sábado, 23 de fevereiro de 2013


Psicanálise: práxis libertadora[1]
Fernando Rocha

Hoje estamos aqui para comemorar os cem anos dos Escritos Técnicos de Freud. Mas a esta comemoração podemos agregar outra: a entrada da obra freudiana para o domínio público. Fugindo ao restrito meio psicanalítico, a obra do mestre vienense passa a ser objeto de inúmeras traduções. Num interessante artigo publicado no jornal francês Le Monde, a historiadora e estudiosa da psicanálise Elisabeth Roudinesco lembra as disputas e lutas em torno da obra freudiana. Para ela, esta é uma oportunidade inédita para analisar as questões históricas e doutrinais dessa “nova batalha freudiana”, e dar voz aos tradutores.
É oportuno, na contemporaneidade – momento em que muitos questionam o valor da psicanálise –, ressaltarmos a importância de Freud. Importância que pode ser observada quando verificamos que, de forma parcial, sua obra foi traduzida em 60 línguas, e que traduções integrais, cronologicamente organizadas, foram realizadas em cinco idiomas: alemão, inglês, italiano, espanhol e japonês. No que tange às correspondências, estas não se encontram ainda totalmente traduzidas. A estimativa é que Freud tenha escrito 15 mil cartas, das quais 5 mil foram perdidas e 3 mil já foram publicadas e ou estão sendo traduzidas em várias línguas.
Roudinesco lembra que em todo o mundo a obra freudiana se tornou um “caso de escritores, estudiosos e historiadores”, possibilitando à psicanálise olhar para “fora do meio psicanalítico”.
No que concerne especificamente aos Escritos Técnicos, pode-se dizer que a evolução da técnica freudiana encontrou uma importante modificação realizada a partir de 1892-93, na qual  Freud abandona a catarse e a hipnose e passa a utilizar a chamada “coerção associativa”: método que consistia em fazer pressão com a mão sobre a fronte do paciente, sugerindo-lhe que pensasse em alguma coisa[2]. É a partir do método da coerção associativa que nasce o conceito de resistência, deixando como legado importantes repercussões, entre elas as associações livres – carregadas de significação inconsciente –, a interpretação e a transferência.
No que se refere ao descobrimento da transferência, aparece a neurose de transferência, assinalando o reconhecimento de que o analista estará não só na base da relação com seu paciente, mas na origem de toda a experiência.
Se é possível falarmos de uma evolução da técnica freudiana, temos de sublinhar dois momentos: no primeiro, a indicação técnica é tornar consciente o inconsciente, obedecendo, assim, uma lógica tópica; o segundo ocorre a partir do descobrimento da resistência, na qual se trata de analisar o que resiste a se desvelar, seguindo uma trajetória dinâmica.
Freud já havia assinalado, no Projeto para uma Psicologia Científica (1895), que o excesso de estimulação ultrapassava a capacidade de elaboração, exigindo que veículos de linguagem fossem criados a fim de servirem de receptáculo para essas quantidades.
A descoberta freudiana evoluiu da submissão da hipnose à possibilidade de transformação da subjetividade, resgatando a perspectiva crítica contida no mecanismo da transferência. Assim, Freud realiza uma mudança: de uma postura de submissão para uma perspectiva libertadora.
Mas, em nossa época, o que a psicanálise teria a dizer?
Vivemos fruto de uma contemporaneidade marcada pela existência de dispositivos e agenciamentos sociais que produzem e são produzidos por um narcisismo que encontra na ausência de Lei um dos seus sustentáculos. Permissiva, a sociedade gera a ilusão de que, num estado de gozo, o homem poderia ingressar no ilimitado.
Vivemos sob o manto de diversos paradoxos: o crescente fluxo de informações e a impotência para absorvê-las; o uso de novos e sofisticados equipamentos eletrônicos, que exige muito reflexo, confrontado com a reduzida reflexão; a crescente interatividade confrontada com o aumento da solidão.
Como escreveu Rouanet, “o mundo contemporâneo está cheio de amnésicos assim: os desmemoriados, que não se lembram de nada, e os memoriosos, que se lembram de tudo, exceto do essencial”[3].
Participamos de um mundo no qual predomina o descartável e o efêmero, no qual o homem de nosso tempo exime-se de qualquer compromisso com o longo prazo. Intolerante à espera, avesso a toda fixidez, o homem se move para chegar a lugar nenhum e, como lembra Bauman[4], num quase sem-rumo, “tropeça” acidentalmente em outros.  Assim, num momento em que se tenta apagar a figura do Outro, a não espera é louvada, a satisfação plena é cultuada, fortalecendo-se um narcisismo que sustenta o divórcio entre a Lei e a Cultura: a Cultura torna-se mais o locus do gozo do que da interdição.   
Assistimos, então, ao declínio lento e gradual da imagem do pai, da Lei do pai, cuja função é, justamente, marcar o sujeito com a inscrição de uma falta estruturante, instituindo limites e fixando lugares. Essas transformações produzem novas subjetividades.
