O filósofo,
psicanalista e escritor, um dos maiores intelectuais da França, fala da
diferença entre amigos e amores e relembra de sua convivência com Sartre e
Lacan
Jean-Bertrand, de 88
anos, assina seus livros como J.-B. Estaria aí uma recusa simbólica a ter uma
identidade catalogada? Sim, porque o papa da psicanálise, autor do magistral
Vocabulaire de Ia Psychanalyse, comJeanLaplanche, não gosta de ser definido
como psicanalista. Ele também não aprecia ser chamado de filósofo, seu campo
inaugural, ou de escritor, já que não escreve contos ou romances, embora tenha
recebido em 2011 o Grande Prêmio da Academia Francesa pelo conjunto da obra. Se
é necessário classificá-Ia em um gênero literário, J.-B.Pontalistransita entre o ensaio e a
reminiscência, categoria à qual se deu o nome de "autografia". Ele
recebeu VEJA em seu pequeno escritório na mítica editora Gallimard, onde dirige
duas coleções.
O que é um amigo?
O título do meu livro
sobre esse tema é sugestivo sobre a dificuldade de definir aamizade: Le Songe de Monomotapa
("O sonho de Monomotapa"). Trata-se de uma alusão a urna fábula deJeande La Fontaine (escritor francês do
século XVII). Na fábula, dois amigos vivem nesse país de nome estranho, e um
não possui nada que não pertença ao outro. Não haveriaamizademaisverdadeira,
portanto, nem mais doce, como diz La Fontaine. Mas ela talvez só seja possível
na literatura. Por isso, entre as reflexões que faço sobre aamizade, acho que a melhor
síntese em resposta à sua pergunta é que um amigo de verdade é aquele que nos
protege dos tormentos do amor, nos afasta da fúria raivosa, faz recuar a morte.
Parece quase impossível
encontrar um, amigo verdadeiro.
Eu diria que é muito
difícil. Ainda assim, estamos sempre à procura de um. A minha busca começou bem
cedo, porque sempre tive uma relação conflituosa com meu irmão, e logo me vi
obrigado a achar fora de casa um companheiro para brincar e conversar. O fio
condutor da minha existência é essa procura por um amigo ideal. Como ocorre com
a maioria das pessoas, a intensidade dessa busca foi maior na adolescência, quando
queremos alguém para nos acompanhar nas descobertas sobre o mundo e a quem
confiar nossos segredos e medos e vice-versa. É a época da vida na qual temos
um "melhor amigo" - que, em geral, muda a cada ano, conforme vamos
crescendo e as circunstâncias variam. Apesar da sucessão de "melhores
amigos" nessa idade, a legitimidade de tais amizades não deve ser
contestada. Por um certo período, aquele companheiro de escola ou de bairro foi
realmente nosso "melhor amigo".
Mas a procura daamizadepode ser vã.
Pode, é claro, mas seria
uma lacuna bem triste no meu caso - embora haja quem conviva bem apenas com
colegas ou camaradas. Coleguismo e camaradagem são formas deamizadeque, se não nos fazem sentir mais
fortes, mais vivos - é isso que quero dizer com "recuar a morte" -,
ao menos afastam um pouco a solidão amarga. Nunca deixei de ter muitos amigos,
é algo vital para mim. Evidentemente, mesmo aamizademaisverdadeiranão é feliz durante todo o tempo. Às
vezes, podemos nos afastar, até por razões geográficas, ou ter disputas que
superam a simples discordância a respeito deste ou daquele assunto. A distância
e as fricções, no entanto, jamais significaram um rompimento definitivo com
meus amigos. Há quem faça oelogiodaamizadesem conseguir cultivá-Ia. É o caso de
Proust (MareeI Prousl, o maior dos escrilores modernosfraneeses). Ele teve uma
profusão de amigos, mas no monumental Em Busea do Tempo Perdido há um
julgamento severo sobre aamizade.
Ele diz, em resumo, que ela requer um "eu superficial" - que a profundidade
do "eu" passa longe da relação com um amigo. Está claro que sofreu
uma decepção com aamizade.
Tanto que terminou seus anos fechado num quarto, isolado, escrevendo a obra que
considerava ser sua "verdadeiravida".
Aamizadeé mais vital do que o amor?
Não é mais vital, faz
parte de outra esfera. Como eu disse, o amor traz tormentos, porque é
impulsionado pela paixão. O amor é, ainda, menos durável, não se consegue
mantê-Io continuamente no nível do ardor inicial. Já se falou bastante sobre
qual seria a diferença entre amor eamizade.
A meu ver, o amor visa à satisfação plena, um objetivo tão vago quanto
inalcançável. Ocorre, então, um
paradoxo: a partir de determinado momento, ele passa a alimentar-se da
insatisfação absoluta. Como escrevo no meu livro, talvez só o amor místico seja
a exceção. Aamizade, por
seu turno, nunca almeja a plenitude. Você não pode esperar tudo de um amigo,
muito menos a perfeição, mas só umaamizadeverdadeiraé capaz de nos proteger das oscilações
tumultuosas, da ambivalência intrínseca à relação amorosa - e também do fim do
amor, quando é comum que sobre apenas o ódio de quem você amou e por quem você
foi amado. O ódio, aliás, dura mais do que o amor.
O senhor diz em seu
livro que aamizadeentre uma mulher e um homem só é
possível se não há desejo amoroso entre ambos. Isso significa que o amor não
inclui aamizade?
O amor pode incluir aamizade, mas como extensão dele
próprio. Raramente como um sentimento independente da relação amorosa. Ou seja,
"eu sou amigo porque amo", e não o contrário. Por esse motivo, acho
difícil que, ao fim de uma relação amorosa, mesmo que ele seja pacífico, aamizadeentre um casal sobreviva.
Por que as mulheres, de
acordo com o senhor, não gostam que seu marido ou companheiro por vezes prefira
estar com seus amigos a estar com elas?
Não é o caso da minha
mulher (risos). Mas, em geral, mesmo as menos possessivas se comportam dessa
forma ciumenta. Veem nisso uma troca, um sinal de falta de amor. Noto que boa
parte delas aceita melhor que seu companheiro saia com amigas, desde que
previamente informadas, do que com amigos. É como se vissem no fato de um homem
querer a companhia de outro uma tendência à homossexualidade. Na origem grega
da palavra, todaamizadepor um semelhante é "homo".
Essa evidência, no entanto, para por ai.
A natureza daamizadeentre duas mulheres é diferente?
É muito difícil para um
homem entender aamizadefeminina. Para mim, é como se fosse um
jardim secreto - e acho bom que seja assim. Tendo a crer, porém, que elas
trocam mais confidências do que os homens. Nesse sentido, são melhores amigas.
Pode-se dizer tudo a um
amigo?
