Hoje estamos
aqui para comemorar os cem anos dos Escritos Técnicos de Freud. Mas a esta
comemoração podemos agregar outra: a entrada da obra freudiana para o domínio
público. Fugindo ao restrito meio psicanalítico, a obra do mestre vienense
passa a ser objeto de inúmeras traduções. Num interessante artigo publicado no jornal
francês Le Monde, a historiadora e
estudiosa da psicanálise Elisabeth Roudinesco lembra as disputas e lutas em
torno da obra freudiana. Para ela, esta é uma oportunidade inédita para
analisar as questões históricas e doutrinais dessa “nova batalha freudiana”, e
dar voz aos tradutores.
É oportuno, na
contemporaneidade – momento em que muitos questionam o valor da psicanálise –, ressaltarmos
a importância de Freud. Importância que pode ser observada quando verificamos
que, de forma parcial, sua obra foi traduzida em 60 línguas, e que traduções
integrais, cronologicamente organizadas, foram realizadas em cinco idiomas: alemão,
inglês, italiano, espanhol e japonês. No que tange às correspondências, estas
não se encontram ainda totalmente traduzidas. A estimativa é que Freud tenha
escrito 15 mil cartas, das quais 5 mil foram perdidas e 3 mil já foram
publicadas e ou estão sendo traduzidas em várias línguas.
Roudinesco
lembra que em todo o mundo a obra freudiana se tornou um “caso de escritores,
estudiosos e historiadores”, possibilitando à psicanálise olhar para “fora do
meio psicanalítico”.
No que concerne
especificamente aos Escritos Técnicos, pode-se dizer que a evolução da técnica
freudiana encontrou uma importante modificação realizada a partir de 1892-93,
na qual Freud abandona a catarse e a
hipnose e passa a utilizar a chamada “coerção associativa”: método que
consistia em fazer pressão com a mão sobre a fronte do paciente, sugerindo-lhe que
pensasse em alguma coisa[2]. É
a partir do método da coerção associativa que nasce o conceito de resistência,
deixando como legado importantes repercussões, entre elas as associações livres
– carregadas de significação inconsciente –, a interpretação e a transferência.
No que se refere
ao descobrimento da transferência, aparece a neurose de transferência,
assinalando o reconhecimento de que o analista estará não só na base da relação
com seu paciente, mas na origem de toda a experiência.
Se é possível
falarmos de uma evolução da técnica freudiana, temos de sublinhar dois
momentos: no primeiro, a indicação técnica é tornar consciente o inconsciente,
obedecendo, assim, uma lógica tópica; o segundo ocorre a partir do
descobrimento da resistência, na qual se trata de analisar o que resiste a se
desvelar, seguindo uma trajetória dinâmica.
Freud já havia
assinalado, no Projeto para uma
Psicologia Científica (1895), que o excesso de estimulação ultrapassava a
capacidade de elaboração, exigindo que veículos de linguagem fossem criados a
fim de servirem de receptáculo para essas quantidades.
A descoberta
freudiana evoluiu da submissão da hipnose à possibilidade de transformação da
subjetividade, resgatando a perspectiva crítica contida no mecanismo da
transferência. Assim, Freud realiza uma mudança: de uma postura de submissão
para uma perspectiva libertadora.
Mas, em nossa
época, o que a psicanálise teria a dizer?
Vivemos fruto de
uma contemporaneidade marcada pela existência de dispositivos e agenciamentos
sociais que produzem e são produzidos por um narcisismo que encontra na
ausência de Lei um dos seus sustentáculos. Permissiva, a sociedade gera a
ilusão de que, num estado de gozo, o homem poderia ingressar no ilimitado.
Vivemos sob o
manto de diversos paradoxos: o crescente fluxo de informações e a impotência
para absorvê-las; o uso de novos e sofisticados equipamentos eletrônicos, que
exige muito reflexo, confrontado com a reduzida reflexão; a crescente interatividade
confrontada com o aumento da solidão.
Como escreveu
Rouanet, “o mundo contemporâneo está cheio de amnésicos assim: os
desmemoriados, que não se lembram de nada, e os memoriosos, que se lembram de
tudo, exceto do essencial”[3].
Participamos de
um mundo no qual predomina o descartável e o efêmero, no qual o homem de nosso
tempo exime-se de qualquer compromisso com o longo prazo. Intolerante à espera,
avesso a toda fixidez, o homem se move para chegar a lugar nenhum e, como
lembra Bauman[4], num
quase sem-rumo, “tropeça” acidentalmente em outros. Assim, num momento em que se tenta apagar a
figura do Outro, a não espera é louvada, a satisfação plena é cultuada,
fortalecendo-se um narcisismo que sustenta o divórcio entre a Lei e a Cultura:
a Cultura torna-se mais o locus do
gozo do que da interdição.
Assistimos,
então, ao declínio lento e gradual da imagem do pai, da Lei do pai, cuja função
é, justamente, marcar o sujeito com a inscrição de uma falta estruturante,
instituindo limites e fixando lugares. Essas transformações produzem novas
subjetividades.
Fenômenos como o
psicossomático, as patologias do ato – tais como as compulsões, a delinquência,
a toxicomania e a psicopatia –, as patologias que se expressam nos distúrbios
em relação à imagem corporal – tais como a anorexia e a bulimia –, ou ainda a melancolia, a síndrome do
pânico, as chamadas perturbações narcísicas, os casos- limite ou borderlines,
apresentam-se impondo novos desafios à Psicanálise.
Diante dessas “novas
doenças da alma”[5], o que os
Escritos Técnicos freudianos teriam para nos ensinar?
Freud não deixa
de chamar a atenção para o fato de existirem outros tipos de conflitos que,
estando fora do âmbito da simbolização, adquirem rumos diversos como
possibilidade de descarga de energia.
Diferentes das
patologias que têm como parâmetro de definição diagnóstica o complexo de Édipo,
as patologias atuais traduziriam uma problemática mais referida a questões de
ordem narcísica. Embora não se possa afirmar que algumas dessas patologias
contemporâneas estivessem ausentes em outras épocas (para alguns, a síndrome do
pânico já havia sido descrita por Freud como neurose de angústia), o fato é que
a incidência com que ocorrem é uma característica da nossa
contemporaneidade.
Essas novas
patologias alma exigem que a clínica atual repense tipos de intervenções
adequadas às situações nas quais os sistemas de simbolização, inclusive o da
expressão verbal, mostram-se fragilizados e preteridos.
Talvez o que
configure uma das singularidades do processo analítico seja a força e o poder
que a palavra possui, podendo ser verificados inclusive no silêncio, silêncio
que só faz sentido porque inserido na ordem simbólica.
No entanto, não
se pode dizer que apenas a palavra simbólica seja garantia do processo de elaboração
psíquica. Se verbalizar possibilita uma via de realização que não seja pelo
ato, não assegura uma mudança psíquica. Neste sentido, somente a experiência
analítica pode propiciar a transformação da compulsão à repetição em mudança
psíquica.
