sábado, 16 de agosto de 2014

TRANSMISSÃO DA PSICANÁLISE EM NOSSOS TEMPOS - Resenha por Betty B. Fuks


Resenha 1 
Transmissão da psicanálise  em nossos tempos.
Resenha do livro “Entrevistas Preliminares em Psicanálise; Rocha Fernando J. B. Casa do Psicólogo. São Paulo. 2011. 219pgs.
Autora: Betty B Fuks.  Psicanalista.
 No conto “A terceira margem do rio”, Guimarães Rosa fala da transmissão: um pai decide e ir-se numa canoa para o meio do rio, sem nunca voltar a uma das duas margens possíveis.  Os filhos assistem à partida do pai que abençoa apenas um deles, aquele que pede para ir junto com ele. Um dia acena a este filho para que  o substitua na tarefa de manter-se no fluxo contínuo do rio.  Mas tomado pelo pânico que o apelo lhe causara, o filho não atende o pedido e o conto, daí em diante, é o relato de sua culpa.  A crítica literária, em geral,  traduz o  impasse entre o pai e o filho como o impasse de todo escritor diante do rio da tradição. Para criar sua obra o escritor deve ocupar o lugar da terceira margem, lugar simbólico que permite a transmissão de  uma herança cultural[1].
O mesmo vale para o impasse dos psicanalistas diante da transmissão e da preservação do  lugar da psicanálise na cultura.   É esta a lição que encontramos no livro, recentemente lançado pela editora Casa do Psicólogo,  Entrevistas Preliminares em Psicanálise.  O autor Fernando José Barbosa Rocha possui um estilo de transmissão que parece estar calcada no mandato de um outro Fernando, o poeta dos heterônimos: Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: "Navegar é preciso;  viver não é preciso"./ Quero para mim o espírito [d]esta frase,    
transformada a forma para a casar como eu sou: Viver não é necessário;  o que é necessário é criar”.   Assim,  o nosso Fernando das entrevistas preliminares propõe,  na introdução do livro,  aproximar, sob a égide da alegoria, navegação e  psicanálise.  Com isso,  aponta um problema que toca de perto a transmissão da psicanálise: de que modo conciliar o valor dos chamados conceitos que instituem a teoria psicanalítica com uma prática que se dá essencialmente na transferência, na relação com o outro, nas formas tornadas possíveis pelo desenvolvimento da linguagem?
               Rocha propõe  as duas grandes qualidades de Freud, criatividade e precisão clínica,  como o norte do trabalho  que irá apresentar nas páginas de  um livro marcado pela leitura de vários autores que se debruçaram sobre a clínica e a teoria  analítica em seu mais de cem anos de existência.    Partindo da própria experiência  que viveu em outro país,  o autor escolhe  trabalhar um dos temas mais importantes da psicanálise, colocado em destaque por Freud no texto “O início do tratamento” em 1912.   Para evitar a interrupção da análise, a fim de se conhecer o caso e decidir sobre a possibilidade de sua analisabilidade  o inventor do método psicanalítico entendia como necessário um tratamento preliminar no qual  o analista avalia as condições do paciente à transferência, motor da análise.   Esse período foi chamado de “entrevistas preliminares” por Jacques Lacan na releitura que empreendeu da escritura freudiana.  Para o mestre de Paris não poderia haver entrada em análise sem as referidas entrevistas.  Ele as definiu como um tempo que compreende a formulação do diagnóstico estrutural até o momento em que se inicia a análise propriamente dita. 
            Num esforço de traduzir a importância deste período, Rocha expõe algumas vinhetas clínicas, o que é extremamente incomum no universo das publicações psicanalíticas.   Diga-se de passagem que são poucos os analistas que têm a coragem de dar testemunho, por escrito,  da condução das análises que empreende.    Nosso  autor  mostra, através de algumas análises que conduziu,   que a prática  das entrevistas preliminares inicia quando um paciente marca uma primeira entrevista com um psicanalista.   Expondo  a experiência,  Rocha  facilita ao leitor apreender do que se trata e qual a função destas entrevistas com a qual o analista procura garantir  o êxito da condução do tratamento.  Por outro lado ressalta, também, que  a diversidade de constelações psíquicas  sempre reservam ao analistas um elemento de surpresa que ele não tem como prever.
           A aspiração de  Rocha  em distinguir o ato clínico do relato do analista certamente foi o que o levou a desenvolver uma técnica  de transmissão a partir da própria experiência psicanalítica.  O que os pacientes lhe transmitiram,  portanto lhe ensinaram durante um determinado período,   é que  a  importância das entrevistas preliminares é de tal monte  que não há análise sem o estabelecimento destas entrevistas.    Rocha deixa claro que no início de um tratamento o analista está diante de uma encruzilhada: criar com o analisante condições para que o sintoma que o leva a procurar um analista seja transformado em sintoma analítico,  ou aceitar a impossibilidade de seguir adiante com a cura.    Ao analista cabe “redirecionar a demanda do entrevistando, podendo, assim, conduzi-lo a uma demanda de análise” (Rocha, p. 35).   Esta ação instala o dispositivo da transferência, o playground, como dizia Freud,  onde se desenrolará uma  análise.   Neste lugar que espelha  não apenas o motor de uma análise mas a própria resistência do inconsciente,   o analista encontra meios de fazer com que o analisante se submeta à associação livre,  cuidando dele próprio  não fugir, jamais,  de manter sua escuta voltada  ao que emerge em função dos efeitos desta regra básica.    A insistência neste dispositivo que emerge nas referidas entrevistas reaparece em todos os capítulos do livro.  No próprio sumário observa-se que o autor, preocupado em circunscrever os momentos  e as condições cruciais  que venham garantir o sucesso da direção de um tratamento,  se manterá do início ao fim da obra fiel ao tema anunciado claramente no próprio título do livro.
         Um outro aspecto do valor da exposição de Rocha  encontra-se na reflexão que o leitor  é levado a fazer sobre o futuro da psicanálise em nosso tempo, um tempo marcado pela cultura do extermínio do sujeito do inconsciente. Ameaças cientificistas pesam sobre a psicanálse : as neurociências, na pretensão de explicar o inconsciente em termos neuronais,  concorrem para que o sujeito do desejo seja categoricamente  exterminado.  Portanto, um livro que dá mostra da importância da transmissão dos valor das ferramentas teóricas que permitem operar a prática clínica,  merece saudações.      “Entrevistas Preliminares” estabelece no último capítulo uma forte resistência a que o corpo biológico -  em voga no momento através da metodologia estatística do DSM e do CID  que  encarrega  a nova psiquiatria  tratar os sofrimentos humanos, exclusivamente, através de medicamentos  e  descartar totalmente o sentido do sofrimento, o sintoma como produção  de linguagem -, se sobreponha ao corpo da linguagem.
          Aí reside, ao meu ver, um dos maiores valores  do livro  em questão:  defender a excepcionalidade das entrevistas preliminares  na contemporaneidade, um tempo invadido pelas patologias do corpo.   Resguardar o que foi prescrito por Freud na contemporaneidade  significa,   navegar com os instrumentos precisos de seu legado e,  ao mesmo tempo, estar aberto à criatividade para enfrentar o acaso com a qual o analista se depara a cada caso, a cada interrupção abrupta do tratamento;  e, finalmente, a cada término de uma viagem por mares nunca dantes navegados. 