Não podemos dizer tudo
nem mesmo ao nosso psicanalista, imagine só a um amigo... Dizer tudo a um amigo
é um lugar-comum que não tem correspondência na realidade, por mais que a
transparência completa seja um ideal da modernidade. Eu já passei por situações
em que me senti traído e traidor por não criticar um amigo que se comportava de
um jeito contraditório à imagem que ele projetava de si próprio para mim. Mas
dizer tudo também pode soar como traição. A transparência absoluta me faz
pensar num episódio com Sartre (o filósofo existencialistaJean-Paul Sartre). Ele e Simone
de Beauvoir (escritora, mulher de Sartre) gostavam de demonstrar que não havia
segredos entre eles. Em certa ocasião, perguntei a Sartre se ele contaria
determinado fato ao "Castor", apelido de Simone. Sartre respondeu que
não. Espantado, indaguei: "Você é capaz de mentir ao Castor?". Ele
disse: "Sim, sobretudo ao Castor!" (risos).
Anos atrás, o ator
italiano Ugo Tognazzi contou uma história que pode ou não ser real: durante a
11 Guerra Mundial, ele se tornou amigo de um companheiro de armas que lhe
salvara a vida. Terminado o conflito, esse sujeito roubou sua namorada.
Tognazzi, então, perguntou à plateia:"Ele pode ser considerado um
amigo?".
É comum que um homem se
sinta atraído pela mulher de um amigo. No caso que você relata, não acho que,
até isso ocorrer, tenha havido necessariamente falsidade. Ele salvou a vida de
Tognazzi, ora! Eu diria que dois homens podem ser amigos a tal ponto que não
conseguem evitar o desejo pela mulher do outro - assim como duas mulheres podem
nutrir umaamizadetão grande entre si que se sentem
atraídas pelo marido da outra.
É um ponto de vista,
digamos, bem francês, não?
São coisas que
acontecem, você sabe... (risos)
O senhor colaborou com
Sartre na revista Les Temps Modernes. Ele foi seu amigo?
Havia uma grande
diferença de idade entre nós. Mesmo que nunca se tenha colocado na posição de
mestre - e eu, na de discípulo -, Sartre era grande demais se comparado a mim.
Posso dizer que haviaamizade,
mas não simetria. Antes de trabalharmos juntos na revista, ele foi meu
professor de filosofia, em 1941. Jamais vou esquecer sua primeira frase no
curso de moral: "O julgamento do fato trata sobre o que é; o julgamento do
valor trata sobre o que deve ser". Fui entender o que ele queria dizer
somente mais tarde, durante o governo colaboracionista do marechal Pétain:
diziam que nós, franceses, havíamos merecido a invasão nazista, porque não
tínhamos sido fortes. O que Sartre me fez compreender é que a França havia sido
derrotada pelos alemães, e esse era um fato, mas que não poderíamos julgá-Io
imutável. Ou seja, que precisávamos dar valor à resistência.
O senhor disse que Sartre
sempre recomendava "pensar contra si próprio". O que isso significa?
Que sempre devemos
desconfiar de nossas certezas, questioná-Ias antes de chegar a uma conclusão.
Não é tarefa fácil pensar contra si próprio, mas Freud (o austríaco Sigmund
Freud, pai da psicanálise), por exemplo, construiu sua obra dessa maneira. A
teoria que ele legou, fundada sobre a sexualidade infantil, é oposta aos seus
primeiros textos sobre o tema. Freud não teve medo de opor-se a si próprio,
quando decidia seguir o caminho que julgava correto.
Sartre "pensou
contra si próprio" quando aderiu ao comunismo?
Não. De fato, ele foi
acometido pela cegueira ideológica na sua defesa do regime soviético e outros
totalitarismos de igual estirpe. Foi crédulo. A filosofia de Sartre, contudo, é
uma filosofia de liberdade, contra a "servidão voluntária" sobre a
qual escreveu La Boétie (Étienne de Ia Boétie, o amigo a quem o pensador Michel
de Montaigne dedicou seu célebre ensaio sobre aamizade, no século XVI).
Que lugar ocupa em sua
memória o psicanalista Jacques lacan?
Eu fiz análise didática
com ele na década de 50, quando a psicanálise na França se encontrava num
estado de hibernação. Saí de Sartre e fui para Freud. Lacan sacudiu o movimento
psicanalítico francês e europeu de forma extraordinária. Tanto que, em seus
seminários, nós nos sentíamos como os primeiros seguidores de Freud. Mas, ao
contrário de Sartre, ele queria ser o mestre, adorava essa posição. E eu jamais
gostei de ser discípulo. É curioso: os lacanianos o imitavam na sua maneira de
falar, de se vestir, comportavam-se como papagaios. Ainda hoje é assim. Lacan
confundia os papéis, ao revelar os nomes de pacientes a seus alunos e cometer
outras heterodoxias. Eu me afastei dele também por questões teóricas.
Discordava da sua fórmula famosa, segundo a qual o inconsciente é estruturado
como uma linguagem. Para mim, isso soava como reduzir as imagens e narrativas
dos sonhos, os atos falhos e os lapsos, um manancial com peculiaridades
subjetivas, a equações matemáticas.
Para além de ser teoria
e prática terapêutica, como definir a psicanálise?
É uma aventura
intelectual dolorosa, longa, cara e sem destino certo. Mesmo os que se
consideram livres de seus sintomas não sabem responder se são mais felizes. Não
sei dizer qual será o futuro da psicanálise como terapia, mas esse aspecto é o
menos importante. A psicanálise não é uma ideologia, e sim uma concepção de
cunho filosófico que jogou a última pá de cal sobre o antropocentrismo. Mostrou
que não somos nem mesmo o centro de nós mesmos, por estarmos sujeitos a pulsões
e a uma narrativa de nossa história individual criptografada no inconsciente,
essa maravilhosa descoberta. Freud, assim, jamais morrerá. Foi - e é um grande
amigo da humanidade.
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em:interjornal.noticias
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Annonce du 73ème Congrès des
Psychanalystes de Langue Française
PARIS - du 9 au 12 mai 2013 (grand week-end de l’Ascension)
A la Maison de la Mutualité
Organisé par :
L’Association Psychanalytique de France (APF)
et la Société Psychanalytique
de Paris (SPP)
Thème
: Le Paternel
Deux rapports
seront présentés :
Christian DELOURMEL (S.P.P.)
De la fonction du père au principe paternel (titre provisoire)
François VILLA (A.P.F.)
Le père : un héritage
archaïque ? (titre
provisoire)
Secrétaires scientifiques : Evelyne
Chauvet, Georges Pragier
Comité
scientifique: Jacques
Angelergues, Claude Barazer, Françoise Coblence, Dominique Cupa, Paul Denis,
Sabina Lambertucci-Mann, Patrick Mérot, Denys Ribas, Claude Smadja, Michel
Vincent
Comité
d’organisation : Julien
Ben Simon, Sylvie Faure-Pragier, Béatrice Ithier, Philippe Quemere,
Claire
Trémoulet, Geneviève Veuriot
Comité
de lecture : Marc
Babonneau, Clarisse Baruch, Elisabeth Birot, Emmanuelle Chervet, Miguel de
Azambuja, Jean-Claude Elbez, Danielle Kaswin-Bonnefond, Isabelle
Martin-Kamieniak, Cristina Lindenmeyer, Paule Lurcel, Michèle Pollak-Cornillot,
François Richard, Philippe Valon
Bibliographie commune aux
deux rapporteurs
Assmann
J., Moïse l’Egyptien, Paris, Aubier,
2001
Botella
S. (2005), L’Œdipe du ça ou Œdipe sans
complexe, RFP, t. lxix, n°3.