Na precariedade
simbólica apresentada pela contemporaneidade, na qual as atuais patologias se
desenvolvem, cabe mais ao analista ter uma maior participação nas construções
de sentido em que, emprestando suas fantasias numa construção compartilhada, pode
promover sentidos, já que a angústia pode ser o resultado de uma falta de
representação.
Se não cabe ao
analista ser um aconselhador, diante dos pacientes que apresentam carência na
simbolização ele é desafiado a promover possibilidades de sentido a partir das
próprias fantasias.
Podemos pensar
que a escuta pode evocar um diálogo entre duas fantasias, instaurando um
momento de criação[6]. Criação
de palavras para dizer o que jamais foi dito. Não porque estivesse sob o regime
do recalque, mas por não ter sido ainda nomeado. É o momento, portanto, de
ingressarmos numa certa ordem de imprevisibilidade, de não-saber, conscientes
de que para chegar ao saber devemos não só escutar a fantasia, mas ir além, tentando
torná-la objeto de produção de sentido. Neste caso, interpretar é ir além da
formalidade que o signo oferece, é poder buscar luz ao obscuro no paciente.
Só os analistas
preguiçosos, ou seja, aqueles que hesitam em deixar em suspensão a teoria, seguem
cartilhas teóricas na ilusão de que no setting
seja possível a previsibilidade, evitando assim ser surpreendido pelo novo,
pelo imprevisível. Já os não preguiçosos valorizam a produção de sentidos
nascidos do não-saber. Mais do que nunca, aqui parece pertinente a ideia de que
“analisar não seria um saber-fazer, mas um fazer-saber”.
Em suma, analisar
é retomar contato com a criança perdida, a ela oferecendo um instrumental simbólico
que lhe possibilitará a expressão. Assim, para os carentes de simbolização, a
psicanálise poderia colocar a criação simbólica no lugar da angústia. Esses são os objetivos da produção de sentido.
Produção que não deve conduzir a certezas, à ilusão de que há um saber fixo,
mas a produção de cadeias de sentidos, na qual a incerteza comanda as novas
buscas.
Seja no passado,
seja no presente, a noção de cura nos escritos freudianos deve ser considerada
como ressaltei na minha palestra anterior. Refiro-me à pertinente analogia
entre a cura psicanalítica e a cura do queijo, elaborada pelo saudoso colega
Fabio Herrmann (2000), na qual comenta que, “curado, um queijo torna-se
plenamente queijo daquela espécie”. Assim, enfatiza que a cura na análise é a
cura do desejo. Curado, diz Herrmann, o homem cuida do próprio desejo. Curado,
o homem habita-se, habita o desejo próprio, “não descura, não deixa de tomar
cuidado com ele”. Com isso,
aprendemos que quando a gente tenta curar algo ou
alguém, com critérios de uma outra coisa, de uma outra pessoa, de uma outra
cultura, ou simplesmente de outro grupo social, o nosso, por exemplo – gostaria
que meu paciente ficasse como eu imagino que sou –, o resultado pode ser
catastrófico: pode-se curar de menos, pode-se curar de mais, no sentido do
queijo, e pode-se curar errado, que é o pior de tudo, ou seja, dar uma direção
completamente alheia ao sentido do desejo (HERRMANN, 2000, p. 121).
Dentro dessa concepção de cura do
desejo, o CEPdePA traz uma importante contribuição. Como bem lembrou Lores
Pedro Meller, na abertura da jornada científica comemorativa dos 10 anos do
CEP, em 1994, da qual tive a honra de participar, “a psicanálise nasceu como ciência
promotora da emancipação do ser humano”.
Nos dias de hoje, comemorando os cem anos dos Escritos Técnicos de
Freud, o CEPdePA parece continuardando provas de
vitalidade e da força do desejo, quando continua a promover diálogos e reflexões
que fortalecem a perspectiva libertadora da psicanálise.
[1]
Palavras na abertura da jornada comemorativa dos cem anos dos Escritos Técnicos
de Freud, promovida pelo CEPdePA em outubro de 2012.
[2]
Conflito entre as representações traumáticas sexuais intoleráveis e a
consciência recalcadora.
[3] Sergio
Paulo Rouanet. Fim das Utopias, O Globo,
agosto, 2012.
[4] Bauman,
Z. O mal-estar na pós-modernidade.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
[5]
Titulo de livro de Julia Kristeva, no qual ela aborda de modo interessante,
entre outras coisas, a redução do espaço psíquico, provocado por condições da
vida moderna.
[6] Gerando a criação de uma possível
interpretação-construção (inter: entre as duas fantasias). Isto faz pensar no simbolon PARA PROSSEGUIR NA LEITURA DAS DEMAIS POSTAGENS DESTE BLOG, CLIQUE NO FINAL DESTA PÁGINA ONDE SE LER "POSTAGENS MAIS ANTIGAS" ( logo abaixo à direita).
SENTIMENTOS DE TRISTEZA E MEDO
DA MORTE: MEMÓRIA E MOVIMENTOS CRIATIVOS NO ENVELHECER[1]
Fernando José
Barbosa Rocha
“Suponho que já
escrevi meus melhores livros. Isso me dá uma espécie de tranquila satisfação e
serenidade. No entanto, não acho que tenha escrito tudo. De algum modo, sinto a
juventude mais próxima de mim hoje do que quando era um homem jovem. Não
considero mais a felicidade inatingível, como eu acreditava tempos atrás. Agora
sei que pode acontecer a qualquer momento, mas nunca se deve procurá-la. Quanto
ao fracasso e à fama, parecem-me totalmente irrelevantes e não me preocupam.
Agora o que procuro é a paz, o prazer do pensamento e da amizade. E, ainda que
pareça demasiado ambicioso, a sensação de amar e ser amado”. (Jorge Luis Borges-
Ensaio Autobiográfico).
INTRODUÇÃO
Há
algum tempo, participei como palestrante de um encontro com um grupo de
intelectuais e profissionais de várias áreas que se reuniram para refletir sobre
o tema “Um outro envelhecer é possível"[2].
Naquela ocasião apresentei, em uma das mesas, algumas idéias sobre sentimentos
de tristeza e saídas criativas no envelhecer, questões dotadas de uma extensa
abrangência que ultrapassa o universo psicanalítico. Esta minha reflexão
de hoje traz algumas das idéias apresentadas naquela ocasião.
Sentimentos
de tristeza, decorrentes de mutações de ciclos próprios da vida, não são
obrigatoriamente patológicos e, neste sentido, nem sempre estar triste é estar
deprimido. Se o ficar triste pode ser um sentimento tão legítimo quanto o ficar
alegre, pode ser simplesmente um registro de nossa sensibilidade que tanto pode
gargalhar, como guardar silêncio.
