Extraído de: interjornal.noticias Janeiro
03, 2013
O filósofo,
psicanalista e escritor, um dos maiores intelectuais da França, fala da
diferença entre amigos e amores e relembra de sua convivência com Sartre e
Lacan
Jean-Bertrand, de 88
anos, assina seus livros como J.-B. Estaria aí uma recusa simbólica a ter uma
identidade catalogada? Sim, porque o papa da psicanálise, autor do magistral
Vocabulaire de Ia Psychanalyse, com Jean Laplanche, não gosta de ser definido
como psicanalista. Ele também não aprecia ser chamado de filósofo, seu campo
inaugural, ou de escritor, já que não escreve contos ou romances, embora tenha
recebido em 2011 o Grande Prêmio da Academia Francesa pelo conjunto da obra. Se
é necessário classificá-Ia em um gênero literário, J.-B. Pontalis transita entre o ensaio e a
reminiscência, categoria à qual se deu o nome de "autografia". Ele
recebeu VEJA em seu pequeno escritório na mítica editora Gallimard, onde dirige
duas coleções.
O que é um amigo?
O título do meu livro
sobre esse tema é sugestivo sobre a dificuldade de definir a amizade: Le Songe de Monomotapa
("O sonho de Monomotapa"). Trata-se de uma alusão a urna fábula de Jean de La Fontaine (escritor francês do
século XVII). Na fábula, dois amigos vivem nesse país de nome estranho, e um
não possui nada que não pertença ao outro. Não haveria amizade mais verdadeira,
portanto, nem mais doce, como diz La Fontaine. Mas ela talvez só seja possível
na literatura. Por isso, entre as reflexões que faço sobre a amizade, acho que a melhor
síntese em resposta à sua pergunta é que um amigo de verdade é aquele que nos
protege dos tormentos do amor, nos afasta da fúria raivosa, faz recuar a morte.
Parece quase impossível
encontrar um, amigo verdadeiro.
Eu diria que é muito
difícil. Ainda assim, estamos sempre à procura de um. A minha busca começou bem
cedo, porque sempre tive uma relação conflituosa com meu irmão, e logo me vi
obrigado a achar fora de casa um companheiro para brincar e conversar. O fio
condutor da minha existência é essa procura por um amigo ideal. Como ocorre com
a maioria das pessoas, a intensidade dessa busca foi maior na adolescência, quando
queremos alguém para nos acompanhar nas descobertas sobre o mundo e a quem
confiar nossos segredos e medos e vice-versa. É a época da vida na qual temos
um "melhor amigo" - que, em geral, muda a cada ano, conforme vamos
crescendo e as circunstâncias variam. Apesar da sucessão de "melhores
amigos" nessa idade, a legitimidade de tais amizades não deve ser
contestada. Por um certo período, aquele companheiro de escola ou de bairro foi
realmente nosso "melhor amigo".
Mas a procura da amizade pode ser vã.
Pode, é claro, mas seria
uma lacuna bem triste no meu caso - embora haja quem conviva bem apenas com
colegas ou camaradas. Coleguismo e camaradagem são formas de amizade que, se não nos fazem sentir mais
fortes, mais vivos - é isso que quero dizer com "recuar a morte" -,
ao menos afastam um pouco a solidão amarga. Nunca deixei de ter muitos amigos,
é algo vital para mim. Evidentemente, mesmo a amizade mais verdadeira não é feliz durante todo o tempo. Às
vezes, podemos nos afastar, até por razões geográficas, ou ter disputas que
superam a simples discordância a respeito deste ou daquele assunto. A distância
e as fricções, no entanto, jamais significaram um rompimento definitivo com
meus amigos. Há quem faça o elogio da amizade sem conseguir cultivá-Ia. É o caso de
Proust (MareeI Prousl, o maior dos escrilores modernosfraneeses). Ele teve uma
profusão de amigos, mas no monumental Em Busea do Tempo Perdido há um
julgamento severo sobre a amizade.
Ele diz, em resumo, que ela requer um "eu superficial" - que a profundidade
do "eu" passa longe da relação com um amigo. Está claro que sofreu
uma decepção com a amizade.
Tanto que terminou seus anos fechado num quarto, isolado, escrevendo a obra que
considerava ser sua "verdadeira vida".
A amizade é mais vital do que o amor?
