sexta-feira, 29 de março de 2019


Novo livro: "Janelas da psicanálise - Transmissão, clinica, paternidade, mitos, arte"

                            Fernando Rocha  


RESENHA DO LIVRO:

Psicanálise, multiplicidade e interdisciplinaridade
Betty Bernado  Fuks[1]
Resenha de Fernando José Barbosa Rocha, Janelas da Psicanálise: transmissão, clínica, paternidade, mitos, arte. São Paulo: Editora Blucher. 2019, 334p. “Série Psicanálise Contemporânea”. 

Em tempos de penúria, quando alguns  continuam insistindo em vulgarizar a  Psicanálise,  reduzindo-a a um saber dogmático a serviço de suas próprias   instituições;   e  outros  fazem avançar, com estardalhaço na mídia, a ideia de que  o lugar do inconsciente na contemporaneidade não é mais aquele construído por Freud,  um livro que contradiz tais afirmativas, bem definido, incisivo,  e  escrito em linguagem clara e precisa,  merece saudações.   Brindemos, então, a edição  do segundo livro do psicanalista Fernando Rocha, recém lançado pela editora Blucher: Janelas da Psicanálise: transmissão clínica, paternidade, mitos, arte.
O excelente Prefácio assinado por Joel Birman -  “Cartografias da psicanálise” -  permite uma melhor apreensão dos quinze ensaios e uma entrevista que   compõem ordenadamente  os quatro capítulos dessa obra. Interligados,  eles são apresentados sob a rubrica  “janelas”, categoria  que faz jus,  como bem assinala o prefaciador,  à posição ética de Rocha  frente aos registros pluridimensional e interdisciplinar da psicanálise.   Nota-se,  de saída,  que o grande desafio do autor foi o de tecer em conjunto os diversos ensaios e os diversos temas que se propôs perscrutar, obedecendo ao princípio de que no psiquismo habitam uma pluralidade de traços, que mantém concatenação entre si, e energia circulante.  Nesse diapasão, o livro possui três qualidades fundamentais para enfrentar a crise contemporânea da psicanálise citadas acima: rigor, multiplicidade e interdisciplinaridade.
Na primeira “janela” – Psicanálise e Transmissão -   Fernando Rocha aborda a questão da formação psicanalítica de maneira particularmente original: estabelece um diálogo interdisciplinar entre a noção freudiana de formação e as ideias dos filósofos Theodor Adorno e Hanna Arendt,  de que o processo de formação é algo da ordem da emancipação do sujeito em relação aquilo que recebe do Outro.  Através desse diálogo o autor procura fazer avançar a noção de transmissão da psicanálise evitando o  confrontar disciplinas já constituídas das quais, na realidade, nenhuma consente em ceder à outra.  Essa posição dialógica, segundo Barthes[2]  permite ao pesquisador criar um novo objeto,  o Texto. No caso, o texto de Rocha possui uma iluminação filosófica capaz de subverter os dogmas da discursividade obsessiva que impera nas instituições psicanalíticas.
Em Psicanálise e clínica, a  segunda “janela”, o leitor terá acesso à uma modalidade singular de exercício da terceira das profissões impossíveis,  a psicanálise. Indubitavelmente trata-se de um mérito a tentativa  do autor de expor alguns  casos e vinhetas clínicas em intima consonância com uma variedade de temas -  perda, luto, resiliência, trauma, corpo, narcisismo  -,   mesmo tendo afirmado que o relato clinico é uma tarefa “impossível”. Um paradoxo perfeitamente admissível, quando se trata de refletir e pensar a transmissão da psicanálise. O tema das “entrevistas preliminares”, já desenvolvido com precisão no primeiro livro de Rocha, Entrevistas Preliminares em Psicanálise (Casa do Psicólogo, 2011),  reaparece na apresentação de uma  vinheta clínica.  Através dela  o autor apresenta o que considera ser a função principal de tais entrevistas: estabelecer um  corte para transformar o sintoma em sintoma analítico no trabalho de retificação subjetiva do  candidato à analise. Esse seria o único destino possível   para que o analisando chegue  a se reconhecer como partícipe da situação geradora de sofrimento.   