Porém
emnossa cultura, os esforços não se dão no
sentido de se vivenciar e buscar compreender a tristeza, mas sim no de
disfarçá-la, sufocá-la. Com freqüência, a tristeza quer simplesmente ter o
direito de existir, de assegurar o seu espaço nesta cultura que exalta a
superficialidade e desconfia de quem está mais quieto, ou silente. No entanto, na
maioria das vezes, é a própria pessoa que não se permite não aparentar estar
eufórico.
A
psicanalista e poetisa Marialzira Perestrello, que já fez 90 anos, escreveu um
poema intitulado “Luto”, que dedicou a um colega que estava triste com a perda
de sua mulher e a quem algumas pessoas, não compreendendo a legitimidade e
normalidade de seu sentimento, queriam que “reagisse”, que tivesse outras
atitudes. Eis uma passagem do poema: A
tristeza é triste mas é companheira/Sentimentos outros podem trair/Fazer mal./A
tristeza é triste/Mas é amiga fiel./Amigo, não mande a tristeza embora!
Na
atualidade, cresce a dificuldade em se compartilhar sentimentos de tristeza,
mesmo com amigos e familiares. O renomado sociólogo Zigmund Bauman (1998) tem
investigado de que forma nossas relações tornaram-se cada vez mais
frouxas, gerando níveis de insegurança cada vez maiores,
priorizando-se relacionamentos em “redes” “as quais podem ser tecidas ou desmanchadas com
igual facilidade”, não se sabendo mais manter laços a longo prazo.
Existe
também, no mundo atual, a tendência a patologizar e a psiquiatrizar os
sentimentos de tristeza, enfraquecendo qualquer positividade neles existente,
mesmo quando suas manifestações fazem parte de um pensar elaborativo,
como, por exemplo, em um processo de luto. Tal atitude fortalece, por um lado,
a tendência à medicalização, por vezes inadequada, na tentativa de eliminar
sentimentos de tristeza que deveriam ser vividos. Imprime-se assim um ponto de
vista de acordo com o qual a "alegria" deve estar presente, mesmo
quando há ausência de felicidade: portanto, uma visão de alegria e felicidade
que jamais comportaria a tristeza. No entanto, sabemos que a tristeza é um dos
elementos do existir do homem - de sua condição ontológica - portanto daquilo
que o faz existir em sua humanidade (todavia, penso ser pertinente o uso de
antidepressivos, quando administrados criteriosamente, em certas patologias
depressivas).
Associada
a essa tendência, existe outra, de o homem não aceitar o envelhecimento, já que
envelhecer evoca também a idéia de finitude, idéia que se apresenta de forma
mais acentuada no envelhecimento. No entanto, o desejo de não envelhecer, que
tem sido estudado em diferentes culturas, reflete um desejo atávico de o homem
manter-se jovem ou imortal.
O
‘ser velho’, como nos lembra Elias (2001), surge da interiorização de uma
identidade individual e coletiva, não se apresentando, pois, de uma forma
homogênea.
Roetzler
de Casella (2009, p. 8), na introdução
do seu trabalho “O Idoso diante da morte” nos fala de uma “nova velhice” no Ocidente
contemporâneo, retratada nas várias mídias. Essa autora ressalta que falar do
envelhecer é falar também da morte, e que o medo da morte se manifesta de
distintas maneiras: Para alguns, apresenta-se como inquietação, um não saber o
que fazer, por meio de sintomas físicos ou psíquicos, por vezes sob forma de depressão,
para outros, manifesta-se pela angústia paralisante da vida retirando o bem
estar do sujeito.
SOBRE O MEDO E A NEGAÇÃO DA MORTE
Na
letra de sua música “não tenho medo da morte”, Gilberto Gil, aborda
através de sua arte, a morte e o morrer nas suas diferentes temporalidades:
Freud
(1915, p. 327), quando fala da atitude que adotamos em relação à morte, quando
ele se refere à tendência inegável do homem para colocá-la de lado, para
eliminá-la da vida, escreve: "Tentamos silenciá-la na realidade e dispomos
até mesmo de um provérbio que diz 'pensar em alguma coisa como se fosse a
morte'” (em alemão, no sentido de pensar em algo improvável ou incrível).
De fato, diz Freud, “é impossível imaginar nossa própria morte e, sempre que
tentamos fazê-lo, podemos perceber que ainda estamos presentes como
espectadores. Por isso, a psicanálise pôde aventurar-se a afirmar que no fundo
ninguém crê em sua própria morte, (...) no inconsciente cada um de nós está
convencido de sua própria imortalidade”.
Em
conversa com o humorado pesquisador musical Sergio Cabral, este contou-me que o
nosso grande compositor e intérprete Nelson Cavaquinho não escondia o seu
grande medo da morte. Certa noite, Nelson havia acordado com o sonho-pesadelo de
que iria morrer às tres horas da madrugada;
e então, não hesitou em atrasar bastante o seu relógio.
Para
Zeferino Rocha (2009, p.10), poetas, filósofos e cientistas, de modos
diferentes, têm se interrogado sobre o sentido da morte, procurando desvendar o
que encobre seu enigma:
Uns enfrentam-na
com a indiferença dos epicuristas – por que nos preocuparmos com a morte?
Enquanto existimos, ela não existe e quando ela existir, nós não mais
existiremos. Outros opõem à indiferença dos epicuristas a resignação dos
estóicos. Os místicos enfrentam-na com uma aceitação silenciosa e confiante
porque nela descortinam o começo da verdadeira vida. Outros, olhando-a como uma
possibilidade que, a qualquer momento, pode se fazer sempre presente na
trajetória de nossa existência, afirmam que é na confrontação com a
possibilidade da morte que a vida adquire sua dimensão de autenticidade. E,
finalmente, não falta a atitude de revolta daqueles que vêem a morte como um
absurdo, o qual faz da vida uma ‘paixão inútil’.
Rejuvenescimento
e imortalidade: Narrativas míticas
O
desejo de rejuvenescimento, de longevidade, ou até mesmo de imortalidade, é
encontrado no homem sob as mais diversas formas. Tais sentimentos se expressam
em diversas culturas, através de narrativas míticas, cujo tema principal é a
busca de plantas dotadas de poderes que seriam capazes de suprir esse anseio
humano.
Mircea
Eliade, em trabalhos sobre história das crenças e religiões, alertou não
somente para esse fenômeno, como para o valor que cada cultura atribuía ao
poder das plantas. Comparando povos como os semitas e os indianos, Eliade,
estabelece entre eles uma interessante diferenciação: ressalta que os semitas
"tinham sede de imortalidade" enquanto os indianos eram ávidos por
soluções que os levassem à "regeneração e ao rejuvenescimento". A
busca de rejuvenescimento dos indianos, expressada nas dietas alquimistas e
médicas, e o mito de Cyavana, podem servir, segundo Eliade, como modelo
exemplar de tal ideal. Conta o mito indiano que Cyavana procura os açvins e
lhes propõe que o rejuvenesçam, em troca do soma, a ambrósia divina.