Não é mais vital, faz
parte de outra esfera. Como eu disse, o amor traz tormentos, porque é
impulsionado pela paixão. O amor é, ainda, menos durável, não se consegue
mantê-Io continuamente no nível do ardor inicial. Já se falou bastante sobre
qual seria a diferença entre amor e amizade.
A meu ver, o amor visa à satisfação plena, um objetivo tão vago quanto
inalcançável. Ocorre, então, um
paradoxo: a partir de determinado momento, ele passa a alimentar-se da
insatisfação absoluta. Como escrevo no meu livro, talvez só o amor místico seja
a exceção. A amizade, por
seu turno, nunca almeja a plenitude. Você não pode esperar tudo de um amigo,
muito menos a perfeição, mas só uma amizade verdadeira é capaz de nos proteger das oscilações
tumultuosas, da ambivalência intrínseca à relação amorosa - e também do fim do
amor, quando é comum que sobre apenas o ódio de quem você amou e por quem você
foi amado. O ódio, aliás, dura mais do que o amor.
O senhor diz em seu
livro que a amizade entre uma mulher e um homem só é
possível se não há desejo amoroso entre ambos. Isso significa que o amor não
inclui a amizade?
O amor pode incluir a amizade, mas como extensão dele
próprio. Raramente como um sentimento independente da relação amorosa. Ou seja,
"eu sou amigo porque amo", e não o contrário. Por esse motivo, acho
difícil que, ao fim de uma relação amorosa, mesmo que ele seja pacífico, a amizade entre um casal sobreviva.
Por que as mulheres, de
acordo com o senhor, não gostam que seu marido ou companheiro por vezes prefira
estar com seus amigos a estar com elas?
Não é o caso da minha
mulher (risos). Mas, em geral, mesmo as menos possessivas se comportam dessa
forma ciumenta. Veem nisso uma troca, um sinal de falta de amor. Noto que boa
parte delas aceita melhor que seu companheiro saia com amigas, desde que
previamente informadas, do que com amigos. É como se vissem no fato de um homem
querer a companhia de outro uma tendência à homossexualidade. Na origem grega
da palavra, toda amizade por um semelhante é "homo".
Essa evidência, no entanto, para por ai.
A natureza da amizade entre duas mulheres é diferente?
É muito difícil para um
homem entender a amizade feminina. Para mim, é como se fosse um
jardim secreto - e acho bom que seja assim. Tendo a crer, porém, que elas
trocam mais confidências do que os homens. Nesse sentido, são melhores amigas.
Pode-se dizer tudo a um
amigo?
Não podemos dizer tudo
nem mesmo ao nosso psicanalista, imagine só a um amigo... Dizer tudo a um amigo
é um lugar-comum que não tem correspondência na realidade, por mais que a
transparência completa seja um ideal da modernidade. Eu já passei por situações
em que me senti traído e traidor por não criticar um amigo que se comportava de
um jeito contraditório à imagem que ele projetava de si próprio para mim. Mas
dizer tudo também pode soar como traição. A transparência absoluta me faz
pensar num episódio com Sartre (o filósofo existencialista Jean-Paul Sartre). Ele e Simone
de Beauvoir (escritora, mulher de Sartre) gostavam de demonstrar que não havia
segredos entre eles. Em certa ocasião, perguntei a Sartre se ele contaria
determinado fato ao "Castor", apelido de Simone. Sartre respondeu que
não. Espantado, indaguei: "Você é capaz de mentir ao Castor?". Ele
disse: "Sim, sobretudo ao Castor!" (risos).
Anos atrás, o ator
italiano Ugo Tognazzi contou uma história que pode ou não ser real: durante a
11 Guerra Mundial, ele se tornou amigo de um companheiro de armas que lhe
salvara a vida. Terminado o conflito, esse sujeito roubou sua namorada.
Tognazzi, então, perguntou à plateia:"Ele pode ser considerado um
amigo?".
É comum que um homem se
sinta atraído pela mulher de um amigo. No caso que você relata, não acho que,
até isso ocorrer, tenha havido necessariamente falsidade. Ele salvou a vida de
Tognazzi, ora! Eu diria que dois homens podem ser amigos a tal ponto que não
conseguem evitar o desejo pela mulher do outro - assim como duas mulheres podem
nutrir uma amizade tão grande entre si que se sentem
atraídas pelo marido da outra.