RESENHA 2


      
Entrevistas Preliminares em Psicanálise: incursões clínico – teóricas
Rocha, Fernando J. B., Casa do Psicólogo. 2011. 219pp
Resenha por Sandra Gonzaga e Silva

Um aviso ao leitor incauto: este não é um livro sobre Entrevistas Preliminares em Psicanálise. É claro que Fernando Rocha não os está enganando como bem nos alerta Sergio Zaidhaft em seu prefácio ao livro, no entanto é da viagem - análise, seus inícios, mas também seu percurso, que nos fala o autor.
Se” navegar é preciso” e a vida não tem precisão, o cuidado no manejo do enquadre de que fazem parte as entrevistas iniciais e seus atributos é fundamental para conter a inelutável errância do material clínico.
Necessário é dizer, seguindo Fernando, que o diário de bordo desta viagem só poderá ser escrito a posteriori, sendo em suas palavras “a articulação teórica que não diz a vivência do analisando, mas é sobretudo um mapeamento desta.”(pg17)
A afirmação é importante para refletirmos sobre o engessamento da escrita que vemos ocorrer com frequência nos Institutos de formação em psicanálise. A ilusão da fidedignidade entendida como tradução simultânea pode estar entre os fatores que inibem a produção dos relatos psicanalíticos.
Ainda no Cais
Rocha justifica e enfatiza o tempo das entrevistas preliminares como campo de investigação dos critérios de analisabilidade e definição da possibilidade de um dado analista empreender o processo psicanalítico com um dado paciente. Em outras palavras, às interrogações feitas ao candidato à análise, corresponderiam perguntas que o analista se faria sobre seu lugar de analista em relação à determinado analisando.
Tendo sempre como norte a dupla singular analista analisando, são discutidas dentre outras, as noções de pedido de ajuda e demanda de análise, diagnóstico flutuante e divã temperado, balizas para o processo a ser iniciado. É na escuta das entrevistas preliminares que o analista poderá perceber as possibilidades do candidato à análise abrir-se para a construção de novos sentidos no que tange ao seu sofrimento psíquico. A construção de um esboço diagnóstico neste momento orientará as adaptações que porventura sejam necessárias no enquadre analítico. Incluído nesta etapa estará o desejo de analisar do analista, tributário de seu próprio processo análitico.         


Soltando as âncoras
O livro de Fernando Rocha foi elaborado a partir de seminários ministrados em instituições psicanalíticas e em grupos de estudo. Acompanhando os seminários verificamos que ali pelo segundo, já embarcaram os analisandos presentes nas vinhetas clínicas e os autores que a partir de Freud e a ele retornando em releituras iluminadoras, colaboram com o autor na apresentação dos conceitos do arcabouço psicanalítico, que vão sendo revisitados ao longo dos seminários numa integração teórico clínica exemplar.      
É dessa maneira que a apresentação do caso de “Monsieur M” e a eclosão de um ato falho (espada/escada) em uma de suas entrevistas preliminares, põe em evidência o conceito de retificação subjetiva, entendida como a mudança de posição do analisando, que ao se implicar na formação de seu sintoma, muda a relação com sua demanda e retifica seu lugar diante de seu sofrimento, sendo esta a mudança que inaugura sua entrada em análise. (pag55). O conceito intuído por Freud quando lança à Dora a pergunta sobre sua participação na desordem de que se queixa, é nomeado posteriormente pela releitura que lhe dá Lacan.
Essa forma de integrar a vivência clínica com a reflexão teórica de maneira clara e didática a cada seminário, nos permite tomar contato com temas seminais da psicanálise como a transferência, a castração, experiência de satisfação, recalque, ego ideal e ideal de ego, as organizações psíquicas e suas consequências no manejo clínico, as teorias pulsionais etc. A transmissão da psicanálise ancorada na leitura de Freud e dos autores pós freudianos depuradas ao longo da sólida experiência profissional do autor traduz-se numa escrita a um só tempo densa e simples, resultando numa leitura extremamente prazerosa.
Acompanhar a viagem que Fernando Rocha empreende com seus analisandos  tendo como ponto de partida as entrevistas preliminares, possibilita inúmeras reflexões sobre o fazer psicanalítico, seus impasses, sua potência.
Se pensarmos as resistências que a contemporaneidade oferece à psicanálise com seus atributos de eficácia, imediatismo, satisfação plena, o tudo poder, tudo ser, fenômenos sobre os quais Bauman, citado por Rocha, se debruçou em seu livro O mal estar na pós modernidade (pg161,162), poderíamos afirmar que a dimensão ética da psicanálise se instaura quando caminha na contramão da lógica do gozo ilimitado, expressão  da pulsão de morte nos tempos atuais.

Ao desenhar o enquadre analítico como representante da Lei que interdita, limita e propicia o acesso ao simbólico, Rocha vai sublinhar o caráter estruturante do desejo que permite representar ao invés de agir e que discrimina o agir concreto do agir simbólico.”Somente quando nos encontramos interditados, limitados é que podemos aspirar ao ilimitado”(pag67) nos fala Fernando enfatizando o encontro do sujeito com sua incompletude,” submetido à temporalidade que o circunscreve em sua dimensão finita”(pg69).
Em que porto ancoramos?
Guardando a especificidade de cada viagem, as tormentas, as calmarias e as tantas surpresas que enfrentam analista e analisando, chegar ao término do percurso analítico para Fernando Rocha diz respeito a um aspecto formal, pois leva em conta que a experiência analítica uma vez introjetada é uma aventura interminável. Uma análise que termina encontrará o sujeito cuidando de seu desejo, bem acompanhado de si e dos novos laços que construirá em suas novas viagens. 


RESENHA 3

Entrevistas preliminares em psicanálise: incursões clínico-teóricas
Rocha, Fernando J. B. Casa do Psicólogo. São Paulo. 2011. 219 pp.
Resenha por Viviane Frankenthal, psicanalista da SBPRJ.