Aceita a proposta, os açvins conduzem Cyavana à "fonte de juventude"
de Sarasvatu, oferecendo-lhe juventude e esplendor, tornando-o semelhante aos
deuses (1970, p.355).
Assim, mais que a imortalidade, que se perde no tempo, o ideal
indiano era o de gozar "longa juventude" e, em algum momento, poder
se desprender do cosmos, ganhando “autonomia espiritual". Situação similar
é encontrada entre os gregos, que também não almejavam a imortalidade, mas a
juventude e a vida longa (Eliade, 1970).
Já
o mito semita de Adão revela o pleno desejo pela imortalidade. Habitante do
Paraíso, Adão convivia com a Árvore da Vida e a Árvore do Conhecimento do Bem e
do Mal. Contudo, estava proibido por Deus de provar
dos frutos dessa última. Seria por meio dela que Adão iria adquirir o
conhecimento sobre sua condição de mortal, passando a reconhecer e a
identificar a Árvore da Vida, que tinha uma localização de difícil acesso [4].
Encontrava-se "escondida", em posição e dificuldade que lembrava a
Árvore da Imortalidade procurada por Gilgamesh.
Gilgamesh,
o herói babilônico, diante do corpo morto do amigo Enkidu expressa o
quanto aspirava à imortalidade. Lamentando a perda do amigo, Gilgamesh
interroga se teria o mesmo destino: a de deitar-se para não mais levantar.
Certo de que o mesmo lhe aconteceria, recorre a Ut-Napishtim, cuja imortalidade
fora concedida pelos deuses, por ter sobrevivido a um dilúvio. O sábio, de
forma impiedosa, lhe diz: “o caminho é longo, penoso, semeado de obstáculos,
como todo caminho para o ‘Centro’, ‘Paraíso’, ou uma fonte de imortalidade”.
Sem qualquer das qualidades dos deuses para tornar-se merecedor da vida eterna,
Gilgamesh obtém de Ut-Napishtim, graças às súplicas de sua mulher, a chance de
desvendar a existência, no fundo do oceano, de uma planta “cheia de espinhos”
(ou seja, dificilmente acessível) que garantiria a juventude indefinidamente.
Assim, segue Gilgamesh sua empreitada. Amarra pedras aos pés e desce ao fundo
do mar. Lá chegando, encontra a planta e, ávido, arranca-lhe um ramo. Em
seguida, liberta os pés e volta à superfície. De volta, a caminho de Uruk, pára
junto a uma fonte para beber água. Nesse momento, atraída pelo cheiro da
planta, uma serpente aproxima-se e a devora, tornando-se, ela mesma, imortal
(Eliade, 1970).
Tal como Adão, Gilgamesh tem seus objetivos frustrados devido à
astúcia da serpente. Em ambos os casos, a serpente apresenta-se como aquela que
denuncia o anseio atávico do homem pela imortalidade. A propósito do mito de
Adão e Eva, Eliade afirma que "a serpente é o obstáculo com o qual esbarra
o homem, na sua busca da fonte da
imortalidade, da árvore da vida".
REAÇÕES AO ENVELHECIMENTO
Reagir
à condição de mortal é manter-se pleno de humanidade, posto que nenhum outro
animal possui tal consciência. A consciência da condição humana é, portanto,
também a consciência do envelhecimento e uma natural reação ao mesmo.
Perdendo
laços importantes, tais como a relação com o trabalho ao aposentar-se, a
relação com seus próximos que morrem ou se afastam, a relação com seus ideais
requer do idoso remanejamentos. Dependendo de sua estrutura psíquica singular,
aliada ao comportamento solidário ou não dos familiares e amigos, ele poderá
reagir, seja deprimindo-se - afastando-se da vida -, seja realizando elaborações
criativas. A maneira singular como ele irá reagir às ameaças em sua vivência de
permanência e continuidade, provocadas pelas modificações corporais trazidas
com a idade, vai depender de como o sujeito e sua imagem foram estruturados.
A
imagem de si, enquanto visão ou concepção que o indivíduo tem de si mesmo,
resulta de um processo que envolve as experiências, as impressões e os
sentimentos que o indivíduo vivenciou ao longo de sua existência. Esse processo
tem uma longa história. Ele tem origem na aquisição da primeira identidade do
bebê humano “onde ao contemplar o rosto materno, vê a si próprio nele
refletido”. Lins (2004), nos lembra que foi após ler o texto de Lacan sobre o
“Estágio do Espelho” que Winnicott, com toda originalidade, relacionou o espelho
com o rosto materno. Não estamos falando aqui de percepção objetiva do ponto de
vista da mãe nem tampouco do bebê. Acredita Winnicott que tudo que é percebido
é, ao mesmo tempoconcebido. Ou seja, o que
percebemos é, em certa medida, por nós criados. Assim cada bebê traz um
potencial inato singular que se atualiza nas relações com o meio ambiente (p. 2
e 3).
Assim,
a maneira como cada um irá reagir ao envelhecimento não deixa de estar
relacionada com as primeiras experiências de infância, que serviram de espelho
estruturante e com o qual foram constituídos os alicerces da subjetividade.
Alguns
idosos não aceitam o envelhecimento e, envergonhando-se de seus corpos, evitam
o espelho que o olhar do outro, imaginariamente, lhes devolve. Assim, por não
poderem elaborar as perdas com que se defrontam, correm o risco de também
evitar a vida, saindo de cena, retirando-se da vida ainda em vida (Perez,
2004).
Se
o luto é resposta a uma perda significativa, essa perda pode ser qualquer uma, mas é particular de cada
um. Perez (2004) nos lembra que as perdas, inerentes ao viver,vão se
acumulando e "fazendo consistência no percurso da vida". Perdasque acarretam estados de ânimo dolorosos,
ressentimentos, inibição de funções e a concentração do interesse na memória do
que foi perdido. Elas podem inviabilizar a eleição e o investimento em novos
objetos, em novos ideais etc., e paralisar a vida. A saída desse estado é
realizada com o processo de trabalho do luto.
Para
Freud há uma diferença significativa entre luto e melancolia. Enquanto o luto
se sustenta na “esperança”, a melancolia é vivida no “desamparo”. Zeferino
Rocha (2005, p. 19) nos lembra que para Freud, no trabalho do luto, “o mundo se
esvazia, porque quem chora a perda de alguém, concentra toda sua libido na
lembrança do que está sendo pranteado”. Segundo este autor, Freud teria
resumido o essencial do trabalho do luto em duas palavras: Lösung e Ablösung.
A palavra Lösung
significa solução, mas no contexto do luto, ela poderia ser traduzida pela
expressão “soltar laços”, “desfazer nós”. Tudo isso em vista de uma Ablösung,
ou seja, de uma “substituição”, precisamente a substituição do objeto, cuja
perda se chora no trabalho do luto. Esta (substituição) só será feita, quando
todos os laços tiverem sido soltos e os fios estiverem novamente em condição de
poderem ser usados para fazer novos laços e para dar novos nós.
