica do autor fundamentada em sua clínica. Rocha destaca o lugar do analista como o lugar do simbólico, de onde irá “tecer com o analisando uma nova narrativa para a história deste” (pág. 64).
Quando recebemos uma pessoa para entrevistas iniciais, recorremos a conceitos teóricos sobre o que ocorre no psiquismo desta até o movimento que a levou ao encontro com um analista. Seu conflito interno, seu sofrimento existencial, como nos mostra Rocha, pelo que foi perdido irreversivelmente. No entanto, os parágrafos já escritos da vida daquele que nos procura, podem ser reescritos junto com o analista, transformando esse encontro numa aventura sempre inusitada, desafiadora e imprevista. Nos seminários ministrados por Fernando Rocha esses conceitos são colocados sempre de forma articulada com a clínica, a clínica dele, o que nos dá uma dimensão da consistência de suas palavras.
É o que ocorre no caso Nicole. Um pequeno atraso do analista mobiliza uma cadeia associativa inesperada. Sabemos que atrasos, férias e mudanças mobilizam. Mas o interessante é ver como a surpresa do analista pode ser pensada: “o que surpreende é a maneira singular pela qual a história de cada um é evocada” (pág. 79). E Rocha nos alerta para o risco de ficarmos numa relação baseada no nosso próprio pensamento imaginário, o que nos levaria a interpretar antes de aparecer o elemento surpresa. O autor nos mostra sempre, ao longo do livro, seu extremo cuidado no garantir a função de analista. E esse cuidado é um dos méritos do livro, pois aponta com clareza como o predomínio do pensamento imaginário do analista o deixa indiscriminado de seu analisando com graves consequências para o processo analítico.
No caso do “Homem das Vacas”, já vemos logo de início um fato recorrente em primeiras entrevistas. Uma lembrança de infância condensando os principais elementos da trama do imaginário do analisando e em torno da qual o processo analítico se desenrola propiciando mudanças. Também neste exemplo clínico, o autor trata da questão do final da análise e do destino dado ao analista. Questão essa que nos fala da condição humana e sua incompletude, da busca incessante que move o desejo.
As primeiras hipóteses diagnósticas podem ser pensadas nas primeiras entrevistas, mas só no decorrer do processo, na relação transferencial, é que se revelará a organização psíquica do analisando. Aqui o autor se refere ao paradoxo do diagnóstico em psicanálise que sempre estará presente na escuta psicanalítica. No seminário 6, ele vai tratar das estruturas psíquicas, de sua gênese a partir do complexo de Édipo, com referência na castração. Vamos percorrer um caminho profícuo desde o “Projeto para uma psicologia científica” de Freud, passando por conceitos fundamentais da psicanálise como “vivência de satisfação” e “angústia de castração” até a formação das estruturas neurótica, perversa e psicótica, desembocando no fenômeno psicossomático. Além de Freud, conversamos com Piera Aulagner, Françoise Dolto, Marty e outros autores que através do entender de Rocha vão compondo o texto até o inegável papel social da psicanálise no mundo contemporâneo.
Aqui caberia avisar ao futuro leitor de Fernando Rocha que, se tocamos nesses pontos do livro, é porque este não se esgota neles, vai muito além deste pequeno trecho apresentado! E mesmo quando terminamos de ler o livro, vemos que Proust, em seu pequeno texto “Sobre a leitura” que já citamos aqui, tem razão ao dizer que nós leitores gostaríamos de receber respostas, mas o autor só pode nos dar desejos.
Ao formular a instigante pergunta: “O que teria para dizer hoje a psicanálise? Como caracterizar a nossa época?” (pág.160), o autor incita novas perguntas e novas questões, mergulhados como estamos em nosso tempo, cada vez mais ligados em redes sociais e talvez cada vez mais sós... 
Fernando Rocha, ao resgatar Freud e outros mestres da psicanálise, nos faz ouvir Proust mais uma vez ainda: “Mas é a uma outra coisa que eu prefiro, para terminar, atribuir essa predileção dos grandes espíritos pelas obras antigas. É que elas não têm apenas para nós, como as obras contemporâneas, a beleza que nelas soube incutir o espírito que as criou. Elas recebem uma outra beleza ainda mais emocionante do fato de que a sua própria matéria – ouço a língua em que foram escritas - é como um espelho da vida”.
Por fim, o autor fala da viagem interminável intrínseca ao processo analítico. E também da solidão que bem acompanha o sujeito que termina uma análise formalmente e da aquisição de autonomia nas escolhas que ele faz sobre suas companhias na viagem da vida.
Pois bem, durante a leitura deste livro, nós fazemos parte da viagem da vida profissional de Fernando Rocha. E vale a pena!




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