“Entrevistas Preliminares” - assunto de interesse para os psicanalistas de qualquer tempo e escola - nos é apresentado de um jeito novo desta vez. Sob a forma de seminários, questões são levantadas e reflexões oferecidas, baseadas no pensamento singular clínico e teórico do autor, apurado e depurado durante sua extensa vida profissional.
Como o sofrimento se transforma em demanda de análise?
Fernando Rocha nos conduz pelos caminhos que a psicanálise traçou, ontem e hoje, para compreender essas questões. O fio condutor é o tema das entrevistas iniciais, mas ao puxá-lo, o autor desenrola toda a teoria psicanalítica. Navega pelas águas profundas da psicanálise, trazendo à tona conceitos e acepções de diversos autores da maneira simples que só uma grande experiência pode proporcionar. Os textos mais relevantes da teoria psicanalítica escolhidos a dedo pelo autor fundamentam, de forma clara e didática, seus argumentos.
Proust nos vem à mente quando nos sentimos invadidos pelo mesmo sentimento que ele descreve em “Sobre a leitura”. Ou seja, as tarefas diárias tornam-se meras interrupções para o leitor que se debruça sobre esse texto querendo continuar a ler e refletir sem quebrar o encadeamento criativo que o escritor apresenta. Como em uma conversa solitária, onde a personalidade do autor está presente, não queremos nos distrair...
O original neste livro é a forma como o autor encadeia as ideias para tecer o texto de cada seminário e como o texto de cada seminário, por sua vez, está vinculado ao seminário anterior e ao posterior. Vamos seguindo seu pensamento e nos damos conta, em certa altura do trajeto, de que nosso patrimônio teórico, assim como nossa compreensão da clínica psicanalítica, cresceu. Há um verdadeiro processo de aprendizagem no seguimento desses seminários.
Outro ponto alto no texto são os exemplos clínicos e sua compreensão, vividos pelo próprio autor durante sua vida profissional, desde o início até hoje. Começa com Mireille e o lapso que propicia a sua entrada em análise, após algumas entrevistas preliminares: “eu queria amá-lo” em vez de “eu queria matá-lo”. Ou o ato falho de Monsieur M: “filme de capa e escada”...
Rocha nos alerta para um risco que deve ser evitado nessas entrevistas: “... o estímulo a uma relação transferencial, prolongando o número de entrevistas” (pág. 25). Isso nos fez pensar em um dos primeiros livros de Phillip Roth, “O Complexo de Portnoy” onde o protagonista, deitado no divã do psicanalista Dr. Spielvogel, narra sua história, suas lembranças de criança, da adolescência, seus dilemas sexuais, seus conflitos com a mãe judia e com o pai ausente, durante sessões de análise que se estendem por todo o livro. A narrativa termina com a única fala do psicanalista: “Então, agora talvez a gente possa começar”. O difícil “momento certo” de começar o percurso analítico para o analisando teria a ver com o reconhecimento de seu sofrimento psíquico: “o conflito interno é um estado de sofrimento onde o sujeito “se sabe” participante da situação geradora do sofrimento” (pág. 22). E todo cuidado é pouco para preservar o entrevistando de ser perturbado psiquicamente antes da decisão de tomá-lo em análise. O analista é implicado nessa decisão, cabendo a este interrogar-se sobre sua própria problemática psíquica. Esse caminho nos levará a conceitos básicos da Psicanálise como transferência, ego ideal e ideal de ego.
Entretanto, “trata-se de provar o quê”? Esta é a indagação que o autor se faz sobre as entrevistas preliminares denominadas “análises de prova” por Freud. Envereda pela problemática do diagnóstico diferencial, “diagnóstico flutuante” e analisabilidade, termos sempre caros à clínica psicanalítica e que não podem ser deixados de lado na construção do processo de análise.
Nas entrevistas preliminares, segundo Rocha, o analista faz intervenções que não são interpretações, pois estas terão efeito só após o estabelecimento da transferência. Ainda não utiliza o conjunto de recursos técnicos psicanalíticos, no entanto, “a escuta psicanalítica deverá ser mantida e exercida... já que esse modo de escutar é determinante para propiciar a entrada do potencial analisando em análise” (pág. 44). 
Fernando Rocha nos mostra como a clássica pergunta de Freud à sua analisanda Dora, “Qual é a sua participação na desordem da qual você se queixa?” poderia ser feita, ainda hoje, a todos os analisandos nas primeiras entrevistas.
Revisitamos, então, as recomendações de Freud aos analistas iniciantes e sua oposição a qualquer mecanização da técnica. Passeamos pela criação da neurose de transferência e pelo papel simbólico do contrato analítico, sob a ótica do autor fundamentada em sua clínica. Rocha destaca o lugar do analista como o lugar do simbólico, de onde irá “tecer com o analisando uma nova narrativa para a história deste” (pág. 64).
Quando recebemos uma pessoa para entrevistas iniciais, recorremos a conceitos teóricos sobre o que ocorre no psiquismo desta até o movimento que a levou ao encontro com um analista. Seu conflito interno, seu sofrimento existencial, como nos mostra Rocha, pelo que foi perdido irreversivelmente. No entanto, os parágrafos já escritos da vida daquele que nos procura, podem ser reescritos junto com o analista, transformando esse encontro numa aventura sempre inusitada, desafiadora e imprevista. Nos seminários ministrados por Fernando Rocha esses conceitos são colocados sempre de forma articulada com a clínica, a clínica dele, o que nos dá uma dimensão da consistência de suas palavras.
É o que ocorre no caso Nicole. Um pequeno atraso do analista mobiliza uma cadeia associativa inesperada. Sabemos que atrasos, férias e mudanças mobilizam. Mas o interessante é ver como a surpresa do analista pode ser pensada: “o que surpreende é a maneira singular pela qual a história de cada um é evocada” (pág. 79). E Rocha nos alerta para o risco de ficarmos numa relação baseada no nosso próprio pensamento imaginário, o que nos levaria a interpretar antes de aparecer o elemento surpresa. O autor nos mostra sempre, ao longo do livro, seu extremo cuidado no garantir a função de analista. E esse cuidado é um dos méritos do livro, pois aponta com clareza como o predomínio do pensamento imaginário do analista o deixa indiscriminado de seu analisando com graves consequências para o processo analítico.
No caso do “Homem das Vacas”, já vemos logo de início um fato recorrente em primeiras entrevistas. Uma lembrança de infância condensando os principais elementos da trama do imaginário do analisando e em torno da qual o processo analítico se desenrola propiciando mudanças. Também neste exemplo clínico, o autor trata da questão do final da análise e do destino dado ao analista. Questão essa que nos fala da condição humana e sua incompletude, da busca incessante que move o desejo.
As primeiras hipóteses diagnósticas podem ser pensadas nas primeiras entrevistas, mas só no decorrer do processo, na relação transferencial, é que se revelará a organização psíquica do analisando. Aqui o autor se refere ao paradoxo do diagnóstico em psicanálise que sempre estará presente na escuta psicanalítica. No seminário 6, ele vai tratar das estruturas psíquicas, de sua gênese a partir do complexo de Édipo, com referência na castração. Vamos percorrer um caminho profícuo desde o “Projeto para uma psicologia científica” de Freud, passando por conceitos fundamentais da psicanálise como “vivência de satisfação” e “angústia de castração” até a formação das estruturas neurótica, perversa e psicótica, desembocando no fenômeno psicossomático. Além de Freud, conversamos com Piera Aulagner, Françoise Dolto, Marty e outros autores que através do entender de Rocha vão compondo o texto até o inegável papel social da psicanálise no mundo contemporâneo.
Aqui caberia avisar ao futuro leitor de Fernando Rocha que, se tocamos nesses pontos do livro, é porque este não se esgota neles, vai muito além deste pequeno trecho apresentado! E mesmo quando terminamos de ler o livro, vemos que Proust, em seu pequeno texto “Sobre a leitura” que já citamos aqui, tem razão ao dizer que nós leitores gostaríamos de receber respostas, mas o autor só pode nos dar desejos.
Ao formular a instigante pergunta: “O que teria para dizer hoje a psicanálise? Como caracterizar a nossa época?” (pág.160), o autor incita novas perguntas e novas questões, mergulhados como estamos em nosso tempo, cada vez mais ligados em redes sociais e talvez cada vez mais sós... 
Fernando Rocha, ao resgatar Freud e outros mestres da psicanálise, nos faz ouvir Proust mais uma vez ainda: “Mas é a uma outra coisa que eu prefiro, para terminar, atribuir essa predileção dos grandes espíritos pelas obras antigas. É que elas não têm apenas para nós, como as obras contemporâneas, a beleza que nelas soube incutir o espírito que as criou. Elas recebem uma outra beleza ainda mais emocionante do fato de que a sua própria matéria – ouço a língua em que foram escritas - é como um espelho da vida”.
Por fim, o autor fala da viagem interminável intrínseca ao processo analítico. E também da solidão que bem acompanha o sujeito que termina uma análise formalmente e da aquisição de autonomia nas escolhas que ele faz sobre suas companhias na viagem da vida.
Pois bem, durante a leitura deste livro, nós fazemos parte da viagem da vida profissional de Fernando Rocha. E vale a pena!