Fenômenos como o psicossomático, as patologias do ato – tais como as compulsões, a delinquência, a toxicomania e a psicopatia –, as patologias que se expressam nos distúrbios em relação à imagem corporal – tais como a anorexia e a bulimia  –, ou ainda a melancolia, a síndrome do pânico, as chamadas perturbações narcísicas, os casos- limite ou borderlines, apresentam-se impondo novos desafios à Psicanálise.
Diante dessas “novas doenças da alma”[5], o que os Escritos Técnicos freudianos teriam para nos ensinar?
Freud não deixa de chamar a atenção para o fato de existirem outros tipos de conflitos que, estando fora do âmbito da simbolização, adquirem rumos diversos como possibilidade de descarga de energia. 
Diferentes das patologias que têm como parâmetro de definição diagnóstica o complexo de Édipo, as patologias atuais traduziriam uma problemática mais referida a questões de ordem narcísica. Embora não se possa afirmar que algumas dessas patologias contemporâneas estivessem ausentes em outras épocas (para alguns, a síndrome do pânico já havia sido descrita por Freud como neurose de angústia), o fato é que a incidência com que ocorrem é uma característica da nossa contemporaneidade. 
Essas novas patologias alma exigem que a clínica atual repense tipos de intervenções adequadas às situações nas quais os sistemas de simbolização, inclusive o da expressão verbal, mostram-se fragilizados e preteridos.
Talvez o que configure uma das singularidades do processo analítico seja a força e o poder que a palavra possui, podendo ser verificados inclusive no silêncio, silêncio que só faz sentido porque inserido na ordem simbólica.
No entanto, não se pode dizer que apenas a palavra simbólica seja garantia do processo de elaboração psíquica. Se verbalizar possibilita uma via de realização que não seja pelo ato, não assegura uma mudança psíquica. Neste sentido, somente a experiência analítica pode propiciar a transformação da compulsão à repetição em mudança psíquica.  
Na precariedade simbólica apresentada pela contemporaneidade, na qual as atuais patologias se desenvolvem, cabe mais ao analista ter uma maior participação nas construções de sentido em que, emprestando suas fantasias numa construção compartilhada, pode promover sentidos, já que a angústia pode ser o resultado de uma falta de representação.
Se não cabe ao analista ser um aconselhador, diante dos pacientes que apresentam carência na simbolização ele é desafiado a promover possibilidades de sentido a partir das próprias fantasias.
Podemos pensar que a escuta pode evocar um diálogo entre duas fantasias, instaurando um momento de criação[6]. Criação de palavras para dizer o que jamais foi dito. Não porque estivesse sob o regime do recalque, mas por não ter sido ainda nomeado. É o momento, portanto, de ingressarmos numa certa ordem de imprevisibilidade, de não-saber, conscientes de que para chegar ao saber devemos não só escutar a fantasia, mas ir além, tentando torná-la objeto de produção de sentido. Neste caso, interpretar é ir além da formalidade que o signo oferece, é poder buscar luz ao obscuro no paciente.
Só os analistas preguiçosos, ou seja, aqueles que hesitam em deixar em suspensão a teoria, seguem cartilhas teóricas na ilusão de que no setting seja possível a previsibilidade, evitando assim ser surpreendido pelo novo, pelo imprevisível. Já os não preguiçosos valorizam a produção de sentidos nascidos do não-saber. Mais do que nunca, aqui parece pertinente a ideia de que “analisar não seria um saber-fazer, mas um fazer-saber”.
Em suma, analisar é retomar contato com a criança perdida, a ela oferecendo um instrumental simbólico que lhe possibilitará a expressão. Assim, para os carentes de simbolização, a psicanálise poderia colocar a criação simbólica no lugar da angústia.  Esses são os objetivos da produção de sentido. Produção que não deve conduzir a certezas, à ilusão de que há um saber fixo, mas a produção de cadeias de sentidos, na qual a incerteza comanda as novas buscas.
Seja no passado, seja no presente, a noção de cura nos escritos freudianos deve ser considerada como ressaltei na minha palestra anterior. Refiro-me à pertinente analogia entre a cura psicanalítica e a cura do queijo, elaborada pelo saudoso colega Fabio Herrmann (2000), na qual comenta que, “curado, um queijo torna-se plenamente queijo daquela espécie”. Assim, enfatiza que a cura na análise é a cura do desejo. Curado, diz Herrmann, o homem cuida do próprio desejo. Curado, o homem habita-se, habita o desejo próprio, “não descura, não deixa de tomar cuidado com ele”. Com isso,
aprendemos que quando a gente tenta curar algo ou alguém, com critérios de uma outra coisa, de uma outra pessoa, de uma outra cultura, ou simplesmente de outro grupo social, o nosso, por exemplo – gostaria que meu paciente ficasse como eu imagino que sou –, o resultado pode ser catastrófico: pode-se curar de menos, pode-se curar de mais, no sentido do queijo, e pode-se curar errado, que é o pior de tudo, ou seja, dar uma direção completamente alheia ao sentido do desejo (HERRMANN, 2000, p. 121).