Freud
S. (1912-1913 a), Totem et tabou, Gallimard, 1993.
Freud
S. (1921 c), Psychologie collective
et analyse du Moi, OCF.P, xvi, Paris, PUF, 1991.
Freud
S. (1939 a), L’homme Moïse et la religion
monothéiste, OCF.P, xx, Paris, PUF, 2010.
Gould S. J., Ontogeny
and phylogeny, Cambridge, The Belknap Press of Harvard University
Press, 1977.
Granoff
W., Filiations, Éd. Minuit, 1975.
Green
A. (1966), Les fondements différenciateurs des images parentales, Propédeutique, Seyssel, Champ Vallon,
1995.
Kahn
L., Faire parler le destin,
coll. Méridiens, Klincksieck, 2005.
Lacan
J. (1958), La métaphore paternelle, Les trois temps de l’œdipe, Les formations de l’inconscient, Le séminaire, livre V, Éditions du Seuil.
Le
Guen C., L’Œdipe Originaire, Paris,
Payot, 1974.
Moscovici
M., Il est arrivé quelque chose.
Approches de l'événement psychique, Paris, Payot, 1991.
Tort
M., La fin du dogme paternel, Paris,
Champ Flammarion, 2005.
Les résumés et
arguments des rapporteurs sont consultables
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9h00 – 9h15 Ouverture
par Bernard Chervet, Président de la SPP et les représentants des Sociétés Brésiliennes :
L. Falcão (SPPA-Porto Alegre), J. Canelas (SBPSP-São Paulo) et A.
Horn (SBPRJ-Rio de Janeiro)
9h15-10h30 Présentation
clinique de Fernando Rocha (SBPRJ)
Modérateur
de la discussion : Paul Israël (SPP)
10h30 -11h00 Pause-café
11h00-12h00 Discussion
avec la salle
12h00-14h00 Déjeuner
14h00-15h30 Présentation clinique de Claire
Cubells (SPP)
Modérateur
de la discussion : José Carlos Caliche (SPPA)
15h30-16h30 Discussion
avec la salle
16h30-17h00 Pause-café
17h00-18h00 Reprise des cas et discussion
générale
Modérateurs :
Bernard Chervet (SPP) et Luis Carlos
Menezes (SBPSP)
Inscriptions et renseignements auprès du
Secrétariat de la SPP :
Yasmina Belahcen
– accueil@spp.asso.fr – 01 43 29 26 17 PARA PROSSEGUIR NA LEITURA DAS DEMAIS POSTAGENS DESTE BLOG, CLIQUE NO FINAL DESTA PÁGINA ONDE SE LER "POSTAGENS MAIS ANTIGAS" ( logo abaixo à direita).
Eu vi com os meus olhos e
observei bem um pequeno tomado de ciúmes: ainda não falava e não podia, sem
empalidecer, lançar o seu olhar para o espetáculo amargo do seu irmão de leite.
Este ensaio apresenta um diálogo entre a visão
psicanalítica do ciúme e como ele é expresso na cultura em vários tempos e
lugares, com especial ênfase na música popular brasileira. Também discute a
tênue fronteira que separa ciúme, inveja e avidez, apoiando-se em clássicos da
psicanálise e do teatro, mostrando como esses fenômenos são cantados e
representados pelo imaginário social. Em sua análise, o autor mostra
ainda como o ciúme é estruturante da psique humana e como está na origem do
amor.
Palavras-chave: Ciúme; inveja; psicanálise; música
popular brasileira
Inicio este ensaio com a composição Gota
d’água, por expressar o ciúme na sua forma mais extremada. De Chico Buarque
de Hollanda e Paulo Pontes, é tema da versão brasileira da peça teatral Medeia, adaptada em 1975 por Oduvaldo
Vianna Filho.[3]
Já lhe dei meu corpo,
minha alegria, já estanquei meu sangue quando fervia;/Olha a voz que me resta,
olha a veia que salta, olha a gota que falta, pro desfecho da festa, por
favor,/Deixe em paz meu coração/Que ele é um pote até aqui de mágoa/E qualquer
desatenção faça não/Pode ser a gota d’água/Pode ser a gota d’água/Pode ser a
gota d’água.
Clássico do teatro grego, Medeia,
de Eurípedes (413 a.C.),
retrata a tragédia de ciúme da mulher abandonada por seu marido, Jasão, a quem
Medeia muito havia ajudado em difíceis tarefas. Jasão tinha ido a Cólquida para
obter o “velo de ouro”[4].
Ao chegar a Corinto ele, já casado, apaixona-se pela filha do rei Creonte e
abandona Medeia, que, humilhada e desconsolada, elimina a rival e seu pai com
seus poderes mágicos e, além disso, mata os próprios filhos. Não poderia haver
vingança maior do que a de tirar do homem, objeto de seu ciúme, a sua
descendência.
A peça aborda o ciúme como avassalador tormento de alma que, revelando-se
sentimento atemporal, retrata, tanto na versão grega quanto na brasileira, a
angústia de mulheres possuídas pelo extremo do ciúme, em sua forma trágica.
Mais do que uma alegoria, Medeia guarda uma atemporalidade, expressa nos vários
casos de filicídio no mundo contemporâneo. Como exemplo, temos o caso de um
homem londrino, P.W., que, ciente de que a ex-mulher estava namorando on-line, tem um acesso de ciúme e
estrangula os dois filhos com o cabo do computador, tentando, em seguida,
matar-se com uma overdose de medicamentos. Foi condenado a 28 anos de prisão. Aqui
no Brasil podemos citar o exemplo do comentado caso N., em que a madrasta e o
pai foram acusados do homicídio de uma criança. Não se trata de exemplos
isolados nem raros. Filicídios, sejam pelo pai, seja pela mãe, causados por
ciúmes, povoam as páginas policiais dos mais diferentes países. No caso do filicídio
praticado por Medeia na tragédia grega, o ciúme atinge os limites do pensável.
Felizmente, porém, o ciúme pode se expressar nos mais variados matizes,
do extremo mais horrendo da tragédia ao ciúme “como perfume do amor”, como cantou
Vinicius de Moraes em uma de suas canções. Essa dimensão do ciúme faz evocar a
origem da palavra. Ciúme deriva do latim zelumen,
evoluindo para “zelo” em português, e, segundo Valdemiro Rodrigues (1953), ciúme
inspira-se na palavra “cio” (dos animais), significando “zelo de amor”. Nesta
música também aparece a ideia do ciúme como “um mal de raiz”:
Vire esta folha do livro
e se esqueça de mim/Finja que o amor acabou e se esqueça de mim/Você não
compreendeu que o ciúme é um mal de raiz/E que ter medo de amar não faz ninguém
feliz/Agora vá sua vida como você quer/Porém não se surpreenda se uma outra
mulher/Nascer de mim, como no deserto uma flor/E compreender que o ciúme é o
perfume do amor (Medo de amar, Vinicius
de Moraes).