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PERGUNTAS PARA O BRASIL - SOBRE FORMAÇÃO PSICANALITICA OCAL




1. A ti te parece que o tripé formativo do psicanalista – análise didática, supervisão e seminários teóricos – segue tendo vigência? Pensas que deveria sofrer modificações ou acréscimos? Nesse caso, quais seriam?

 Fernando Rocha:
 A formação do analista baseada nos três elementos do tripé, a meu ver, continua válida. No entanto, o que importa não é somente o aspecto formal, mas sobretudo, a maneira como estes três pilares são realizados numa formação; ou seja, o que importa é a maneira como este tripé responde àquilo que é propriamente psicanalítico, ajudando o candidato a tornar-se apto a ocupar o “lugar de analista”.
            Foi no segundo Congresso Internacional em Nuremberg, em 1910, que se deu a conhecer os problemas da organização psicanalítica. A Psicanálise produzira uma linguagem própria, um novo universo de pensamento, e mobilizara vários campos de conhecimento. A idéia de Freud era a de organizar o que fosse  psicanalítico, começando-se  assim a pensar quais as condições que deveriam ser transmitidas a todos os candidatos a psicanalista. Foi em torno disso que começa a história da formação, com suas bases na análise pessoal (chamada de didática), supervisão e aprendizado do saber teórico. Chegou-se, então, a uma discrepância que até hoje enfrentamos: o que a psicanálise se propõe enquanto processo e o que ela é enquanto instituição.
Se, por definição, a psicanálise quebra com qualquer ‘estatuição’ exata, essa ordenação na formação do analista pode ser uma espécie de violência, de redução contra o que é psicanalítico. Esse é um impasse, um paradoxo, com o qual se defronta uma formação psicanalítica. Enquanto a instituição tem regras estatuídas e precisa delas inclusive para ser uma instituição, a análise é a derrubada de ordenações exatas, é a tentativa através da regra fundamental, de pesquisar o desejo. É, portanto, fundamental que a sociedade de psicanálise se dê conta e não fique cega a essa dialética entre o “instituinte e o instituído”.
            Neste sentido, é interessante ressaltar que  Freud, ao introduzir a noção de formação em psicanálise, empregou o termo Ausbildung, e o fez ressaltando uma concepção de formação que conduzisse a uma prática de autocrítica, de interrogação, em oposição à noção de modelo. Trata-se da possibilidade de interrogar-se, principalmente no que se refere ao trabalho empreendido com o paciente. Assim, as acepções depreendidas do termo Ausbildung possibilitam vislumbrar o papel fundamental que a análise pessoal, a supervisão e os seminários teóricos podem adquirir na formação psicanalítica. É neste sentido que aparece toda a importância do que se entende pelo  termo formação.
            Quando o ato de formar e educar atrela-se ao sentido de modelar, prevalece uma perspectiva de formação que visa adaptar ou adequar,distanciando-se do que se propõe uma formação psicanalítica. Entretanto, outras concepções abordam a ação de formar ou educar como práticas que preparam o sujeito para lidar com o novo, o imprevisível, entendendo que há, nesse processo, uma implicação com a “tarefa de renovar o mundo”, ou seja, uma formação ou educação apoiada na criatividade.
Delineiam-se, então, duas perspectivas opostas quanto ao ato de formar: uma, em que a formação, restringindo-se a um ato informativo, sem a preocupação de desenvolver uma capacidade crítica, visa modelar o sujeito ao já existente; outra que, percebida em sua globalidade, transcende a informação ou mesmo o conhecimento, realçando que a importante tarefa da formação é a de conduzir o sujeito para a “emancipação” e não para a “adaptação” (Adorno, 1995)[1].

2. Crês que independizar a análise pessoal dos Institutos de formação poderia favorecer a formação de analistas mais emancipados, criativos e críticos?