Dentro dessa concepção de cura do desejo, o CEPdePA traz uma importante contribuição. Como bem lembrou Lores Pedro Meller, na abertura da jornada científica comemorativa dos 10 anos do CEP, em 1994, da qual tive a honra de participar, “a psicanálise nasceu como ciência promotora da emancipação do ser humano”.  Nos dias de hoje, comemorando os cem anos dos Escritos Técnicos de Freud, o CEPdePA parece continuar dando provas de vitalidade e da força do desejo, quando continua a promover diálogos e reflexões que fortalecem a perspectiva libertadora da psicanálise.












[1] Palavras na abertura da jornada comemorativa dos cem anos dos Escritos Técnicos de Freud, promovida pelo CEPdePA em outubro de 2012.
[2] Conflito entre as representações traumáticas sexuais intoleráveis e a consciência recalcadora.
[3] Sergio Paulo Rouanet. Fim das Utopias, O Globo, agosto, 2012.
[4] Bauman, Z. O mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
[5] Titulo de livro de Julia Kristeva, no qual ela aborda de modo interessante, entre outras coisas, a redução do espaço psíquico, provocado por condições da vida moderna.
[6]  Gerando a criação de uma possível interpretação-construção (inter: entre as duas fantasias). Isto faz pensar no simbolon



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sábado, 16 de fevereiro de 2013

NÃO TENHO MEDO DA MORTE (Musica com Gilberto Gil) - SENTIMENTOS DE TRISTEZA E MEDO DA MORTE (Fernando Rocha)


Ouça Gilberto Gil





SENTIMENTOS DE TRISTEZA E MEDO DA MORTE: MEMÓRIA E MOVIMENTOS CRIATIVOS NO ENVELHECER[1]

Fernando José Barbosa Rocha


                                              “Suponho que já escrevi meus melhores livros. Isso me dá uma espécie de tranquila satisfação e serenidade. No entanto, não acho que tenha escrito tudo. De algum modo, sinto a juventude mais próxima de mim hoje do que quando era um homem jovem. Não considero mais a felicidade inatingível, como eu acreditava tempos atrás. Agora sei que pode acontecer a qualquer momento, mas nunca se deve procurá-la. Quanto ao fracasso e à fama, parecem-me totalmente irrelevantes e não me preocupam. Agora o que procuro é a paz, o prazer do pensamento e da amizade. E, ainda que pareça demasiado ambicioso, a sensação de amar e ser amado”. (Jorge Luis Borges- Ensaio Autobiográfico).