No entanto, Paul-Laurent Assoun (2011)[5] chama
a atenção para o fato de que a palavra alemã utilizada por Freud para designar
o ciúme é Eifersucht, que designa literalmente
“o medo apaixonado, excitado, de perder o amor de alguém ou de ter que
dividi-lo” (Assoun, 2001, p. 9). E também “o temor de ter que renunciar a alguma
coisa que poderia gerar benefícios ou direito, o que implica a defesa ciumenta”
(ibidem, p. 9). O termo Eifersucht seria
composto de duas partículas:eifer, que designa ozelo, e sucht, que se
refere ao movimento passional com “conotação patológica, espécie de paixão
mórbida” (Freud, 1897, citado por Assoun, 2011, p. 9).
Sucht é, assim, um vocábulo que
designa “uma necessidade crescente doentia, a ponto de se empregar esse termo
como sinônimo de adição” (Assoun, 2011, p. 9). Nessa concepção, sucht refere-se a uma necessidade que visa
a se satisfazer intensamente, de maneira a buscar o objeto suscetível de provocar
a satisfação dessa necessidade imperiosa, aumentando em força, de tal maneira
que adquire uma dimensão invasora e patológica. O termo freudiano sucht marcaria a dimensão da apetência
pulsional (wunsch, verlangen)
polarizada sobre um objeto eletivo. Dessa forma, o termo se assemelharia
semanticamente a rivalidade. Além disso, o adicto tem, de fato, uma relação possessiva
e ciumenta com seu tóxico.
Dizer Eifersucht é, portanto,
situar o ciúme no registro “aditivo – da dependência mórbida (sucht)” (Assoun, 2011, p. 10). O ciumento
apresentaria uma “forma de zelo – intempestivo – em relação ao objeto de sua chama.
Ele não o larga um milímetro sequer e organiza todos os seus atos e
preocupações em torno dele, sob o modo conjugado de atração e de ressentimento”
(ibidem, p. 10).
Em outra abordagem, Freud (1922, p. 271) apresenta o ciúme como a “chave
da vida psíquica normal e patológica”, dizendo:
O ciúme é um daqueles
estados emocionais, como o luto, que podem ser descritos como normais. Se alguém
parece não possuí-lo, justifica-se a inferência de que ele experimentou severa
repressão e, consequentemente, desempenha um papel ainda maior em sua vida
mental inconsciente (Freud, 1922, p. 271).
O ciúme faria parte da estrutura
psíquica do sujeito, organizada a partir da experiência dos ciúmes infantis.
Na perspectiva freudiana, há o ciúme “normal” ou competitivo, o ciúme projetivo
– que faz com que o sujeito atribua ao parceiro ou parceira seus próprios
desejos de infidelidade – e o ciúme delirante articulado à paranoia (Freud,
1922).
O ciúme “normal” seria composto de pesar, dor e sofrimento, decorrentes
de pensamentos que envolvem a perda do objeto amado e da ferida narcísica dos
sentimentos hostis dirigidos contra “o rival bem-sucedido e de maior ou menor
quantidade de autocrítica, que procura responsabilizar por sua perda o próprio
ego do sujeito” (ibidem, p. 271).
Embora considerado “normal”, não se trata de um ciúme derivado de uma
situação real e nem que esteja sob o controle completo do ego consciente. É um
ciúme que se encontra profundamente enraizado no inconsciente. Por ser uma
continuação das primeiras manifestações da vida emocional da criança, origina-se
do complexo de Édipo do primeiro período sexual (Freud, 1922).
O “ciúme normal” estaria presente tanto na estruturação e descoberta do
eu como na percepção do outro. Lacan (1981, p. 47) diz que “o eu constitui-se
ao mesmo tempo que o outrem no drama do ciúme”. Para ele, “o sujeitoé uma discordância que intervém na satisfação
especular devido à tendência que esta sugere. Ela implica a introdução de um
terceiro objeto, que, na confusão afetiva como na ambiguidade especular, substitui
a concorrência de uma situação triangular”.
Em interessante comentário, Assoun (2011) ressalta também que Lacan
devolve a contribuição freudiana para uma metapsicologia do ciúme, retomando
ainda a questão da posição estruturante deste a partir de sua função especular,
bem como de sua oscilação simbólica.
Já o ciúme projetivo é apresentado por Freud (1922, p. 272) como aquele
que deriva, tanto nos homens quanto nas mulheres, “da própria infidelidade
concreta na vida real ou de impulsos que sucumbiram à repressão”. O ciúme
decorrente de tal projeção, embora possuindo “um caráter quase delirante”, é
mais acessível ao trabalho analítico pela exposição das fantasias inconscientes
da própria infidelidade do sujeito (ibidem, p. 293).
O terceiro tipo de ciúme, o delirante propriamente dito, embora também
tenha sua origem em impulsos reprimidos no que tange à infidelidade, nele o
objeto é do mesmo sexo do sujeito.
Podemos depreender da perspectiva psicanalítica que o amor começa pelo
ciúme. O ciúme estaria ligado ao sentimento de amor, ao sentimento de insegurança,
no qual explode com a necessidade que se tem do objeto amado. Em carta a Ludwig
Binswanger, Freud (1920, citado por Assoun, 2011, p. 5) diz que “é o ciúme que
parece poder nos dar a compreensão mais profunda da vida psíquica, tanto normal
como patológica”.
Para
o compositor gaúcho Lupicínio Rodrigues (1914–1974), comparado por Augusto de
Campos a Nelson Rodrigues na coragem de desnudar os sentimentos dos
brasileiros, nem “as pessoas de nervos de aço, sem sangue nas veias e sem
coração” estão isentas do ciúme. Vejamos o que ele diz no samba “Nervos de aço”:
Você sabe o que é ter um
amor, meu senhor?/Ter loucura por uma mulher/E depois encontrar este amor, meu
senhor/Nos braços de um outro qualquer/Você sabe o que é ter um amor, meu senhor?/E
por ele quase morrer/E depois encontrá-lo em um braço/Que nem um pedaço do seu
pode ser/Há pessoas de nervos de aço/Sem sangue nas veias e sem coração/Mas não
sei se passando o que eu passo/Talvez não lhe venha qualquer reação/Eu não sei
se o que trago no peito/É ciúme, despeito, amizade ou horror/Eu só sei é que
quando a vejo/Me dá um desejo de morte ou de dor.
Para o saudoso radialista Luis Carlos Saroldi, Lupicínio Rodrigues teria
conseguido formular como ninguém o que se poderia chamar, parodiando requintada
terminologia sartriana, de sentimento de “cornitude”. E é exatamente esse
ingrediente o responsável pelo sucesso estrondoso de Nervos de aço em 1947, revisitado trinta anos depois por Paulinho
da Viola.