Fernando Rocha:
Sim, mas não imuniza, como uma vacina, contra a não emancipação, a falta de criatividade e de auto-criltica. Mas, se a análise pessoal é concebida como sendo o fundamento  da identidade do futuro analista, a independência entre análise pessoal do candidato e a instituição, é uma proposta que pode indicar a preocupação de proteger a análise das influências da Instituição.
         Na Sociedade Psicanalítica de Paris, onde fiz minha formação (de 1969 a 1979), esta independência foi uma conquista e achei a experiência válida. Com o propósito de proteger a análise pessoal do candidato, em 1970 foi abandonada a análise didática, possibilitando que o desejo de tornar-se analista pudesse ser realmente analisado, não sendo confirmado por antecipação. Para a S.P.P., "qualificar uma análise como didática lhe impõe um objetivo que anula a sua especificidade". Com esses procedimentos, a S.P.P. assumia que a análise didática não era a melhor solução nem para se formar um analista nem para evitar “candidatos conformistas, não criativos, instalados em uma repetição mortífera da mesmice[2].
Valorizando um percurso pouco diretivo de formação, a S.P.P incentiva a emergência de estilos variados e o desenvolvimento da subjetivação e da identidade própria de cada um. A formação na S.P.P pretende favorecer a “diversidade, a autenticidade e a responsabilidade”.

  1. Como se pode evitar o doutrinamento teórico nas supervisões?

         Fernando Rocha:
 Vai depender do posicionamento ético do supervisor. Durante o exercício  de sua clínica, o analista em formação, em análise ou em supervisão, estará irremediavelmente sozinho com o seu analisando; é pois o responsável pelos seus atos analíticos. Da solidão, ao longo do processo analítico, emergem incertezas e dúvidas que colocam à prova o seu narcisismo. A inevitabilidade dessa situação lança-o em busca de  certezas ou garantias, seja através de um saber teórico, seja através de um saber de outrem, a fim de obter respostas.
 Freud, em A dinâmica da transferência (1912),  nos chama a atenção para o fato de que o fenômeno transferencial instaura-se de forma mais intensa no sujeito submetido à análise do que naquele que não o está. Com freqüência, ao iniciar  seu primeiro trabalho clínico, o analista em formação está ainda em análise. Esta simultaneidade de papéis provoca intensa ativação de suas vivências inconscientes. Desse modo, se é fundamental que o analista ocupe a posição de suporte, de receptáculo das vivências do analisando, quando ainda em formação ele terá que experienciar, concomitantemente, uma vivência na qual ora se vê como analisando, ora como analista. E é justamente ao longo deste percurso que surge a figura do supervisor. Considerando que no momento em que ocorre a supervisão o analista em formação encontra-se particularmente susceptível a incluir no seu campo transferencial o supervisor, este deve ter como reposta a delicadeza que acolherá as interrogações do analista em formação, ajudando-o a emergir e a tornar-se analista na sua singularidade. Ao supervisor, resta apenas o que lhe concerne: não se colocar como modelo a ser imitado, mas como elemento catalisador.
A supervisão seria, assim, um dos momentos de uma travessia, de um encontro com uma experiência que, confrontada com outras, permitiria a cada aprendiz forjar a sua própria maneira de proceder.
Uma das principais funções do supervisor é a de ajudar o supervisando a suportar a angústia do não-saber, a sustentar a espera necessária para  que haja nomeação, revelação, elaboração dos processos inconscientes, sem inserir nessa brecha essencial um saber defensivo, seja da ordem de um saber teórico, seja da ordem de um saber prévio sobre o desejo do analisando. Através de sua dupla escuta – das associações do analisando e das associações do analista –, o supervisor  poderá algumas vezes perceber e indicar movimentos através dos quais se deu um fechamento no processo inconsciente, em que, com freqüência, um saber foi colocado como resistência.
O espaço da supervisão deve também comportar o interesse pela relação entre a clínica e a teoria, incluída aí a reflexão sobre o trabalho das entrevistas preliminares, o diagnóstico, a entrada em análise, bem como a direção do tratamento e a finalização do processo. Se o divórcio entre teoria e prática é incompatível com a função do trabalho analítico, o trabalho de teorização dentro de uma supervisão possui certas características. Concordo com os autores que pensam que ele deve ser concebido como um trabalho conjunto de teorização flutuante, correlato àquele da atenção flutuante.
Sendo um espaço de travessia fundamental, no qual o supervisando poderá vivenciar a construção, sempre inacabada, de sua identidade de analista, a supervisão deverá comportar, da parte do supervisor, o respeito ao estilo e a escolha do caminho teórico do supervisando - desde que os pilares fundamentais do pensamento psicanalítico estejam presentes - , o que certamente contribuirá para que não se formem simples discípulos, mas verdadeiros analistas.

  1. No nível do currículo de ensino teórico dos institutos haveria um ideal de malha curricular que consideras favorecer essas mesmas qualidades antes destacadas?