INTRODUÇÃO
                   Há algum tempo, participei como palestrante de um encontro com um grupo de intelectuais e profissionais de várias áreas que se reuniram para refletir sobre o tema “Um outro envelhecer é possível"[2]. Naquela ocasião apresentei, em uma das mesas, algumas idéias sobre sentimentos de tristeza e saídas criativas no envelhecer, questões dotadas de uma extensa abrangência que ultrapassa o universo psicanalítico. Esta minha reflexão de hoje traz algumas das idéias apresentadas naquela ocasião.
                   Sentimentos de tristeza, decorrentes de mutações de ciclos próprios da vida, não são obrigatoriamente patológicos e, neste sentido, nem sempre estar triste é estar deprimido. Se o ficar triste pode ser um sentimento tão legítimo quanto o ficar alegre, pode ser simplesmente um registro de nossa sensibilidade que tanto pode gargalhar, como guardar silêncio.
Porém em nossa cultura, os esforços não se dão no sentido de se vivenciar e buscar compreender a tristeza, mas sim no de disfarçá-la, sufocá-la. Com freqüência, a tristeza quer simplesmente ter o direito de existir, de assegurar o seu espaço nesta cultura que exalta a superficialidade e desconfia de quem está mais quieto, ou silente. No entanto, na maioria das vezes, é a própria pessoa que não se permite não aparentar estar eufórico.
A psicanalista e poetisa Marialzira Perestrello, que já fez 90 anos, escreveu um poema intitulado “Luto”, que dedicou a um colega que estava triste com a perda de sua mulher e a quem algumas pessoas, não compreendendo a legitimidade e normalidade de seu sentimento, queriam que “reagisse”, que tivesse outras atitudes. Eis uma passagem do poema: A tristeza é triste mas é companheira/Sentimentos outros podem trair/Fazer mal./A tristeza é triste/Mas é amiga fiel./Amigo, não mande a tristeza embora!
Na atualidade, cresce a dificuldade em se compartilhar sentimentos de tristeza, mesmo com amigos e familiares. O renomado sociólogo Zigmund Bauman (1998) tem investigado de que forma nossas relações tornaram-se cada vez mais frouxas, gerando níveis de insegurança cada vez  maiores, priorizando-se relacionamentos em “redes” “as  quais podem ser tecidas ou desmanchadas com igual facilidade”, não se sabendo mais manter laços a longo prazo.
Existe também, no mundo atual, a tendência a patologizar e a psiquiatrizar os sentimentos de tristeza, enfraquecendo qualquer positividade neles existente, mesmo quando suas manifestações fazem parte de um pensar elaborativo, como, por exemplo, em um processo de luto. Tal atitude fortalece, por um lado, a tendência à medicalização, por vezes inadequada, na tentativa de eliminar sentimentos de tristeza que deveriam ser vividos. Imprime-se assim um ponto de vista de acordo com o qual a "alegria" deve estar presente, mesmo quando há ausência de felicidade: portanto, uma visão de alegria e felicidade que jamais comportaria a tristeza. No entanto, sabemos que a tristeza é um dos elementos do existir do homem - de sua condição ontológica - portanto daquilo que o faz existir em sua humanidade (todavia, penso ser pertinente o uso de antidepressivos, quando administrados criteriosamente, em certas patologias depressivas).
Associada a essa tendência, existe outra, de o homem não aceitar o envelhecimento, já que envelhecer evoca também a idéia de finitude, idéia que se apresenta de forma mais acentuada no envelhecimento. No entanto, o desejo de não envelhecer, que tem sido estudado em diferentes culturas, reflete um desejo atávico de o homem manter-se jovem ou imortal.
O ‘ser velho’, como nos lembra Elias (2001), surge da interiorização de uma identidade individual e coletiva, não se apresentando, pois, de uma forma homogênea.
Roetzler de Casella (2009, p. 8), na  introdução do seu trabalho “O Idoso diante da morte” nos fala de uma “nova velhice” no Ocidente contemporâneo, retratada nas várias mídias. Essa autora ressalta que falar do envelhecer é falar também da morte, e que o medo da morte se manifesta de distintas maneiras: Para alguns, apresenta-se como inquietação, um não saber o que fazer, por meio de sintomas físicos ou psíquicos, por vezes sob forma de depressão, para outros, manifesta-se pela angústia paralisante da vida retirando o bem estar do sujeito.
            SOBRE O MEDO E A NEGAÇÃO DA MORTE
Na  letra de sua música “não tenho medo da morte”, Gilberto Gil, aborda através de sua arte, a morte e o morrer nas suas diferentes temporalidades:
Não tenho medo da morte
Mas sim medo de morrer
 Qual seria a diferença
Você há de perguntar
É que a morte já é depois
Que eu deixar de respirar
Morrer ainda é aqui
Na vida, no sol, no ar
Ainda pode haver dor
Ou vontade de mijar
A morte já é depois
Já não haverá ninguém
Como eu aqui agora
Pensando sobre o além
Já não haverá o além
A morte já é depois
Além já será então
Não terei pé nem cabeça
Nem fígado, nem pulmão
Como poderei ter medo
Se não terei coração?
Não tenho medo da morte
Mas medo de morrer, sim
A morte e depois de mim
Mas quem vai morrer sou eu
O derradeiro ato meu
E eu terei de estar presente
Assim como um presidente
Dando posse ao sucessor
Terei que morrer vivendo
Sabendo que já me vou
Então nesse instante sim
Sofrerei quem sabe um choque
Um piripaque, ou um baque
Um calafrio ou um toque
Coisas naturais da vida
Como comer, caminhar
Morrer de morte matada
Morrer de morte morrida
Quem sabe eu sinta saudade
Como em qualquer despedida [3].
Freud (1915, p. 327), quando fala da atitude que adotamos em relação à morte, quando ele se refere à tendência inegável do homem para colocá-la de lado, para eliminá-la da vida, escreve: "Tentamos silenciá-la na realidade e dispomos até mesmo de um provérbio que diz 'pensar em alguma coisa como se fosse a morte'” (em alemão, no sentido de pensar em algo improvável ou incrível). De fato, diz Freud, “é impossível imaginar nossa própria morte e, sempre que tentamos fazê-lo, podemos perceber que ainda estamos presentes como espectadores. Por isso, a psicanálise pôde aventurar-se a afirmar que no fundo ninguém crê em sua própria morte, (...) no inconsciente cada um de nós está convencido de sua própria imortalidade”.
Em conversa com o humorado pesquisador musical Sergio Cabral, este contou-me que o nosso grande compositor e intérprete Nelson Cavaquinho não escondia o seu grande medo da morte. Certa noite, Nelson havia acordado com o sonho-pesadelo de que iria morrer às  tres horas da madrugada; e então, não hesitou em atrasar bastante o seu relógio.
Para Zeferino Rocha (2009, p.10), poetas, filósofos e cientistas, de modos diferentes, têm se interrogado sobre o sentido da morte, procurando desvendar o que encobre seu enigma:
Uns enfrentam-na com a indiferença dos epicuristas – por que nos preocuparmos com a morte? Enquanto existimos, ela não existe e quando ela existir, nós não mais existiremos. Outros opõem à indiferença dos epicuristas a resignação dos estóicos. Os místicos enfrentam-na com uma aceitação silenciosa e confiante porque nela descortinam o começo da verdadeira vida. Outros, olhando-a como uma possibilidade que, a qualquer momento, pode se fazer sempre presente na trajetória de nossa existência, afirmam que é na confrontação com a possibilidade da morte que a vida adquire sua dimensão de autenticidade. E, finalmente, não falta a atitude de revolta daqueles que vêem a morte como um absurdo, o qual faz da vida uma ‘paixão inútil’.