Enquanto
o trabalho do luto abre a possibilidade de novos e inesperados encontros, evocando
assim a pulsão de vida, na melancolia predomina a pulsão de morte, uma vez que
há uma identificação narcísica com o objeto ausente, perdendo o amor pela vida.
Pode-se
dizer que o envelhecimento “positivo” é aquele no qual predomina um estado
permanente de luto. Ao contrário de um envelhecimento negativo em que prevalece
um estado de melancolia.
Perez (2004), põe ênfase na idéia de que a
consciência da velhice advém por intermédio do outro. Ela lembra que Simone de
Beauvoir, na obra La Vieillesse (1970, T II, p 14), entende a velhice como uma
relação entre o que se é para o outro e a conscientização do si-mesmo que advém
por intermédio do outro: "Em mim, é o outro que é idoso, quer dizer aquele
que eu sou para os outros: e esse outro sou eu".
Já o poeta Mario Quintana, no
poema "O Velho no Espelho" expressa, de maneira exemplar, a difícil
realidade a ser integrada - a permanência do si mesmo apesar da
desestabilização da imagem:
Por acaso, supreendo-me no
espelho:
quem é esse que me olha e é tão mais velho do
que eu?
Porém seu rosto... é cada vez
menos estranho..
Meu Deus, meu Deus...
Parece meu velho pai - que já
morreu!
Como pude ficarmos assim?
Nosso olhar - duro - interroga:
'O que fizeste de mim?!'
Eu, Pai?! Tu é que me
invadiste, lentamente, ruga a ruga...
Assim, a tristeza provocada pela constatação das
perdas que traz o envelhecimento pode tornar-se tantoum estado de fragilidade que demarca uma fronteira entre os que
envelhecem e os vivos,como o vislumbrar de um novo horizonte.
Quando
prevalece a noção de que o envelhecimento se opõe à vida, o homem tende a se
isolar. Como ressalta Elias, o envelhecimento pode gerar uma situação na qual o
homem se torne "menos sociável e seus sentimentos menos calorosos, sem que
se extinga sua necessidade dos outros" (2001, p. 17). A dificuldade em aceitar
que o velho continue necessitando de vínculos de sociabilidade e de manter-se
próximo a tudo aquilo que lhe dava "sentido de vida e segurança" (op.
cit., p. 8) faz do envelhecimento um estado de permanente tristeza.
Entretanto, quando o envelhecimento é visto como
um novo ciclo, ele traz a percepção do nascer de um outro horizonte. Nesse
estado, será exigido que a pessoa reconheça o que foi perdido ou transformado
em si mesma, pois só assim será possível positivar o envelhecimento e mesmo a
vivência de tonalidade depressiva que faz parte da elaboração. Portanto, a
tristeza provocada pelo envelhecimento pode ser fruto da própria consciência do
desenrolar de um processo de transformação e não um estado necessariamente
patológico.
No
entanto, a tristeza torna-se um fenômeno patológico quando a realidade do
envelhecimento é negada ou, ainda mais, quando há recusa doenvelhecimento.
Este termo – recusa - é aqui usado em analogia com o conceito freudiano
de recusa - Verleugnung - empregado por Freud no sentido
específico de modo de defesa diante da angústia de castração, que consiste numa
recusa, pelo perverso, de reconhecer a realidade de uma percepção
traumatizante, essencialmente a da ausência de pênis na mulher. Este mecanismo
é evocado por Freud em particular para explicar o fetichismo.
Como
bem nos lembra Ferraz (2005), a recusa do envelhecimento "na qualidade de
recusa do tempo encarnado no próprio sujeito", tem seu correlato na
"recusa do tempo encarnado no objeto", freqüente, sobretudo nos
homens, em uma conduta de descarte de parceiros que envelhecem. Esse
"horror ao envelhecimento" é um fenômeno mais do que arraigado na
chamada "normalidade" cultural, "somente sendo considerado
patológico quando chega a extremos, como no caso de Dorian Gray". Assim,
nos diz Ferraz, os disfarces da idade,
tão corriqueiros e normais, são parte de uma linha contínua que, ao adentrar o
terreno da perversão, pode transformar-se em outras modalidades correlatas de
substituição do autêntico pelo falso. É neste ponto que podem surgir, entre
outras formações, o "fetiche pela prótese" (idealização do falso),
como afirma Chasseguet-Smirgel, citada por Ferraz (2005, p 60).
Para Lanteri-Laura “há na perversão uma negação
do tempo e da morte, expressa em uma fixação na pré-genitalidade. Para este
autor "as perversões aproximam-se da morte, na medida em que desconhecem a
temporalidade: como denegação de um encadeamento, preferência atribuída a um
instante eternizado e recusada ao desenvolvimento no tempo, elas se situam no
extremo oposto da vida, não apenas por serem biologicamente estéreis e não
gerarem ninguém, mas principalmente por provirem da negação do tempo" (apud
Ferraz, 2005, p. 60).
No
entanto, as perdas vividas podem também conduzir o sujeito a efetivarum novo encontro consigo mesmo.É nesse reencontro que pode situar-se o trabalho
das elaborações criativas, sendo a primeira delas o diálogo que cada um pode
travar com sua própria história.
Também
se revela de fundamental importância, para que se criem alternativas, a
consciência de que as perdas trazidas pelo envelhecimento são de qualidade
diferente daquelas que ocorrem em outros ciclos vitais.
Não
se deve desconsiderar que até chegarmos à tomada de consciência provocada pelo
envelhecimento já vivemos outros lutos, decorrentes de mutações próprias da
vida. A passagem da infância para a adolescência, por exemplo, comporta perdas
e mudanças que podem provocar vivências de tonalidade depressivas, uma vez que
tal processo implica a perda, entre
outros, da dependência materna, de um corpo definido por sua infantilidade.
Essas perdas, no entanto nos lançam para um mundo novo, ainda que desconhecido.
Nele nos confrontamos com novas exigências que nos obrigam a reconhecer um
outro corpo e nos lançam para um universo de novas responsabilidades e atividades.
Iniciamos um outro ciclo da vida. A passagem da adolescência para a vida adulta
também é caracterizada por uma revolução, por transformações biopsíquicas que,
por vezes, provocam também vivências de tonalidade depressiva, já que
compreendem perdas e o confronto com o novo: um novo corpo que, deixando para
trás a indefinição, passa a ser exigido em força, vigor, destreza, habilidade e
capacidade.
Nessas
várias travessias (verdadeiros rituais de vida), encontramos, em geral, elementos de identificação que são
parâmetros a acenar para a construção de projetos que acreditamos fazer parte
do futuro.