           Fernando Rocha:
O currículo do Instituto na Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, compõe-se de  cursos chamados de “introdutórios” e de “eletivos”. Vou me servir deste exemplo para tecer algumas reflexões sobre o que poderíamos considerar “introdutório” ou “eletivo” em uma formação psicanalítica, na medida em que  temos nesta formação uma perspectiva emancipadora do sujeito.
 Introduzir é um vocábulo de origem latina - indro-ducere - que significa "levar para dentro", "fazer entrar", "fazer penetrar", acepções que nos remetem à noção de  conduzir à raiz , ao fundamento[3].  Essas diferentes possibilidades de significar o termo introdução nos fazem perguntar o que seria "conduzir para dentro" em uma formação psicanalítica. Se aceitarmos que tal formação visa criar no sujeito um movimento de emancipação, ela deve propiciar vias, caminhos,  que possibilitem a mobilidade do sujeito no sentido de um auto-conhecimento, de uma auto-crítica, desenvolvendo-lhe a capacidade de fazer escolhas.
As significações oferecidas pelo vocábulo introdução nos facultam articulá-lo com o termo alemão Ausbildung, empregado por Freud para designar a noção de formação em psicanálise[4]. Constituído pelo prefixo aus  que designa o "movimento de dentro para fora" - correspondendo aos prefixos latinos ex, es -[5] e da raiz bild em que uma das significações é a de construir - tanto no sentido material como mental -, o termo Ausbildung pode ser compreendido como um movimento que, partindo de uma construção  ocorrida no interior do sujeito, direciona-se para fora. Assim, tanto o termo introdução quanto Ausbildung conotam um movimento essencial de um voltar-se para dentro de si, de um ir para dentro para que posteriormente a coisa construída possa emergir, trazendo, porém os efeitos das raízes, ou dos fundamentos de si mesmo, possibilitando um renascer criativo. A propósito dessa questão, Mannoni nos lembra que quando Freud introduziu a noção de formação em psicanálise empregando o termo Ausbildung, o fez querendo ressaltar uma concepção de formação que conduzisse a uma prática de autocrítica, de interrogação, em oposição à noção de modelo. Trata-se de um "voltar-se para dentro de si" como possibilidade de interrogar-se, principalmente no que se refere ao trabalho empreendido com o paciente [6]. Assim, as acepções depreendidas do termo Ausbildung possibilitam vislumbrar o papel fundamental que a análise pessoal adquire na formação psicanalítica.
Deste modo, considero como “introdutório”, na formação psicanalítica, todas as práticas capazes de produzir saberes que conduzam o analista em formação para dentro de si, a fim de vivenciar a possibilidade de se autocriticar, de duvidar e de lançar interrogações sobre si mesmo, sobre seu trabalho clínico e sobre as raízes formadoras da teoria psicanalítica. Nessa perspectiva, o introdutório torna-se imprescindível como uma das possibilidades do candidato a psicanalista realizar escolhas, relativizar  conhecimentos quando confrontado com a clínica.
Já o termo “eleger”, remete a uma ação que implica escolha, portanto, ganho e perda. Diante de diferentes "objetos"/situações/cursos, o ato de eleger torna o sujeito ciente de que, qualquer que seja sua opção, haverá sempre uma perda e não só ganho. A vivência desse paradoxo certamente reforçará  a necessidade de um curso introdutório, principalmente quando este visa atingir e influenciar os re-arranjos psíquicos do sujeito, já que inclui a análise pessoal.
Se eletivo é o que cada um elege para si para complementar uma formação, esse ato implica não só o aprimoramento intelectual, ou a  subjetividade do analista, mas a  possibilidade de eleger, suportar abrir mão de alguma coisa em proveito de outra.
  1. Que relação tu pensas que devem guardar entre si os fundamentos freudianos com os achados das correntes pós-freudianas? Como achas que devem ser ordenados esses distintos campos da teoria na transmissão que se dá durante a formação analítica?

            Fernando Rocha:  
            Na experiência de sua análise pessoal, o candidato a analista irá ter a experiência dos conceitos desenvolvidos pela psicanálise a partir de Freud, numa “psicanálise em ato”. Assim, acredito que seja  sobretudo na análise pessoal que se dá a experiência da transmissão da psicanálise.
            A elaboração curricular, por sua vez, deverá  manter a intenção  de ordenar aquilo que foi vivenciado na  experiência viva da análise, através do estudo teórico desses conceitos  fundamentais, a partir do estudo da obra freudiana tais como: o inconsciente, a repetição, o recalque, a resistência, a sexualidade, a pulsão, o narcisismo, o complexo de Édipo, transferência, entre outros. A partir daí, o  currículo institucional deverá propiciar aberturas para o estudo das contribuições dos pós-freudianos, promovendo a pluralidade teórica, assim como também o estudo das intersecções da psicanálise com os demais saberes.
            Como ser  psicanalista não é uma questão de titulação, devemos marcar a diferença entre uma Instituição de Formação de Psicanalistas e a Psicanálise na Universidade. Uma Instituição de Formação tem que incluir em sua proposta curricular a multiplicidade de percursos próprios a uma formação individual e, portanto, diferenciada. Assim, tem que valorizar no seu projeto não a transmissão acadêmica dos princípios e conceitos psicanalíticos (isso cabe à Universidade), mas a descoberta individual do inconsciente, a partir de um percurso próprio e singular.
Portanto, a  Clínica Psicanalítica poderá  ser compreendida como um lugar a partir do qual se interrogue – e daí advenha – o psicanalista e sua formação, pensada como permanente.

  1. Que papel tu atribuis à produção escrita na formação analítica?

     Fernando Rocha:
Irei me limitar aqui, mais propriamente, à escrita da experiência clínica que envolve a questão dos relatórios clínicos.
Quando se diz que o relato clínico é  uma “tarefa impossível”, é no sentido de que nele tentamos comunicar uma história de transferências, que é um fenômeno inconsciente, logo, algo que é da ordem do processo primário. Esse comunicar, no entanto, somente torna-se possível a partir  de uma  linguagem simbólica, cuja expressão exige o processo secundário. Assim, o relato escrito de uma experiência clínica psicanalítica pode ser entendido como um tipo de criação reveladora de uma tentativa de  travessia de um caminho que, perpassando a experiência do inconsciente – expressa na cena analítica por intermédio da transferência / contratransferência –, chega ao escrito.
Tal aproximação, no entanto, não se faz alcançável na experiência psicanalítica, pois se nela há um objeto – o inconsciente –, esta experiência é da ordem da singularidade, constituindo-se em cada sujeito como uma “viagem” única e imprevisível. Viagem, que como escreveu J. B. Pontalis é “comparável a navegar à bússola: é somente a posteriori  que se estabelecem os mapas e os levantamentos. Mas estes são indispensáveis à elaboração de uma experiência, de outra maneira não governável”.[7]
Escrever, é então, tentativa de reinserção na ordem simbólica, já que a transferência do vivido ao escrito não é um decalque de um dado.
Se as regras que organizam o campo psicanalítico voltam-se para que o fenômeno da transferência e contratransferência possa se instaurar, como relatar vivências que são da ordem do inconsciente?  Somos obrigados a aceitar que a  “transferência não se relata, não se escreve, nem se traduz; ela não é um texto: daí a insuficiência básica de todo resumo de análise tome ou não a forma narrativa, seja história de caso ou disposição de fragmentos[8]”.
Concordamos com Viderman[9], que considera o processo analítico como uma possibilidade de inscrição pelo paciente de sua história, inscrição esta que implicaria não uma história contada, (aquela que o paciente nos traz – seu romance familiar), mas uma história  construída em sua análise. Assim, não é o passado que o paciente vai evocar através de todos os meios de distorção que as defesas lhe impõem, mas seu próprio passado. E essa passagem do definido para o possessivo marca a passagem da história à construção mítica; de uma história objetiva irrecuperável à história imaginária.
Seria pertinente, então, nomearmos relatório clínico aquilo que, dos aspectos da experiência analítica, tornaram-se conscientes, o que possibilita inferir que haja uma escolha do analista que, entre os vários aspectos possíveis de serem relatados, escolhe apenas alguns e não outros.  Portanto, o relatório clínico é o momento de revelação de uma escolha deliberada do que está escrito, traduzindo a possível implicação tanto teórica quanto subjetiva do analista.
Escrever a experiência clínica psicanalítica seria, assim, impossível, embora possamos escrever sobre uma experiência clínica. Podemos arriscar dizendo que tal escrita – por pressupor uma escolha – constitui-se também  num momento de discriminação do analista, no qual ele, tomando distância da situação clínica, pode melhor elaborá-la. Assim, o momento de escrever a clínica é um momento de “descolamento”, de recuperação de seu próprio nome, já que o analista esteve imerso nos movimentos transferenciais.
 Podemos dizer, então, que o lugar de analista pressupõe uma capacidade de identificação e de desidentificação constantes; capacidade de deixar-se invadir, habitar pela transferência do paciente, podendo dela discriminar-se.  A impossibilidade de  operar tal separação é reveladora de que cabe ao analista interrogar-se sobre seus impedimentos. 
Além disso, a produção escrita estando necessariamente submetida à língua, revela-se insuficiente quando pretendemos expressar o oceano de idéias que em nós habita. O confronto com essa impossibilidade conduz a uma vivência de angústia que, se não for englobada como parte do processo de produção criativa, levará à paralisia do próprio ato de escrever. Se todo ato criativo produz tensão, na produção escrita essa tensão vincula-se, em parte, ao anseio de controlar o eventual leitor, na busca do impossível: fazê-lo ler exatamente o que supomos ter escrito.  Toda produção escrita nos conduz ao confronto com os limites próprios dos códigos que permitem expressar uma idéia. Esses limites nos levam, necessariamente, a uma vivência na qual somos obrigados a fazer escolhas. Escolhas que implicam perdas.
Se não podemos esquecer das perdas, não podemos também negar que a escrita, além de propiciar a discriminação do analista, pode conduzir ao pensar sobre si mesmo e à reflexão teórica.