Rejuvenescimento e imortalidade: Narrativas míticas
O desejo de rejuvenescimento, de longevidade, ou até mesmo de imortalidade, é encontrado no homem sob as mais diversas formas. Tais sentimentos se expressam em diversas culturas, através de narrativas míticas, cujo tema principal é a busca de plantas dotadas de poderes que seriam capazes de suprir esse anseio humano.
Mircea Eliade, em trabalhos sobre história das crenças e religiões, alertou não somente para esse fenômeno, como para o valor que cada cultura atribuía ao poder das plantas. Comparando povos como os semitas e os indianos, Eliade, estabelece entre eles uma interessante diferenciação: ressalta que os semitas "tinham sede de imortalidade" enquanto os indianos eram ávidos por soluções que os levassem à "regeneração e ao rejuvenescimento". A busca de rejuvenescimento dos indianos, expressada nas dietas alquimistas e médicas, e o mito de Cyavana, podem servir, segundo Eliade, como modelo exemplar de tal ideal. Conta o mito indiano que Cyavana procura os açvins e lhes propõe que o rejuvenesçam, em troca do soma, a ambrósia divina. Aceita a proposta, os açvins conduzem Cyavana à "fonte de juventude" de Sarasvatu, oferecendo-lhe juventude e esplendor, tornando-o semelhante aos deuses (1970, p.355).
Assim, mais que a imortalidade, que se perde no tempo, o ideal indiano era o de gozar "longa juventude" e, em algum momento, poder se desprender do cosmos, ganhando “autonomia espiritual". Situação similar é encontrada entre os gregos, que também não almejavam a imortalidade, mas a juventude e a vida longa (Eliade, 1970).
Já o mito semita de Adão revela o pleno desejo pela imortalidade. Habitante do Paraíso, Adão convivia com a Árvore da Vida e a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. Contudo, estava proibido por Deus de provar dos frutos dessa última. Seria por meio dela que Adão iria adquirir o conhecimento sobre sua condição de mortal, passando a reconhecer e a identificar a Árvore da Vida, que tinha uma localização de difícil acesso [4]. Encontrava-se "escondida", em posição e dificuldade que lembrava a Árvore da Imortalidade procurada por Gilgamesh.
Gilgamesh, o herói babilônico, diante do corpo morto do amigo Enkidu expressa o quanto aspirava à imortalidade. Lamentando a perda do amigo, Gilgamesh interroga se teria o mesmo destino: a de deitar-se para não mais levantar. Certo de que o mesmo lhe aconteceria, recorre a Ut-Napishtim, cuja imortalidade fora concedida pelos deuses, por ter sobrevivido a um dilúvio. O sábio, de forma impiedosa, lhe diz: “o caminho é longo, penoso, semeado de obstáculos, como todo caminho para o ‘Centro’, ‘Paraíso’, ou uma fonte de imortalidade”. Sem qualquer das qualidades dos deuses para tornar-se merecedor da vida eterna, Gilgamesh obtém de Ut-Napishtim, graças às súplicas de sua mulher, a chance de desvendar a existência, no fundo do oceano, de uma planta “cheia de espinhos” (ou seja, dificilmente acessível) que garantiria a juventude indefinidamente. Assim, segue Gilgamesh sua empreitada. Amarra pedras aos pés e desce ao fundo do mar. Lá chegando, encontra a planta e, ávido, arranca-lhe um ramo. Em seguida, liberta os pés e volta à superfície. De volta, a caminho de Uruk, pára junto a uma fonte para beber água. Nesse momento, atraída pelo cheiro da planta, uma serpente aproxima-se e a devora, tornando-se, ela mesma, imortal (Eliade, 1970).
Tal como Adão, Gilgamesh tem seus objetivos frustrados devido à astúcia da serpente. Em ambos os casos, a serpente apresenta-se como aquela que denuncia o anseio atávico do homem pela imortalidade. A propósito do mito de Adão e Eva, Eliade afirma que "a serpente é o obstáculo com o qual esbarra o homem, na sua busca da fonte  da imortalidade, da árvore da vida".