Na terceira “janela” – Psicanálise: paternidade e mitos –,  Rocha mergulha nos estudos que abrangem a conexão Psicanálise e Cultura, sem perder de vista a importância  vital de se manter muito próximo da clínica e da metapsicologia. Razão pela qual a questão Pai em psicanálise aparece em sua obra articulada em base a materiais míticos e clínicos.  Imediatamente o leitor identifica  o alinhamento de Rocha à  tese freudiana, exposta no Projeto para uma psicologia científica,  de que o destino do indivíduo não pode ser estudado fora da cultura em que está inserido.  Nesse sentido, o livro oferece algumas reflexões importantes sobre o sujeito contemporâneo que mostram o quanto o autor se mantém fiel  às categorias psicanalíticas. É possível extrair das elaborações do conceito de compulsão à repetição,  exposto minunciosamente  nesse segmento, elementos  para uma crítica psicanalítica à cultura contemporânea. Nas entrelinhas do texto de Rocha não faltam recomendações ao leitor de procurar seguir o  exemplo de Freud, um analista que jamais ignorou a política de seu tempo.  
A importância da experiência interdisciplinar na obra de Rocha aparece   com vigor na última “janela” do livro – Psicanálise e arte -.    Destaco aqui o verso de Mário Quintana,  citado pelo autor – “Quem escreve poesia resgata um afogado” –,  pois me remete ao próprio afogar da psicanálise, quando um analista se limita a aplicar conceitos psicanalíticos à literatura ou à arte propriamente dita.  Na contra mão dessa vertente, Rocha segue o conselho de  Freud de “depor as armas”  diante do artista e do escritor e  relança algumas questões a partir do que lhe é possível encontrar na arte, concebida como forma privilegiada de acesso ao inconsciente.  Assim,  nosso autor se inclina sobre a essência musical para traduzi-la em forma visível; toma a música como campo de investigação, enquanto textualidade,  a partir do qual é possível dizer algo sobre o real que não alcança dizer com os elementos da teoria.  Em termos de acréscimo à teoria psicanalítica trata-se de um trabalho próximo ao real da clínica, momento em que o analista tem condições de fazer progredir  a teoria.  Nesse ponto, a  expressão “janela para o real” criada por Lacan para designar a fantasia  que recobre o real inassimilável – aquilo que se traduz clinicamente através da angústia e do trauma -, seria ideal para distinguir a aplicação fantasmagórica da teoria sobre a arte,  da modalidade de leitura à letra que visa possibilitar a emergência de um não-dito.   Não é em vão, que no capítulo seguinte, Rocha se debruce sobre a questão do ciúme paranoico. Maneira pela qual reivindica o interesse de seus leitores psicanalista e os de outras áreas, pelo estabelecimento de relações inesperadas entre psicanálise, literatura e arte.
Para finalizar retorno à problemática da transmissão.  Dessa vez reiterando  o fato de que a psicanálise detém a gloriosa apreensão do tempo,   de modo a fazer conviver passado e presente no mesmo lugar;  o que  assegura que o humano é impregnado pela “dívida simbólica”  que provém das gerações precedentes.  A defesa do autor pela noção freudiana  de temporalidade psíquica na apresentação de seus casos clínicos  e dos  conceitos lacanianos de desejo do analista e de sujeito suposto saber,  resume de forma definitiva sua adesão à máxima de Goethe registrado por Freud em Totem e Tabu -   “Aquilo que herdastes de teus ancestrais, conquista para faze-lo teu” -.   Assim, ainda que de modo obliquo, o livro se torna o retrato do desejo de Rocha de conjugar a complexidade psicanalítica à reescritura do que vem a ser as noções psicanalíticas de transmissão, clínica e  paternidade,  e ao seu percurso reflexivo dos estudos interdisciplinares entre a psicanálise e a arte.




[1] Psicanalista, doutora pela Escola de Comunicação e Cultura da UFRJ, Pesquisadora do CNPq e professora do Programa de Pós-graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida (RJ)
[2] Barthes, R. (1988) Jovens Pesquisadores. Em  O rumor da língua. São Paulo: Editora Brasilense.