  1. Acreditas que os Institutos deveriam estimular a investigação durante a formação? Se fosse assim, qual a maneira que consideras mais adequada para realizar isso? Crês que deveriam existir políticas institucionais nas Sociedades formadoras – inclusive ao nível de obter subsídios – nesse sentido?

Fernando Rocha:
      Penso que a investigação psicanalítica, por excelência, é o próprio trabalho clínico de investigação do inconsciente. Como aponta Freud, "Na psicanálise tem existido desde o início um laço inseparável entre cura e pesquisa" (....). "O conhecimento trouxe êxito terapêutico", mas (....) "é  somente pela execução do nosso trabalho analítico que podemos aprofundar nossa compreensão [sobre] o que desponta da mente humana..." (Freud, 1927). Na medida em que a clínica se comprometa com a transmissão da psicanálise, espera-se um compromisso que, através de apresentações, uma circulação das experiências obtidas nos atendimentos da clínica produza efeitos de pesquisa.
      Acho importante que se organizem os mais diversos grupos de pesquisa, sejam  sobre determinadas organizações psíquicas, tais como o trabalho com a psicose, a questão da psicossomática, a relação pais-bebê, sejam sobre o aprofundamento dos conceitos psicanalíticos,  além de trocas com outros saberes.
     
  1. Acreditas que a psicanálise deva ter algum tipo de inserção cultural – as chamadas interfaces como, por exemplo, a história, filosofia, música, arte, política, literatura – nas quais a psicanálise realiza intercurso científico com outras áreas do saber? Como pensas que deve ser essa relação?

         Fernando Rocha:
            Não tenho dúvida quanto a importância da inserção cultural da Psicanálise. Se o objeto da psicanálise é o inconsciente, não podemos ignorar que o homem está inserido numa cultura.
Podemos observar que a descoberta freudiana está impregnada pelo interesse de Freud nas mais variadas áreas do saber, tais como a filosofia, a mitologia, a literatura, a história, as  artes, entre outras, interesse este que muito contribuiu e enriqueceu seu pensamento. Ele foi leitor  interessado de  Sófocles, Shakespeare, Goethe, Dostoievsky, e tantos outros. A escritora Lílian Fontes nos lembra que a psicanálise se serve da literatura e a literatura da psicanálise como auxiliares para a reflexão de seus conceitos. Assim, diz ela “podemos falar da relação que Freud estabeleceu  com a tragédia – as tragédias de Sófocles, Shakespeare – de onde  surgiram metáforas temáticas sobre as quais ele criou o seu universo de análises. (...) Paralelamente, podemos alegar que muitos romancistas da história da literatura serviram-se dos conhecimentos da psicologia (psicanálise) para traçar o perfil de seus personagens [10].
Também cedo Freud demonstrou interesse pela filosofia: ainda quando estudante de medicina, seguiu seminários opcionais dessa disciplina e fez um curso com Brentano sobre filosofia de Aristóteles. Em pontos importantes da obra freudiana estão presentes, seja  implícita ou explicitamente, o pensamento de Nietzsche, dos pré-socráticos, de Kant, Newton, Darwin, Schopenhauer, Platão, Hegel, Spinoza, ficando evidente a importância de todos esses saberes na construção da psicanálise. Portanto, o intercurso da psicanálise com as demais áreas do saber é fundamental para o seu progresso.
            Na Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro são vários as atividades que podemos citar como  exemplos de interface da psicanálise com outras áreas do saber. A revista TRIEB (da qual sou um dos editores, juntamente com Viviane Frankenthal e Marci Doria Passos), desta sociedade, tem se voltado para este tipo de reflexão e de troca. A TRIEB já publicou um volume sobre as relações entre Psicanálise e Cinema [11], e seus dois  últimos números, ainda no prelo, são consagrados aos temas “Psicanálise e Interface Social” e “Psicanálise e Literatura”. No volume dedicado à Psicanálise e interface Social, são descritos vários exemplos do trabalho do psicanalista que amplia seu exercício clínico para além do consultório: Na SBPRJ um grupo de psicanalistas vem trabalhado em situações diversas e  adversas e começa a produzir reflexões  sobre a psicanálise para além do divã e dos fartos recursos financeiros. O programa da SBPRJ de interface social da psicanálise - PROPIS - inclui variadas inserções em diferentes campos de atuação, mas procurando manter sempre o lume da teoria psicanalítica.
            No editorial deste volume da TRIEB, lembramos que essa intervenção tanto pode ser centrada apenas no campo teórico, isoladamente, como junto a outros saberes, num exercício interdisciplinar, auxiliando a pensar questões que envolvem o ser humano e os enigmas de sua vida, seja através da arte, da política, da universidade, enfim, das inúmeras possibilidades de expressão humana. A prática clínica também pode se dar institucionalmente, em hospitais, escolas, centros de atendimentos e outras formas de assistência. Neste número da TRIEB foi aberto um espaço para a expressão daqueles psicanalistas que têm operado psicanaliticamente em contextos de baixa renda, demandas sofridas e muitas vezes urgentes.
            Concordo com as colegas Liana A. de Melo Bastos e Munira A. Proença,    que afirmaram na TRIEB: “embora, durante algum tempo, muitos psicanalistas tenham dado pouca relevância à preocupação freudiana com o social, na atualidade, mais do que nunca, esta discussão não pode ser ignorada. Além da crítica da contemporaneidade, cabe à psicanálise a elaboração de novas estratégias de atuação psicanalíticas no campo da prática individual e social”[12].       
Assim se ampliam as possibilidades de atuação dos psicanalistas, enfatizando “a dimensão ética da psicanálise e fazendo do ato psicanalítico um ato público”[13].