 REAÇÕES AO ENVELHECIMENTO
Reagir à condição de mortal é manter-se pleno de humanidade, posto que nenhum outro animal possui tal consciência. A consciência da condição humana é, portanto, também a consciência do envelhecimento e uma natural reação ao mesmo.
Perdendo laços importantes, tais como a relação com o trabalho ao aposentar-se, a relação com seus próximos que morrem ou se afastam, a relação com seus ideais requer do idoso remanejamentos. Dependendo de sua estrutura psíquica singular, aliada ao comportamento solidário ou não dos familiares e amigos, ele poderá reagir, seja deprimindo-se - afastando-se da vida -, seja realizando elaborações criativas. A maneira singular como ele irá reagir às ameaças em sua vivência de permanência e continuidade, provocadas pelas modificações corporais trazidas com a idade, vai depender de como o sujeito e sua imagem foram estruturados.
A imagem de si, enquanto visão ou concepção que o indivíduo tem de si mesmo, resulta de um processo que envolve as experiências, as impressões e os sentimentos que o indivíduo vivenciou ao longo de sua existência. Esse processo tem uma longa história. Ele tem origem na aquisição da primeira identidade do bebê humano “onde ao contemplar o rosto materno, vê a si próprio nele refletido”. Lins (2004), nos lembra que foi após ler o texto de Lacan sobre o “Estágio do Espelho” que Winnicott, com toda originalidade, relacionou o espelho com o rosto materno. Não estamos falando aqui de percepção objetiva do ponto de vista da mãe nem tampouco do bebê. Acredita Winnicott que tudo que é percebido é, ao mesmo tempo concebido. Ou seja, o que percebemos é, em certa medida, por nós criados. Assim cada bebê traz um potencial inato singular que se atualiza nas relações com o meio ambiente (p. 2 e 3).
Assim, a maneira como cada um irá reagir ao envelhecimento não deixa de estar relacionada com as primeiras experiências de infância, que serviram de espelho estruturante e com o qual foram constituídos os alicerces da subjetividade.
Alguns idosos não aceitam o envelhecimento e, envergonhando-se de seus corpos, evitam o espelho que o olhar do outro, imaginariamente, lhes devolve. Assim, por não poderem elaborar as perdas com que se defrontam, correm o risco de também evitar a vida, saindo de cena, retirando-se da vida ainda em vida (Perez, 2004).
Se o luto é resposta a uma perda significativa, essa perda pode  ser qualquer uma, mas é particular de cada um. Perez (2004) nos lembra que as perdas, inerentes ao viver, vão se acumulando e "fazendo consistência no percurso da vida". Perdas que acarretam estados de ânimo dolorosos, ressentimentos, inibição de funções e a concentração do interesse na memória do que foi perdido. Elas podem inviabilizar a eleição e o investimento em novos objetos, em novos ideais etc., e paralisar a vida. A saída desse estado é realizada com o processo de trabalho do luto.
Para Freud há uma diferença significativa entre luto e melancolia. Enquanto o luto se sustenta na “esperança”, a melancolia é vivida no “desamparo”. Zeferino Rocha (2005, p. 19) nos lembra que para Freud, no trabalho do luto, “o mundo se esvazia, porque quem chora a perda de alguém, concentra toda sua libido na lembrança do que está sendo pranteado”. Segundo este autor, Freud teria resumido o essencial do trabalho do luto em duas palavras: Lösung e Ablösung.
A palavra Lösung significa solução, mas no contexto do luto, ela poderia ser traduzida pela expressão “soltar laços”, “desfazer nós”. Tudo isso em vista de uma Ablösung, ou seja, de uma “substituição”, precisamente a substituição do objeto, cuja perda se chora no trabalho do luto. Esta (substituição) só será feita, quando todos os laços tiverem sido soltos e os fios estiverem novamente em condição de poderem ser usados para fazer novos laços e para dar novos nós.