MEMÓRIA
E VIVIFICAÇÃO DO PASSADO
Em
contrapartida, se o envelhecer for acompanhado da vivificação do passado, pode
tornar-sefonte propulsora de renovação e
redescoberta. Lembro-me de uma visita que realizei com um grupo de amigos à
casa da poetisa e doceira Cora Coralina, em Goiás Velho, no ano de 1982. Mulher
simples e carismática, tanto por sua arte de poetar, cozinhar e outras, como por sua autenticidade e
generosidade. No fim da visita, cada um de nós, ao adquirir um livro da
poetisa, desejava um autógrafo. A todos surpreendeu a maneira como ela
procedeu: antes de autografar, Cora Coralina manteve uma conversa privada com
cada um de nós. O que ela escreveu no meu livro, guardo com muito carinho, e
até hoje reverbera como uma vivificação de minha memória familiar: "(...)
Fernando Rocha – A vida é boa e nós podemos fazê-la sempre melhor. E o melhor
da vida é o trabalho. Você tem, além da força de sua mocidade, um potencial
imenso de apoio – A Rocha do seu nome. Nas aperturas da vida, lembre-se dela”.
Poetando
a vida, Cora Coralina, faz lembrar o sentimento de rejuvenescimento ou de
eternização do homem, possível, nesse caso, por meio da arte – forma de
ultrapassar o tempo – busca tão bem atestada pelos antigos mitos.
"Meu tempo passou...não! Meu tempo é esse" (Mário
Lago)[5].
Pornãovisar o futuro, no envelhecimento pode-se ter uma visão das
experiências vividas somente como um passado perdido, um passado para sempre
morto, como um velho álbum de fotos no qual, ao mirá-lo, só se reconhece a
estaticidade, a paralisia, o mofo. Mas esse passadopode ser vivenciado de outra maneira: como uma memória em movimento.
Movimento que permite uma vivificação do passado. Movimento que permite o
passeio pelo tempo. Um tempo enriquecido, em que a perda do tempo é
transformada num novo tempo. Um tempo enriquecido pela vivacidade das
experiências que há muito deixaram de ser simplesmente coisas do passado, ou
frustrantes projeções para o futuro, para manterem-se como histórias que
compõem o presente. Um presente que, abandonando a perspectiva de
projetos individuais, se agrega a projetos coletivos, capazes de provocar
experiências de re-viver sonhos do passado, estimulandoa sensação do rejuvenescer.
Uma
memória que traz o tempo passado não como nostalgia, mas como transporte que
possibilita a revivência, ou um viver de novo no tempo. Uma memória viva, que
faz, de cada um, um contador de histórias. Histórias que não são prisioneiras
do factual, mas do sentimento das vivências, portanto, fora do tempo
cronológico. São fragmentos de histórias que, se mantendo vivas, constituem
matéria-prima para a criação.
Portanto
a criação-recriação se faz com o que se é e o que se tem internamente. Como
renovação do que aparentemente estava adormecido.
Zeferino
Rocha (2005) em seu rico trabalho “Esperança não é esperar, é caminhar” nos
mostra que para Heidegger o tempo seria o
inter-relacionamento do passado e do futuro na dinâmica do presente. Neste
caso, seria abolida a noção de tempo como sucessão linear de agoras, em que o
passado é definido como um “nunca mais”. O passado se alimentaria do vigordo presente, pois“o
que fomos não deixa de estar presente naquilo que somos”. Heidegger designaria
esta apresentação do passado no presente como “o vigor de ter sido”. No
comentário de Zeferino Rocha (2005), nesse vigor reside uma força de atualização,
expressão das forças ativas do passado – que, como tal, resistiriam ao novo – e
as forças do presente, que se projetam no que está por vir. “Portanto, no instante do nosso presente, há uma luta
entre o que se impõe como novidade às forças do nosso já constituído e uma
abertura para o futuro, na qual se projeta o que se espera, o que está por-vir
(Zukunft), mas que já está presente como projeto” (p 12).
Haveria,
assim, uma “dialética da existência” na qual ao “não mais” – decorrente da
morte das possibilidades – se contrapõe o “ainda não” – como tempo da esperança: “o ‘ainda não’ da esperança volta-se para o
futuro, mas sem deixar de fincar suas raízes no presente, como solo
revigorado do ter sido, tempo de nossas decisões e escolhas. E é isto que
distingue a esperança de uma simples quimera” (Rocha, 2005, p.13).
É
nessa dinâmica temporal, marcada pela “esperança” que o envelhecer pode ser vivenciado, como
conjugação de habilidades exercidas no passado com a capacidade de manter
atuais os sentimentos/experiências de amor, amizade, solidariedade,
possibilitando o despertar e o sustentar do movimento criativo.
Como
bem escreveu Drummond: A cada dia que
vivo, mas me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas
forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca. E, esquivando-nos
do sofrimento, perdemos também a felicidade.
O
envelhecimento talvez possa ser metaforicamente comparado ao que Cartola poetou
em sua composição "O inverno do meu tempo", na qual diz que os sonhos do passado no passado estão
presentes no amor que não envelhece jamais. De outra maneira, Paulinho da
Viola, também reafirma essa noção de passado no presente, quando lembra: Não sinto saudades porque não vivo no
passado; o passado é que vive em mim [6].
Assim,
revitalizado, o passado atualiza-se no presente. Num presente que necessita
ganhar expressão em cada história de vida, em cada corpo: corpo-mão, corpo-pé,
corpo-voz, corpo-mente, corpo-olho e corpo-memória. A possibilidade de criar a
partir do que se tem confere vigor a cada vida, pois confirma o seu
encantamento, o que nela há de desconhecido e mágico. Magia que possibilita
"criar a criação".
Para
vivenciar o envelhecimento como um novo horizonte, temos antes que admitir que
nele a morte se apresente como fim, pois trazendo a morte para a vida podemos
verdadeiramente amar a vida, como aponta Freud (1915) no seu texto "Nossa
atitude para com a morte" (SE Vol. XIV).
Ou
“vivera vida pela vida”, como disse Darcy
Ribeiro numa entrevista: “Eu me exerci de várias formas. Se me exercesse só
como político ou só como educador, teria mais profundidade no que faço, mas
vivi a vida pelo gosto de viver, porque viver é gostoso. Exercer papéis
diferentes permite que você enxergue melhor" (Goldfeld, 1997).
O que torna a vida difícil não é a realidade, mas a negação desta.
Assim, a tristeza provocada pelo envelhecimento só se torna patológica quando
negamos a crueza da vida. E nada melhor para evitar essa negação do que as
experiências de criatividade. Como lembra o filósofo Heine, "Deus criou o
mundo para não adoecer".
A MÚSICA COMO ELABORAÇÃO CRIATIVA NO ENVELHECER
“É muito
simples: eles e elas estão cantando. Eu sempre pensei, escrevi e disse: aquilo
que um ser humano é capaz de fazer, todos podem fazer. Se Pelé é o maior
jogador do mundo, eu também posso chutar: tenho pés e cabeça, ora! Não farei
mil gols, como ele, mas darei meus passes, meus dribles” (Palavras de Augusto Boal no primeiro programa do espetáculo
“Chuveiro Iluminado”, Rio, 1999)
Assim, qualquer experiência de criação pode conduzir a uma
vivência de "júbilo" e reencontro com a vida. Pela especificidade da
música, esta mereceu o elogio de alguns filósofos que, como Nietzsche, a
privilegiaram. "Mas, é igualmente evidente que o sentimento jubiloso do
ser, o prazer de existir, estão presentes em muitos, independentemente de
qualquer interesse musical”, dirá
Nietzsche (citado por Rosset, 2000).