            9. Ser reconhecido como psicanalista, poderíamos dizer, é um evento marcado por diversos processos que não necessariamente coincidem com o tempo regular de uma formação ou com o tempo em que a pessoa mesma se reconheça, se “sinta psicanalista”. Como foi sua experiência pessoal com esse processo? Quando foi que você “sentiu que era um psicanalista”?

 Fernando Rocha:
                        Antes de falar sobre ‘se reconhecer’ ou ‘ser reconhecido’ como analista, direi algumas palavras sobre como ‘conheci’ a Psicanálise: Saindo da adolescência, andava às voltas com dúvidas vocacionais, quando um parente me falou sobre um primo que “tratava seus pacientes com palavras”. Aquilo me fascinou. Viajei para conhecer o tal primo psiquiatra-psicanalista de crianças e que também era bom violonista. Foi ele quem, pela primeira vez, me apresentou, me fez  conhecer Freud.
Foi no processo de minha análise pessoal, no entanto, que se criaram  condições para que eu me ‘reconhecesse’ analista e onde pude questionar o meu desejo de  ser analista e descobrir o meu gosto pelo analisar. Mas este desejo só foi “batizado”, quando recebi o meu primeiro paciente em análise. Assim, acredito que a transmissão da psicanálise se dá, essencialmente, por meio da experiência analítica, via transferência, quando o analista se oferece como um lugar para que um saber se dê. Esse percurso analítico vai indicar que cada um deverá refazer, por sua própria conta, o caminho da descoberta freudiana.
No meu caso, houve primeiramente um auto-reconhecimento como analista e, em seguida, o reconhecimento por parte dos pares, da instituição. Penso que não basta ser reconhecido pela instituição para garantir a identidade de analista.
Gosto muito da expressão “ofício de analista”, já que considero que ser analista não é uma profissão, no sentido tradicional  do termo,  mas uma função, um lugar que se ocupa quando se está em situação de análise com um paciente. É a análise pessoal e a formação que devem nos preparar para ocupar este “lugar de analista” - lugar do simbólico, de objeto da transferência -,  lugar que pode não estar sendo ocupado,  mesmo quando  se está sentado na poltrona e há um outro no divã. É desse ‘lugar de analista’ que a linguagem para o analista, antes de se prestar a informar, visa provocar, evocar no paciente tudo aquilo que de sua história permanece inconsciente, porém pulsante, à espera de uma expressão – produção de sentido.
Foi fundamental o reconhecimento por parte de meus pares, o reconhecimento institucional,  na sedimentação da minha identidade de analista. Não resta a menor dúvida que a prática clínica vai aprimorando, vai afinando as nossas condições de ocupação desse lugar de analista. Mas nenhum analista estará isento de sair dele, já que não é um lugar natural, pois, como bem disse Daniel Widlöcher: conduzir-se como psicanalista é ser capaz de desenvolver um modo específico de funcionamento mental que não nos é natural e para o qual nos prepara nossa análise pessoal.[14]
A leitura do interessante livro A Arte cavalheiresca do arqueiro Zen[15][i] nos incita a fazer uma analogia entre o arqueiro e o psicanalista: o perfeito  controle técnico do arco, pelo arqueiro, é apenas  um meio de acesso a um desenvolvimento interior que, por sua vez, repercute sobre o saber: “ao mirar o alvo o arqueiro aponta para si mesmo”. Já a identidade do psicanalista funda-se sobre uma relação com o próprio inconsciente. Neste sentido, o  ofício de analisar nos engaja inteiramente e completamente. Acredito que a formação é interminável e que se ela foi válida, não cessará de nos provocar, de nos manter em questionamento e portanto em transformação, na maioria das vezes imperceptível. Acredito também que essa  transformação depende mais de nossa experiência de análise do que de aquisições de “puro” conhecimento teórico. Sinto-me dentro deste processo de formação interminável - formação para a vida.




[1] Adorno, T. (1995). Educação e emancipação. São Paulo: Paz e Terra.
[2] Faure-Pragier, S. (2001). O implícito no modelo de formação na Société Psychanalytique de Paris. 10a  Conferência de Analistas Didatas no Congresso Internacional da IPA em Nice “Reavaliação do Ensino Psicanalítico: Polêmicas e Mudanças”. Tradução de Marilda Pedreira. Xerox.
[3] Nascentes, A.   Dicionário de Língua Portuguesa. Academia Brasileira de Letras: Departamento de Imprensa Nacional, 1964.
[4] Freud. S. A questão da Análise Leiga (1926).
[5] Ver TOCHTROP, Leonardo. Dicionário Alemão - Português. São Paulo: Globo. 8 edição. 1989.
6MANNONI, M. in “Risque et chance de la supervision”. Études freudiennes, n. 31, maio1989 pg. 29.
[7] J.B. Pontalis, Après Freud. Coll. “Idées”. Paris, Gallimard, 1968.
[8] Entrevista com J. B. Pontalis, realizada por Marcelo Marques. Jornal de Psicanálise. Instituto de Psicanálise da SBPSP. Vol. 35. N 64/65, 2002, pg. 41
[9] S. Viderman. La Construction de L´Espace Analytique. Éditions Denöel, Paris, 1970.
[10] Lílian Fontes. A criação ficcional. O fluxo de consciência em Ulysses, de James Joyce e sua relação com a psicanálise. Rio, 2007. Artigo ainda não publicado. Xerox.
[11]  Revista TRIEB. Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro. Rio, Relume Dumará, Volume III , N. 1 e 2, março/setembro de 2004.
[12] Liana Albernaz de Melo Bastos e Munira Aiex Proença. Psicanálise e Interface Social. Na Revista TRIEB, no prelo.
[13] Idem.
[14] Widlöcher, D. Psychanalyse aujourd´hui: un problème d´identité. L´identité du psychanalyste. Paris, PUF, 1979.
[15] Herrigel, E. (1975). A arte cavalheiresca do arqueiro Zen. São Paulo: Pensamento.