Enquanto o trabalho do luto abre a possibilidade de novos e inesperados encontros, evocando assim a pulsão de vida, na melancolia predomina a pulsão de morte, uma vez que há uma identificação narcísica com o objeto ausente, perdendo o amor pela vida.
Pode-se dizer que o envelhecimento “positivo” é aquele no qual predomina um estado permanente de luto. Ao contrário de um envelhecimento negativo em que prevalece um estado de melancolia.
                    Perez (2004), põe ênfase na idéia de que a consciência da velhice advém por intermédio do outro. Ela lembra que Simone de Beauvoir, na obra La Vieillesse (1970, T II, p 14), entende a velhice como uma relação entre o que se é para o outro e a conscientização do si-mesmo que advém por intermédio do outro: "Em mim, é o outro que é idoso, quer dizer aquele que eu sou para os outros: e esse outro sou eu".
                   Já o poeta Mario Quintana, no poema "O Velho no Espelho" expressa, de maneira exemplar, a difícil realidade a ser integrada - a permanência do si mesmo apesar da desestabilização da imagem:
Por acaso, supreendo-me no espelho:
 quem é esse que me olha e é tão mais velho do que eu?
Porém seu rosto... é cada vez menos estranho..
Meu Deus, meu Deus...
Parece meu velho pai - que já morreu!
Como pude ficarmos assim?
Nosso olhar - duro - interroga:
'O que fizeste de mim?!'
Eu, Pai?! Tu é que me invadiste, lentamente, ruga a ruga...
Assim, a tristeza provocada pela constatação das perdas que traz o envelhecimento pode tornar-se tanto um estado de fragilidade que demarca uma fronteira entre os que envelhecem e os vivos, como o vislumbrar de um novo horizonte.
Quando prevalece a noção de que o envelhecimento se opõe à vida, o homem tende a se isolar. Como ressalta Elias, o envelhecimento pode gerar uma situação na qual o homem se torne "menos sociável e seus sentimentos menos calorosos, sem que se extinga sua necessidade dos outros" (2001, p. 17). A dificuldade em aceitar que o velho continue necessitando de vínculos de sociabilidade e de manter-se próximo a tudo aquilo que lhe dava "sentido de vida e segurança" (op. cit., p. 8) faz do envelhecimento um estado de permanente tristeza.
 Entretanto, quando o envelhecimento é visto como um novo ciclo, ele traz a percepção do nascer de um outro horizonte. Nesse estado, será exigido que a pessoa reconheça o que foi perdido ou transformado em si mesma, pois só assim será possível positivar o envelhecimento e mesmo a vivência de tonalidade depressiva que faz parte da elaboração. Portanto, a tristeza provocada pelo envelhecimento pode ser fruto da própria consciência do desenrolar de um processo de transformação e não um estado necessariamente patológico.
No entanto, a tristeza torna-se um fenômeno patológico quando a realidade do envelhecimento é negada ou, ainda mais, quando há recusa do envelhecimento. Este termo – recusa - é aqui usado em analogia com o conceito freudiano de recusa - Verleugnung - empregado por Freud no sentido específico de modo de defesa diante da angústia de castração, que consiste numa recusa, pelo perverso, de reconhecer a realidade de uma percepção traumatizante, essencialmente a da ausência de pênis na mulher. Este mecanismo é evocado por Freud em particular para explicar o fetichismo.
Como bem nos lembra Ferraz (2005), a recusa do envelhecimento "na qualidade de recusa do tempo encarnado no próprio sujeito", tem seu correlato na "recusa do tempo encarnado no objeto", freqüente, sobretudo nos homens, em uma conduta de descarte de parceiros que envelhecem. Esse "horror ao envelhecimento" é um fenômeno mais do que arraigado na chamada "normalidade" cultural, "somente sendo considerado patológico quando chega a extremos, como no caso de Dorian Gray". Assim, nos diz Ferraz, os disfarces da idade, tão corriqueiros e normais, são parte de uma linha contínua que, ao adentrar o terreno da perversão, pode transformar-se em outras modalidades correlatas de substituição do autêntico pelo falso. É neste ponto que podem surgir, entre outras formações, o "fetiche pela prótese" (idealização do falso), como afirma Chasseguet-Smirgel, citada por Ferraz (2005, p 60).
Para Lanteri-Laura “há na perversão uma negação do tempo e da morte, expressa em uma fixação na pré-genitalidade. Para este autor "as perversões aproximam-se da morte, na medida em que desconhecem a temporalidade: como denegação de um encadeamento, preferência atribuída a um instante eternizado e recusada ao desenvolvimento no tempo, elas se situam no extremo oposto da vida, não apenas por serem biologicamente estéreis e não gerarem ninguém, mas principalmente por provirem da negação do tempo" (apud Ferraz, 2005, p. 60).
No entanto, as perdas vividas podem também conduzir o sujeito a efetivar um novo encontro consigo mesmo. É nesse reencontro que pode situar-se o trabalho das elaborações criativas, sendo a primeira delas o diálogo que cada um pode travar com sua própria história.
Também se revela de fundamental importância, para que se criem alternativas, a consciência de que as perdas trazidas pelo envelhecimento são de qualidade diferente daquelas que ocorrem em outros ciclos vitais.
Não se deve desconsiderar que até chegarmos à tomada de consciência provocada pelo envelhecimento já vivemos outros lutos, decorrentes de mutações próprias da vida. A passagem da infância para a adolescência, por exemplo, comporta perdas e mudanças que podem provocar vivências de tonalidade depressivas, uma vez que tal processo implica a perda, entre outros, da dependência materna, de um corpo definido por sua infantilidade. Essas perdas, no entanto nos lançam para um mundo novo, ainda que desconhecido. Nele nos confrontamos com novas exigências que nos obrigam a reconhecer um outro corpo e nos lançam para um universo de novas responsabilidades e atividades. Iniciamos um outro ciclo da vida. A passagem da adolescência para a vida adulta também é caracterizada por uma revolução, por transformações biopsíquicas que, por vezes, provocam também vivências de tonalidade depressiva, já que compreendem perdas e o confronto com o novo: um novo corpo que, deixando para trás a indefinição, passa a ser exigido em força, vigor, destreza, habilidade e capacidade.
Nessas várias travessias (verdadeiros rituais de vida), encontramos, em geral, elementos de identificação que são parâmetros a acenar para a construção de projetos que acreditamos fazer parte do futuro.
  