Neste sentido, a música, pelo
que possibilita como elaboração criativa, como horizonte vital, envolve e
facilita um renascer tanto para aquele que é o interprete como para aquele que
é o espectador. Para este último há o deleite propiciado pela sonoridade, pelo
ritmo, em que cada nota, som, palavra são evocadores de memórias que logo abandonam seu lugar de passado e
ingressam no presente.
Um
desses exemplos vem sendo a minha experiência no grupo “Cantores do Chuveiro”.
Tudo começou com um grupo de amigos que se reunia para cantar ‘músicas de
sempre’. Numa dessas reuniões, depois de uma cantoria que varou a madrugada,
Augusto Boal que participava naquela noite, disse: “vocês deviam fazer um show
pra valer”. As pessoas riram da “brincadeira”, mas uma delas levou à sério e
disse “nós temos que fazer esse show”. Logo se pensou em quem iria participar e
convidou-se um músico para fazer a direção musical. Boal sugeriu que o show se
chamasse “Chuveiro Iluminado” em alusão engraçada aos que cantam no chuveiro. À
medida que íamos nos encontrando, ensaiando com a ajuda do experiente diretor
do Teatro do Oprimido, o show foi tomando corpo e, com êxito, foi lançado no
porão do teatro Laura Alvin[7]. Após
o Teatro Laura Alvin fomos cantar em Paris, no Theâtre L´´Epée de Bois”, com
sucesso. A música em cada um dos componentes do grupo, cuja faixa etária
oscilava entre 50 e 75 anos, teve uma repercussão muito positiva..
O
prazer de cantar, de dividir emoções durante e depois do espetáculo denotou a
satisfação vivida por cada componente do Grupo. O que surpreende é o fato de se tratar de um
espetáculo que iniciou sem nenhuma pretensão, mas logo passou a fazer sucesso
de público. O show atraiu, inicialmente, as pessoas de “terceira idade” que,
nos saudavam e abraçavam como se fizéssemos parte também da históriadelas. Posteriormente, cativou o público em geral.
Em seguida, sob a batuta do escritor e competente pesquisador musical
Ricardo Cravo Albin, o grupo apresentou um espetáculo que teve como título
“Cantores do Chuveiro – 100 anos de MPB”. Realizamos também, sob a direção de
Eduardo Dussek outro show sobre as músicas tocadas e cantadas no cinema
nacional, que se intitulou “Luz, Chuveiro, Ação!”. Nossa última apresentação,
iniciada em outubro de 2007 e que também teve a direção de Ricardo Cravo Albin
chamou-se “Quem canta faz a hora” (com músicas de protesto)[8].
Nunca vou esquecer de um momento em que os “Cantores do Chuveiro” se
apresentaram no Sesc de São João do Meriti: No final do espetáculo as pessoas
cantavamconosco. Após os aplausos finais, uma senhora subiu ao palco e disse com humor e
emoção: "amanhã as farmácias de São João de Meriti vão ter prejuízo. Este
show é o nosso melhor remédio!”
O grupo, com algumas variações na sua composição é formado de
cantores e cantoras que não fizeram do canto uma primeira
opção profissional. No entanto, certamente, nenhum deles gostaria hoje
de se ver fora da música. É como se essa atividade sempre tivesse feito parte
da vida de cada um.
Na atualidade, o grupo movimenta-se para render homenagem a
Augusto Boal e comemorar seus dez anos de existência com a reapresentação em
inícios de 2010 do seu show inaugural “Chuveiro Iluminado”.
Também, como possibilidade de
resgate do passado, tornando-o presença-presente cito o trabalho realizado na
gravação do meu CD "Um brasileiro à Paris". Nele, cada música
interpretada é o movimento com o qual torno minha vivência de dez anos em Paris
presença, ainda presente e viva, a despeito do transcorrer do tempo cronológico
já vivido após meu retorno ao Brasil. Se neste trabalho musical tentei resgatar
memórias dos dez anos que vivi em Paris, o trabalho com o CD "Palavra
Nordestina", foi a maneira que encontrei para re-visitar a infância e
adolescência pernambucanas.
Essas várias experiências são “viagens sonoras” que revitalizam o que se poderia chamar de
"tempo perdido".
Atualmente estou em processo de
gravação de um novo CD, desta vez sobre a música de Dorival Caymmi.
Referindo-se à "essência da alegria musical", Clément
Rosset (2000) escreve:
É evidente
que em Nietzsche como em outros, a música é o momento do mais intenso júbilo
vital, gozo comparável e superior a qualquer outro gozo físico e psíquico,
notadamente sexual". "(...) A alegria de ser culmina na expressão
musical, momento em que se encontra a suprema e última realização. Para outros,
isso se passa de modo diferente, e não há, naturalmente, lugar para deduzir daíum júbilo menor.
Júbilo talvez comparável ao rejuvenescimento das águias, no antigo mito da cultura mediterrânea. Conta o mito que
de tempos em tempos, a águia, como a fênix egípcia, se renova totalmente. Por
voar cada vez mais alto, até chegar perto do sol, suas penas se incendeiam e
ela se lança qual flecha nas águas frias do lago. A experiência de fogo e de
água propicia à velha águia rejuvenescer, voltando a adquirir novas penas,
garras afiadas, olhos penetrantes e o vigor da juventude. Leonardo Boff associa esse mito aosalmo 103, que diz:
"O Senhor faz com que minha juventude se renove como uma águia".
Mas podemos também associar o rejuvenescer da águia com o ato de
entregar à morte o velho que em nós habita e que não nos engrandece: os hábitos
e as atitudes que não nos
dignificam, como a falta de solidariedade, o desinteresse pelo bem comum, a
vontade de ter razão e vantagem em tudo,
ou mesmo o desrespeito para com os seres vivos, além do homem. Somente quando
entregamos esse velho à morte é que podemos renascer e rejuvenescer tal como a
águia: recomeçar, podendo ouvir o novo, aprender com o velho e revisitar o
passado.
Assim, neste campo de luta, entre o “não mais” que será instalado
pela morte e o “ainda não” que se abre como tempo da esperança, tal como
escreveu Zeferino Rocha (2005), “o homem é um peregrino e seus pés não se cansam
de criar novos caminhos, pois seu destino é caminhar e sua alma é uma “alma
viajeira”. Por isso, o fim a que chega em cada etapa de sua grande viagem, é de
onde ele sempre está partindo para novas estradas e para novas aventuras”.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor. 1998.
BOFF, L. O
despertar da águia. 9a ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1999.
ELIADE, M. Tratado das crenças e das religiões.