Mas a descrição do
ciúme como “um desejo de morte ou de dor” vai reaparecer, sob outras palavras e
melodia, no samba-canção que chegou ao sucesso em 1951 na voz de Linda Batista
e que se tornou um modelo do gênero conhecido como música de fossa ou
dor-de-cotovelo[6].
Eu gostei tanto, tanto,
quando me contaram/Que te encontraram bebendo e chorando na mesa de um bar/E que
quando os amigos do peito por mim perguntaram/Um soluço cortou sua voz não lhe
deixou falar/Mas eu gostei tanto, tanto quando me contaram/Que tive mesmo de
fazer esforço pra ninguém notar/O remorso talvez seja a causa do seu desespero/Você
deve estar bem consciente do que praticou/Me fazer passar tanta vergonha com um
companheiro/E a vergonha é a herança maior que meu pai me deixou/Mas enquanto
houver força em meu peito eu não quero mais nada/Só vingança, vingança,
vingança aos santos clamar/Você há de rolar como as pedras que rolam na estrada/Sem
ter nunca um cantinho de seu pra poder descansar (Vingança, Lupicínio Rodrigues)
Arrigo Barnabé disse:
Não
acredito em nada que não tenha angústia, isso talvez é o que mais me atrai nas
canções de Lupicínio, e também a raiva, gosto muito de trabalhar com a raiva, a
revolta. Nele tudo é verdadeiro, e raiva e angústia é meio difícil fingir. Por
essa observação penetrante do ser humano nas situações limites da dor amorosa,
por este humor que permeia as canções, um humor voltado para a ironia e o
sarcasmo, por tudo isso estava atravessada a vontade de cantar Lupicínio
(Barnabé, 2010/2011).
O ciúme é sentimento presente em crianças e adultos. Mas também entre irmãos,
ou mesmo filhos que brigam pelo amor de um dos pais. Podemos considerar
inaugural do ciúme e da inveja humanos a história bíblica de Caim e Abel,
respectivamente, o primeiro e o segundo filho de Adão e Eva. Caim lavrava a
terra enquanto Abel pastoreava ovelhas. Caim trouxe do fruto da terra uma
oferta ao Senhor, e Abel também trouxe (a sua oferta) das suas ovelhas. O
Senhor valorizou a oferta de Abel, o que não expressou em relação a Caim. Este,
irado, sentindo-se desvalorizado e enciumado, matou o irmão.
E agora maldito és tu
desde a terra, que abriu a sua boca para receber da tua mão o sangue do teu
irmão. Quando lavrares a terra, não te dará mais a sua força; fugitivo e
errante serás na terra (Bíblia Sagrada, Gênesis 4.12,13 ).
Também podemos ver o ciúme retratado entre habitantes de duas cidades, como
Petrolina, em Pernambuco, e Juazeiro, na Bahia. Na música O ciúme, Caetano Veloso aborda de forma poética este sentimento entre
os habitantes de duas cidades separadas por uma ponte sobre o rio São Francisco
– o “velho Chico” –, objeto do ciúme:
Dorme o sol à flor do
Chico meio-dia/Tudo esbarra embriagado de seu lume/Dorme ponte, Pernambuco, Rio,
Bahia/Só vigia um ponto negro o meu ciúme/O ciúme lançou sua flecha preta/E se
viu ferido justo na garganta/Quem nem alegre nem triste nem poeta/Entre
Petrolina e Juazeiro canta/Velho Chico vens de Minas/De onde o oculto do
mistério se escondeu/Sei que o levas todo em ti, não me ensinas/E eu sou só eu
só eu só eu/Juazeiro, nem te lembras desta tarde/Petrolina, nem chegaste a
perceber/Mas na voz que canta tudo ainda arde/Tudo é perda tudo quer buscar
cadê/Tanta gente canta tanta gente cala/Tantas almas esticadas no curtume/Sobre
toda estrada sobre toda sala/Paira monstruosa a sombra do ciúme.
Afinal, qual a origem do ciúme? O ciúme se origina nas relações precoces
da infância humana, no instante fundamental da vida, em que dependemos do amor
materno para sobreviver. É por isso que toda relação amorosa contém, na sua
origem, um sentimento de posse e pretende ser única e exclusiva. Portanto, quanto
melhor elaboramos ou simbolizamos a perda dessa dependência infantil, mais
autônomos conseguimos ser e menos ciúme vamos sentir.
Segundo Lacan (1981, p. 48), “a observação experimental da criança e as
investigações psicanalíticas, demonstrando a estrutura do ciúme infantil,
trouxeram à luz do dia o seu papel na gênese da sociabilidade e,
simultaneamente, do próprio conhecimento enquanto humano”. Essas pesquisas
teriam revelado que o ciúme representa não só uma rivalidade vital, mas também
uma identificação mental.
O ciúme infantil é evocado por Lacan (1981), quando cita Santo Agostinho:
“Eu vi com os meus olhos e observei bem um pequeno tomado de ciúmes: ainda não
falava e não podia, sem empalidecer, lançar o seu olhar para o espetáculo
amargo do seu irmão de leite”.
A prematuração do ser humano ao nascer é importante para a compreensão do
ciúme e da inveja. Diferente dos outros animais, o pequeno humano nasce
prematuro, antes da completa mielinização do sistema nervoso, e,
consequentemente, num extremo estado de dependência. Se observarmos outros
animais, veremos que logo após o nascimento eles ficam de pé e buscam se alimentar
de maneira ativa. Já o pequeno humano, devido ao seu estado de total
dependência, vive uma experiência inicial na qual a construção do eu será
calcada numa relação dual com a mãe como espelho propiciador de uma primeira
identificação, em que o olhar da mãe vai funcionar como o lago para o pequeno
Narciso. É por essa época que a criança começa a vivenciar a mãe como todo-poderosa,
objeto de inveja, e vai ansiar para si esse poder percebido. É interessante notar
que o termo inveja origina-se de videre
– ver. Daí a origem das expressões
“olho gordo”, “mau-olhado”, “olho de seca-pimenteira”, etc.
Elliot Jaques, citado por Melanie Klein (1968, p. 18)[7], chama
a atenção para a raiz etimológica da palavra inveja: “do latim invidia, que deriva do verbo invideo – olhar alguém atravessado, considerá-lo
com desconfiança ou rancor, jogar-lhe o mau-olhado, invejar ou guardar rancor
de alguém”. Ele ilustra seu comentário utilizando a frase de Cícero: “provocar
uma infelicidade por um mau-olhado”.
Embora universal, o ciúme está longe de ser visto como natural, pois,
atravessando as relações afetivas, evoca os mais diversos sentimentos.
No artigo “Ciúme e traição: reflexões antropológicas”, a antropóloga Mirian
Goldenberg apresenta interessantes dados de 1996 do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística, de homens e mulheres das camadas médias urbanas do Rio
de Janeiro, que evidenciaram que, embora o ciúme e a infidelidade consistam em
um dos principais problemas vividos nos relacionamentos amorosos, homens e
mulheres apresentavam um discurso paradoxal, no qual, de um lado, há a
exigência de privacidade, independência e autonomia e, de outro, de
“sinceridade absoluta”, cumplicidade e complementaridade.