É um ponto de vista,
digamos, bem francês, não?
São coisas que
acontecem, você sabe... (risos)
O senhor colaborou com
Sartre na revista Les Temps Modernes. Ele foi seu amigo?
Havia uma grande
diferença de idade entre nós. Mesmo que nunca se tenha colocado na posição de
mestre - e eu, na de discípulo -, Sartre era grande demais se comparado a mim.
Posso dizer que havia amizade,
mas não simetria. Antes de trabalharmos juntos na revista, ele foi meu
professor de filosofia, em 1941. Jamais vou esquecer sua primeira frase no
curso de moral: "O julgamento do fato trata sobre o que é; o julgamento do
valor trata sobre o que deve ser". Fui entender o que ele queria dizer
somente mais tarde, durante o governo colaboracionista do marechal Pétain:
diziam que nós, franceses, havíamos merecido a invasão nazista, porque não
tínhamos sido fortes. O que Sartre me fez compreender é que a França havia sido
derrotada pelos alemães, e esse era um fato, mas que não poderíamos julgá-Io
imutável. Ou seja, que precisávamos dar valor à resistência.
O senhor disse que Sartre
sempre recomendava "pensar contra si próprio". O que isso significa?
Que sempre devemos
desconfiar de nossas certezas, questioná-Ias antes de chegar a uma conclusão.
Não é tarefa fácil pensar contra si próprio, mas Freud (o austríaco Sigmund
Freud, pai da psicanálise), por exemplo, construiu sua obra dessa maneira. A
teoria que ele legou, fundada sobre a sexualidade infantil, é oposta aos seus
primeiros textos sobre o tema. Freud não teve medo de opor-se a si próprio,
quando decidia seguir o caminho que julgava correto.
Sartre "pensou
contra si próprio" quando aderiu ao comunismo?
Não. De fato, ele foi
acometido pela cegueira ideológica na sua defesa do regime soviético e outros
totalitarismos de igual estirpe. Foi crédulo. A filosofia de Sartre, contudo, é
uma filosofia de liberdade, contra a "servidão voluntária" sobre a
qual escreveu La Boétie (Étienne de Ia Boétie, o amigo a quem o pensador Michel
de Montaigne dedicou seu célebre ensaio sobre a amizade, no século XVI).
Que lugar ocupa em sua
memória o psicanalista Jacques lacan?
Eu fiz análise didática
com ele na década de 50, quando a psicanálise na França se encontrava num
estado de hibernação. Saí de Sartre e fui para Freud. Lacan sacudiu o movimento
psicanalítico francês e europeu de forma extraordinária. Tanto que, em seus
seminários, nós nos sentíamos como os primeiros seguidores de Freud. Mas, ao
contrário de Sartre, ele queria ser o mestre, adorava essa posição. E eu jamais
gostei de ser discípulo. É curioso: os lacanianos o imitavam na sua maneira de
falar, de se vestir, comportavam-se como papagaios. Ainda hoje é assim. Lacan
confundia os papéis, ao revelar os nomes de pacientes a seus alunos e cometer
outras heterodoxias. Eu me afastei dele também por questões teóricas.
Discordava da sua fórmula famosa, segundo a qual o inconsciente é estruturado
como uma linguagem. Para mim, isso soava como reduzir as imagens e narrativas
dos sonhos, os atos falhos e os lapsos, um manancial com peculiaridades
subjetivas, a equações matemáticas.
Para além de ser teoria
e prática terapêutica, como definir a psicanálise?
É uma aventura
intelectual dolorosa, longa, cara e sem destino certo. Mesmo os que se
consideram livres de seus sintomas não sabem responder se são mais felizes. Não
sei dizer qual será o futuro da psicanálise como terapia, mas esse aspecto é o
menos importante. A psicanálise não é uma ideologia, e sim uma concepção de
cunho filosófico que jogou a última pá de cal sobre o antropocentrismo. Mostrou
que não somos nem mesmo o centro de nós mesmos, por estarmos sujeitos a pulsões
e a uma narrativa de nossa história individual criptografada no inconsciente,
essa maravilhosa descoberta. Freud, assim, jamais morrerá. Foi - e é um grande
amigo da humanidade.
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em: interjornal.noticias
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