Lisboa: Cosmos. 1970.
ELIAS, N. A solidão dos moribundos.
Rio de Janeiro: Zahar, 2001
FERRAZ, C. F. Tempo e Ato na Perversão. São
Paulo: Casa do Psicólogo, 2005.
FREUD, S. (1915) "Reflexões para os tempos de
guerra e morte" - II: Nossa atitude para com a morte. Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio: Imago, 1969.
GOLDFELD, Z. Encontros de vida.
Rio de Janeiro/São Paulo: Record. 1997.
LINS, M.I.A. Ver-se e ser visto na
terceira idade. In Dimensões do Envelhecer. Dulcinéa da Mata Monteiro (Org.)
Rio, Revinter, 2004.
PERES, M. R.S. "O homem e as
marcas do tempo" (Tese de Mestrado "Viver e conviver com a
idade", Universidade de la Habana, Cuba, agosto de 1999). In: Dimensões do
envelhecer. Dulcinéa da Mata Ribeiro Monteiro (Org). Rio: Revinter, 2004.
QUINTANA, M. Antologia poética. Porto Alegre: L &
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ROETZLER DE CASELLA,
A.S. O Idoso diante da Morte.
Trabalho de conclusão de Curso de Pos-graduação em geriatria clínica. Hospital
Pró-cardíaco. Rio de Janeiro, 2009.
ROCHA, Z. Freud:
Aproximações. Série Estudos Universitários. Editora Universitária –UFPE.
Recife: 1993.
__ ROCHA, Z. “Esperança não é esperar, é
caminhar”. Reflexões sobre a esperança e suas ressonâncias na teoria e clínica
psicanalíticas. Conferência na Abertura do X Encontro Psicanalítico do Centro
de Pesquisa em Psicanálise da Cidade do Recife, maio de 2005.. ROSSET, C. Alegria
– A Força Maior. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.
Endereço do
Autor:
Av. Rui
Barbosa, 624 /201
22250-020 –
Flamengo
Rio de
Janeiro, RJ
Tel. (21) 25537481
Email: fernando1rocha@uol.com.br
[1]
Publicado no livro “Um outro envelhecer é possível”. Lucia Ribeiro
(Organizadora). Editora Idéias & Letras. São Paulo: 2012
[2]
Guapemirim – Nova Friburgo, RJ, Outubro, 2007.
[3] Gege
Edições Musicais Ltda (Brasil e América do Sul).
[4]
Lemos no Gênesis 2-3: “O Senhor Deus tomou o homem e o colocou lá no jardim de
Éden para o cultivar e guardar. O Senhor Deus deu ao homem uma ordem, dizendo:
“Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas da arvore do conhecimento do
bem e do mal não deves comer, porque no dia em que o fizeres serás condenado a
morrer”. Mais adiante vemos algo sobre o
pecado: “A serpente era o mais astuto de todos os animais selvagens que o
Senhor Deus tinha feito. Ela disse à mulher: “É verdade que Deus vos disse ‘não
comais de nenhuma das árvores do jardim?’ E a mulher respondeu à serpente: “Do
fruto das árvores do jardim, podemos comer. Mas do fruto da árvore que está no
meio do jardim, Deus nos disse ‘não comais dele nem sequer o toqueis, do
contrário morrereis’”. A serpente replicou à mulher: “De modo algum morrereis.”
É que Deus sabe: no dia em que dele comerdes vossos olhos se abrirão e sereis
como deuses, conhecedores do bem e do mal”. (...) Mais adiante está escrito no
Gênesis: “E o Senhor Deus disse: “Eis que o homem se tornou como um de nós,
capaz de conhecer o bem e o mal. Não vá agora estender a mão também à àrvore da
vida para comer dela e viver para sempre”. E o Senhor Deus o expulsou do jardim
de Éden, para cultivar o solo donde fora tirado. Sendo expulso o homem, colocou
diante do jardim de Éden os querubins
com o cintilar da espada fulgurante,
para guardar o caminho da árvore da vida”.
[5] Mario
Lago, citado por João Máximo em artigo do Jornal “O Globo” – Segundo Caderno,
Rio, 23 de março de 2006.
[6] Citação de Zuenir Ventura no Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 19.08, 2000.
[7]
Assim foi apresentado este show numa reportagem de capa do segundo cardeno d´O
Globo de 08 de março de 1999: “Eles não
podem ser considerados exatamente oprimidos. Mas são as novas apostas de
Augusto Boal. Em um primeiro momento, é verdade, a cena beira o sureal. Pois o
diretor – criador do Teatro do Oprimido, responsável por espetáculos como o mitológico Arena conta Zumbi - comanda
há dois meses um elenco sui-generis
em que pontificam as vozes poderosas dos psicanalistas Fernando Rocha, Suzana
Tonin e Cecília Boal, dos diplomatas Afonso Arinos de Mello Franco e Sylvia
Waschner, da crítica Laura Sandroni e do jurista Octavio Mello Alvarenga. Pois esses gogós
nobilíssimos estarão se apresentando ao público, a partir do dia 12, no porão
da Casa de Cultura Laura Alvin, em Ipanema, em um espetáculo musical que não
poderia ser melhor batizado: Chuveiro
Iluminado. Os ensaios abertos a preços populares (R$5,00) acontecem hoje,
às 21h30 e amanhã às 20h30.”. (Eduardo Graça).
[8] Deste
espetáculo fizeram parte como cantores: Clara Redig, Fernando Rocha, Laura
Sandroni, Octávio Brandão, Maria Helena Alvarenga e Paulo César Correa
Lopes.
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Blog do Fernando
Rocha
Notas de Jorge de
Campos Valadares
O livro do Fernando
Rocha.
No conto “A terceira margem do rio”,
Guimarães Rosa fala da transmissão: um pai decide e ir-se numa canoa para o
meio do rio, sem nunca voltar a uma das duas margens possíveis. Os filhos
assistem à partida do pai que abençoa apenas um deles, aquele que pede para ir
junto com ele. Um dia acena a este filho para que o substitua na tarefa
de manter-se no fluxo contínuo do rio. Mas tomado pelo pânico que o apelo
lhe causara, o filho não atende o pedido e o conto, daí em diante, é o relato
de sua culpa. A crítica literária, em geral, traduz o impasse
entre o pai e o filho como o impasse de todo escritor diante do rio da
tradição. Para criar sua obra o escritor deve ocupar o lugar da terceira
margem, lugar simbólico que permite a transmissão de uma herança
cultural. Resenha da Betty B Fuks, para o
livro de Fernando Rocha.
Pontalis,
1 J’aimerais jamais n’avoir rien écrit une
ligne qui ne soit venue de ce que me
patients m’ont permis de deviner.
( Noticia da morte de Pontalis,
por Robert Maggiore / Libération
19/13/2013)
2 La parole qui inlassablement, elle se donne
et s’accueille …
3
A criança deseja apropriar-se das qualidades do
objeto para suportar a sua ausência.Diatkine.