A autora indaga: como conciliar o não conciliável? Como fazer dialogar
“sinceridade absoluta e cumplicidade com respeito à privacidade e à
individualidade?” Como combinar o sentimento de posse contido num relacionamento
amoroso e o desejo de preservação dos espaços individuais?
Há um paradoxo importante que se deve levar em consideração: enquanto a sexualidade
humana é naturalmente poligâmica, a sociedade em que vivemos é monogâmica. Ou
seja: a natureza é poligâmica e a nossa sociedade é monogâmica. Nossa cultura
tenta resolver essa contradição. A fidelidade, então, não é natural, mas uma
tomada de posição, derivando de uma escolha absolutamente racional.
De noite eu rondo a
cidade/a te procurar hei de encontrar/No meio de olhares espio/em todos os
bares você não está/Volto pra casa abatida/desencantada da vida/O sonho alegria
me dá/Nele você está/Ah, se eu tivesse quem bem me quisesse/este alguém me
diria/Desiste esta busca é inútil eu não desistia/Porém com perfeita paciência
volto a te buscar hei de encontrar/Bebendo com outras mulheres/rolando dadinho
jogando bilhar/E neste dia então/Vai dar na primeira edição/Cena de sangue num
bar na avenida São João (Ronda, Paulo
Vanzolini).
Uma das características humanas, diz Freud em Totem e tabu (1913), é desejar o que é proibido. Daí a proibição
ser um elemento importante para fazer ressurgir o desejo. Esse gosto pelo
proibido justifica a necessidade de criar um mandamento como o nono, que ordena
“não desejar a mulher do próximo”. A existência desse mandamento revela que o
desejo existe no humano e carece de interdição. Essas interdições se impõem na
cultura, revelando-se muitas vezes adequadas, ao possibilitar o apaziguamento
das pulsões. Na ausência desse apaziguamento, há o possível aparecimento de
patologias e, neste sentido, diferentemente das religiões, a psicanálise propõe
soluções singulares.
Não sendo possível desvincular o ciúme do adulto do ciúme da criança, ou
seja, do ciúme compreendido como uma estrutura do psiquismo humano, haverá
sempre uma raiz infantil no ciúme do adulto.
Uma música do repertório popular que nos evoca a imagem de um ciúme
adulto com suas raízes infantis é Lábios
que beijei, composição de J. Cascata e Leonel Azevedo, um dos maiores
sucessos da brilhante carreira de Orlando Silva, gravada em 1937:
Lábios que beijei, mãos
que afaguei/Numa noite de luar assim/O mar no céu bramia/E o vento a soluçar
pedia/Que fosses sincera para mim/Nada tu ouviste/E logo partiste/Para os
braços de um outro amor/Eu fiquei chorando/Minha mágoa cantando/Sou a estátua
perenal da dor/Passo as noites soluçando com meu pinho/Carpindo a minha dor
sozinho/Sem esperanças de vê-la jamais/Deus tem compaixão deste infeliz/Por que
sofrer assim?/Compadecei-vos dos meus ais/Tua imagem permanece imaculada/Em
minha retina cansada/De chorar por teu amor/Lábios que beijei/Mãos que
afaguei/Volta dá lenitivo à minha dor.
Para compreendermos o ciúme no adulto, faz-se necessário compreendermos o
ciúme na criança. O ciúme na criança nos remete, inevitavelmente, como já vimos, à sua dimensão estruturante. O
ciúme ocorre na passagem da relação dual com a mãe para a ocupação do lugar de
filho na relação triangular edípica – no momento marcado pelo medo de perder
para outro o seu objeto de completude, de amor primário.
É no estabelecimento da introdução da função paterna que será definida a
estrutura do ciúme, originada dos amores infantis. O ciúme nasce no momento
denominado por Freud de complexo de Édipo, havendo, portanto, uma profunda
ligação entre o ciúme do adulto e o ciúme da criança.
Assim, supõe-se que a vivência imaginária da criança de que foi traída
pela mãe com o pai vai abalar a fantasia de onipotência infantil. Embora
constitutivos do humano, inveja e ciúme nascem em momentos distintos, sendo a
inveja anterior ao ciúme.
Como vimos, o estado de dependência do humano ao nascer o faz experienciar
a mãe numa não diferença, em que ele é ao mesmo tempo um outro e si mesmo, num
movimento de fusão-desfusão. Ela é vivenciada como aquela capaz de
preencher-lhe as faltas e necessidades, levando-o ao sentimento de inveja. Por
conseguinte, o bebê vai “perceber” a mãe como todo-poderosa, não diferenciada
de si, estando ele ainda indiscriminado. Neste sentido, a inveja é uma
experiência narcísica, própria a todos os bebês humanos, anterior à aquisição
do sentimento de alteridade e, poderíamos dizer, contemporânea da primeira
experiência de satisfação.
O ciúme, contemporâneo do
complexo de Édipo, envolve uma relação com o outro. Já a inveja se refere
à relação do indivíduo com uma só pessoa, remontando à mais primitiva relação
exclusiva com a mãe. Ela decorre da relação de total dependência do bebê com a
mãe, sendo esta a fonte de todo o amor. É nessa experiência precoce que ocorrem
as marcas de formação tanto da inveja como do ciúme.
Klein (1968) estabelece importante distinção entre a inveja, o ciúme e a
avidez. Para ela, a inveja seria o sentimento de cólera que invade um sujeito
quando este teme que um outro possua alguma coisa de desejável e que dela goze.
Dessa forma, “a impulsão invejosa tende a apoderar-se deste objeto ou a
estragá-lo” (p. 17). Já o ciúme se fundaria sobre a inveja, mas, enquanto esta implica
uma relação do sujeito com uma só pessoa e remonta a toda primeira relação
exclusiva com a mãe, “o ciúme comporta uma relação com duas pessoas no mínimo e
convergiria principalmente ao amor que o sujeito sente como lhe sendo devido e
tomado por um rival” (p. 18). Por sua vez, a avidez seria a marca de “um desejo
imperioso e insaciável, que vai ao mesmo tempo para além do que o sujeito tem
necessidade e além do que o objeto pode ou quer lhe acordar” (idem).
Na dimensão inconsciente,
a avidez busca essencialmente esvaziar, exaurir ou devorar o seio materno; ou
seja, sua finalidade é uma introjeção destrutiva. A inveja não visa apenas à
depredação do seio materno, ela tende, além disso, a introduzir na mãe, antes
de tudo em seu seio, tudo o que é mau, e primeiramente excrementos maus e partes
más do self, a fim de deteriorá-la e
de destruí-la. O que, no sentido mais profundo, significa destruir sua
criatividade (Klein, 1968, p. 18).
Klein (1968) conclui afirmando que “inveja e avidez tendem à destruição”
– a primeira pela via da projeção e a
segunda, de modo mais radical, pela introjeção.
Já o ciúme seria vetorizado pela relação amorosa com o outro, ainda que mesclado
com uma destrutividade de fundo invejoso.
A inveja dirigida ao seio
materno e o aparecimento do ciúme estão diretamente ligados. O ciúme se funda
sobre a rivalidade com o pai, suspeito e acusado de ter se apoderado do seio
materno e da mãe. Essa rivalidade marca os estádios iniciais do complexo de
Édipo positivo e negativo, que aparece normalmente ao mesmo tempo que a posição
depressiva no decurso do segundo quarto do primeiro ano (Klein, 1968, p. 40).
Para Assoun (2011), a inveja ciumenta estaria aquém da cena originária,
momento em que o bebê, ao ver a mãe se afastar, dá-se conta de sua dor. Essa
“dor originária” sinalizaria a inscrição no sujeito de um objeto a perder.
Trata-se, segundo Freud (citado por Assoun, 2011) da dor “diante do rosto
estranho que vem usurpar o lugar do outro materno procurado pelos olhos” (p. 45).
Freud apresenta a cena originária da separação como sendo o momento em que a
criança vê a mãe se ir, constituindo o acontecimento mudo, pré-histórico do
ciúme.
Portanto, mesmo antes da instauração do ciúme, a dor já estaria presente,
marcando a existência de um ciúme ulterior na dialética do
aparecimento/desaparecimento. A mãe sabe, então, gerir a situação, brincando de
desaparecer, prometendo ao mesmo tempo seu reaparecimento. Mais tarde, porém, a
criança fará hipóteses sobre as causas desse vaivém materno, atribuindo-o ao pai,
explicando o ciúme que permanece infiltrado de dor, já em sua origem (Assoun,
2011).
O ciúme
dói nos cotovelos/Na raiz dos cabelos/Gela a sola dos pés/Faz os músculos
ficarem moles/E o estômago vão e sem fome/Dói da flor da pele ao pó do osso/Rói
do cóccix até o pescoço/Acende uma luz branca em seu umbigo/Você ama o inimigo/Se
torna inimigo do amor/O ciúme dói do leito à margem/Dói pra fora na paisagem/Arde
ao sol do fim do dia/Corre pelas veias na ramagem/Atravessa a voz e a melodia (Dor de cotovelo, Caetano Veloso).
Se na música popular brasileira o ciúme foi cantado em diferentes matizes,
com relação aos clássicos da literatura talvez a obra mais significativa seja Otelo, de Shakespeare, exemplar quando
se trata do ciúme. Se fizermos um resumo da trama, encontraremos: Otelo é o
general mouro do reino de Veneza que, por ciúmes e inveja, é vítima de uma
armadilha do seu alferes Iago, que se vinga de Otelo porque este promoveu
Cássio, jovem soldado florentino e grande intermediário nas relações entre
Otelo e Desdêmona, em lugar dele, Iago.
Contrariando o pai, Brabâncio, rico senador de Veneza, Desdêmona se casa
com Otelo. Mas a raiva do pai contra o casamento foi minimizada porque Otelo
gozava da estima e da confiança do Estado, por ser leal, muito corajoso e ter
atitudes nobres.
Iago, que odiava Otelo e Cássio, começou a semear a discórdia: hábil e
profundo conhecedor da natureza humana e sempre fazendo reflexões sobre a
humanidade, Iago sabia que, de todos os tormentos que afligem a alma, o ciúme é
o mais intolerável e incontrolável.
Dando continuidade a seu plano, Iago insinuou a Otelo que Cássio e sua
esposa poderiam estar tendo um caso. O plano foi tão bem traçado que Otelo
começou a desconfiar de Desdêmona. Depois de várias armadilhas criadas por Iago
para fazer Otelo acreditar na traição da esposa, Otelo, em total descontrole,
asfixia Desdêmona em seu quarto. Ao saber que matara sua amada injustamente, desesperado
apunhalou-se, caindo sobre o corpo da mulher. Otelo morre, beijando a quem
tanto amava. Ao fim da tragédia, Cássio passa a ocupar o lugar de Otelo e Iago é
entregue às autoridades para ser julgado.
Comentando passagens de Otelo, Klein (1968) ressalta que Shakespeare não
parece sempre distinguir a inveja do ciúme. E ilustra sua observação com o
seguinte verso: “Oh, senhor, cuidado com o ciúme. É o monstro de olhos verdes
que desdenha da carne que o nutre” (ibidem, p. 20).
Klein (1968, p. 19) chama a atenção para o fato de o invejoso ser insaciável,
sempre insatisfeito. “Monstro de olhos verdes”, traz a inveja enraizada em si, encontrando
facilmente um objeto para o qual dirigi-la, revelando o estreito laço entre
ciúme, inveja e avidez.
Ainda segundo Klein (1968), Otelo, dominado pelo ciúme, destrói o objeto
que ama, o que caracterizaria “uma paixão ignóbil”.
O ciúme é uma paixão
nobre ou ignóbil segundo o objeto. No primeiro caso, ele (o ciúme) se traduz
por uma imolação aguçada pelo medo, no segundo, por uma avidez estimulada pelo
temor. A inveja é sempre uma paixão vil, provocando as piores paixões na sua
esteira (Crabb, citado por Klein, 1968, p. 19).
Segundo o English Synonym, de
Crabb, citado por Klein (1968, p. 19), “o ciúme é o temor de perder o que se
possui; a inveja é o sofrimento de ver outro possuir o que se deseja para si próprio.
(...) O prazer do outro atormenta o invejoso, que só se compraz no infortúnio
dos outros”.
Para Klein (1968), a atitude geral em relação ao ciumento difere da relativa
ao invejoso. Ela lembra que em certos países, como a França, um crime passional
cujo móvel é o ciúme beneficia-se de circunstâncias atenuantes, devido ao fato
de a morte de um rival implicar o amor pela pessoa infiel. O que significa, diz
ela, “que em nossa terminologia o amor pelo ‘bem’ existe e que o objeto amado
não é danificado ou deteriorado como o seria pela inveja” (p. 19).
Já na literatura brasileira uma obra exemplar que retrata o ciúme é o romance
Dom Casmurro, de Machado de Assis, no
qual é narrada a famosa história da desconfiança que o personagem Bentinho tem
de sua mulher, Capitu, achando que esta o traía com o seu melhor amigo, Escobar.
Dom Casmurro é uma obra cuja leitura oferece um leque de possibilidades
interpretativas, encontrando no personagem Bento férteis elementos sobre a
problemática do ciúme, Édipo e homossexualidade[8]. Seguindo
o desejo da mãe, Bento foi criado para ser padre, ingressando no seminário. Essa
atitude materna expressava o desejo de conservar o filho preso a ela. Após
abandonar o seminário, Bento reencontra Capitu, namoradinha da infância. Sua
trajetória de vida, até então alimentada pelodesejo materno, tornou-o um sujeito tristonho, frágil e
infantilizado. Embora Capitu amasse Bentinho, percebia que para ele era difícil
aceitá-la, uma vez que ela não correspondia à imagem da mãe.
Foi ainda no seminário que Bento conheceu
Escobar, desenvolvendo por ele tanta admiração que poderia evocar uma relação
amorosa parecendo sexualizada (não sublimada pela amizade), percebida por
Capitu, que, em certo momento, indaga quem era aquela pessoa que merecia tanto
afeto na forma de se despedir.
Bento acaba se casando com Capitu, tem um
filho, mas não consegue assumir a função paterna, pois sua identificação com a
figura masculina parecia pouco consistente. A impossibilidade de ocupar essa
função o leva a uma atitude bizarra e extremada, a ponto de dizer: “Não é meu
filho.” Porque prisioneiro do desejo materno, Bento viu-se na impossibilidade
de assumir o lugar de “homem-marido e de homem-pai”, o que poderia explicar sua
escolha homossexual inconsciente, responsável pelo ciúme (Freitas, 2004).
À medida que cresce o seu impulso homossexual por Escobar, Bento projeta
cada vez mais tal impulso em Capitu, o que intensifica seu ciúme. Como bem
lembra Freud (1922, p. 273), “o ciúme delirante é o sobrante de um
homossexualismo quecumpriu seu curso e
corretamente toma sua posição entre as formas clássicas de paranoia”. Como
tentativa de defesa contra um forte impulso homossexual, ele pode, no homem,
ser descrito pela fórmula: “Eu não o amo; é ela que o ama!” (Idem, p. 273).
Seria, então, o “ciúme paranoico” de Bento a expressão também de uma
vivência invejosa? Neste caso, poderíamos pensar que tanto Shakespeare com
Otelo quanto Machado de Assis com Bento oscilam entre a inveja e o ciúme? Essa
oscilação poderia ser expressa na dúvida trazida por Bento quando indaga se foi
realmente traído ou se foi seu “ciúme doentio que
(...) o fez deturpar a realidade”. O ciúme doentio conteria a inveja?
Face ao afastamento do objeto amoroso, o ciumento vê-se perdido e sem
referência, e tenta desesperadamente recuperá-lo no espelho de sua própria
imagem que o outro representa. A expressão de um poeta sertanejo anônimo nos
canta:
Tas vendo aquela cacimba
naquela baixa acolá?/Te fica pro riba dela, espia que tu verá/A cara da tua
cara/Lá debaixo a te espiá/Mas se acaso te arretira/Gurugutu, nem sina/Aquilo
que fez contigo faz com outro que vier/Tas vendo aquela cacimba?/É o coração da
muié[9].
Resumen
En este ensayo se presenta un
diálogo entre la visión psicoanalítica de los celos y su expresión en la
cultura en diferentes momentos y lugares, con especial énfasis en la música
popular brasileña. También se ocupa de
las fronteras que separan los celos, la
envidia y la avaricia, apoyándose en los autores clásicos del psicoanálisis y del teatro, mostrando cómo
estos fenómenos son cantados y representados por el imaginario social. Los celos
son así tratados en sus diferentes tonalidades, desde el más horrendo de la
tragedia, hasta los celos como “el perfume del amor". También pone de
relieve la contribución del psicoanálisis para una meta psicología de los
celos, retomando la cuestión de la posición estructurante de los celos a partir
de su función especular, así como su oscilación simbólica. En su análisis, el
autor también muestra cómo los celos se originan en la temprana infancia de los
humanos, en el momento clave de la vida
en que dependemos del amor materno para sobrevivir. Por último, la conclusión
enfatiza que toda relación amorosa contiene, en su origen, un sentido de
propiedad, pretendiendo ser único y exclusivo. La autonomía en relación con los
celos dependerá de la elaboración o simbolización de esa vivencia infantil.
Palabras clave: Los celos; la
envidia; el psicoanálisis; la música popular.
Abstract
This paper
presents a dialogue between the psychoanalytic view of jealousy and its
expression in culture at different times and places, with special emphasis on
Brazilian popular music. It also addresses the boundary that separates
jealousy, envy and greed, relying on classics of the psychoanalysis and of the
theater, showing how the social imaginary sings and represents these phenomena.
Jealousy is therefore discussed in its various shades, from the most horrendous
extreme of the tragedy to the jealousy as “the perfume of love”. In addition,
the paper highlights the contribution of psychoanalysis to a metapsychology of
jealousy, resuming the issue of its structuring position from its mirroring
function, as well as its symbolic oscillation. In his analysis, the author also
shows how jealousy emerges in the early childhood relationships, in the
fundamental moment of life, where we depend of maternal love for survival.
Finally, the conclusion emphasizes that every love relationship contains in its
origin a feeling of ownership and aims to be unique and exclusive. The autonomy
in relation to jealousy will depend on the elaboration or symbolization of this
experience during childhood.
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[1]
Psicanalista. Membro Titular da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de
Janeiro
[2] “Video
et expertus sum zelatem parvulum; nodum loquebatur et intuebatur pallidus amare
aspectu conlacteum suum.” Saint Augustin. Confessions, livre I, section 7. Paris: Desclée de Brouwer, 1962, p.
293.
[3] A peça Gota d'água foi escrita em 1975 e publicada em livro
homônimo no mesmo ano pela editora Civilização Brasileira. A ideia foi
originalmente derivada de um trabalho de Oduvaldo Vianna Filho, que adaptara a
peça grega clássica de Eurípedes sobre o mito de Medeia para a televisão, e à
memória de quem foi dedicada. No prefácio do livro, os autores registram: “O fundamental é que a vida brasileira possa,
novamente, ser devolvida, nos palcos, ao público brasileiro. Esta é a segunda
preocupação de Gota d’água. Nossa tragédia é uma tragédia da vida
brasileira.” A montagem original contou com coreografia de Luciano
Luciani, cenografia e figurino de Walter Bacci, direção musical de Dori Caymmi
e direção geral de Gianni Ratto
[4] Velo de ouro: pele de um carneiro divino
ao qual se atribuíam poderes mágicos de cura.
[5] Todos os trechos referidos a Paul-Laurent
Assoun ecitados neste artigo são tradução
livre do autor.
[6] Contam que foi Lupicínio Rodrigues o
inventor do termo “dor-de-cotovelo”, que se refere à prática de quem crava os
cotovelos em um balcão ou mesa de bar, pede uma bebida e chora pela perda da
pessoa amada. Conta-se que, constantemente abandonado pelas mulheres, ele
buscou na própria vida a inspiração para suas canções, em que a traição, o amor
e o ciúme andavam sempre juntos.
[7] Todos os trechos referidos a Melanie
Klein e citados neste artigo são tradução livre do autor.
[8] Um interessante trabalho
sobre esta temática encontra-se em “Capitolina, a que ama no lugar do outro”,
de Luiz Alberto Pinheiro Freitas. In Letras
compartilhadas: ciúme, a leitura de um grande tema. Revista de (in) formação
para agentes de leitura. Ano 4, 2004. Publicação adotada pela Petrobras.
[9]A cacimba,
poema matuto-sertanejo, que aprendi na juventude, expressa bem a vivência do
ciúme ligada ao narcisismo. Eu imaginava que o poema fosse de autoria de Catulo
da Paixão Cearense ou de Zé da Luz, mas não consegui encontrar a referência
exata da autoria.
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