MEMÓRIA E VIVIFICAÇÃO DO PASSADO
Em contrapartida, se o envelhecer for acompanhado da vivificação do passado, pode tornar-se fonte propulsora de renovação e redescoberta. Lembro-me de uma visita que realizei com um grupo de amigos à casa da poetisa e doceira Cora Coralina, em Goiás Velho, no ano de 1982. Mulher simples e carismática, tanto por sua arte de poetar, cozinhar  e outras, como por sua autenticidade e generosidade. No fim da visita, cada um de nós, ao adquirir um livro da poetisa, desejava um autógrafo. A todos surpreendeu a maneira como ela procedeu: antes de autografar, Cora Coralina manteve uma conversa privada com cada um de nós. O que ela escreveu no meu livro, guardo com muito carinho, e até hoje reverbera como uma vivificação de minha memória familiar: "(...) Fernando Rocha – A vida é boa e nós podemos fazê-la sempre melhor. E o melhor da vida é o trabalho. Você tem, além da força de sua mocidade, um potencial imenso de apoio – A Rocha do seu nome. Nas aperturas da vida, lembre-se dela”.
Poetando a vida, Cora Coralina, faz lembrar o sentimento de rejuvenescimento ou de eternização do homem, possível, nesse caso, por meio da arte – forma de ultrapassar o tempo – busca tão bem atestada pelos antigos mitos.
                        "Meu tempo passou...não! Meu tempo é esse" (Mário Lago)[5].
Por não visar o futuro, no envelhecimento pode-se ter uma visão das experiências vividas somente como um passado perdido, um passado para sempre morto, como um velho álbum de fotos no qual, ao mirá-lo, só se reconhece a estaticidade, a paralisia, o mofo. Mas esse passado pode ser vivenciado de outra maneira: como uma memória em movimento. Movimento que permite uma vivificação do passado. Movimento que permite o passeio pelo tempo. Um tempo enriquecido, em que a perda do tempo é transformada num novo tempo. Um tempo enriquecido pela vivacidade das experiências que há muito deixaram de ser simplesmente coisas do passado, ou frustrantes projeções para o futuro, para manterem-se como histórias que compõem o presente. Um presente que, abandonando a perspectiva de projetos individuais, se agrega a projetos coletivos, capazes de provocar experiências de re-viver sonhos do passado, estimulando a sensação do rejuvenescer.
Uma memória que traz o tempo passado não como nostalgia, mas como transporte que possibilita a revivência, ou um viver de novo no tempo. Uma memória viva, que faz, de cada um, um contador de histórias. Histórias que não são prisioneiras do factual, mas do sentimento das vivências, portanto, fora do tempo cronológico. São fragmentos de histórias que, se mantendo vivas, constituem matéria-prima para a criação.
Portanto a criação-recriação se faz com o que se é e o que se tem internamente. Como renovação do que aparentemente estava adormecido.
Zeferino Rocha (2005) em seu rico trabalho “Esperança não é esperar, é caminhar” nos mostra que para Heidegger o tempo seria o inter-relacionamento do passado e do futuro na dinâmica do presente. Neste caso, seria abolida a noção de tempo como sucessão linear de agoras, em que o passado é definido como um “nunca mais”. O passado se alimentaria do vigor do presente, pois “o que fomos não deixa de estar presente naquilo que somos”. Heidegger designaria esta apresentação do passado no presente como “o vigor de ter sido”. No comentário de Zeferino Rocha (2005), nesse vigor reside uma força de atualização, expressão das forças ativas do passado – que, como tal, resistiriam ao novo – e as forças do presente, que se projetam no que está por vir. “Portanto, no instante do nosso presente, há uma luta entre o que se impõe como novidade às forças do nosso já constituído e uma abertura para o futuro, na qual se projeta o que se espera, o que está por-vir (Zukunft), mas que já está presente como projeto” (p 12).
Haveria, assim, uma “dialética da existência” na qual ao “não mais” – decorrente da morte das possibilidades – se contrapõe o “ainda não” – como tempo da esperança:  “o ‘ainda não’ da esperança volta-se para o futuro, mas sem deixar de fincar suas raízes no presente, como solo revigorado do ter sido, tempo de nossas decisões e escolhas. E é isto que distingue a esperança de uma simples quimera” (Rocha, 2005, p.13).
É nessa dinâmica temporal, marcada pela “esperança” que o  envelhecer pode ser vivenciado, como conjugação de habilidades exercidas no passado com a capacidade de manter atuais os sentimentos/experiências de amor, amizade, solidariedade, possibilitando o despertar e o sustentar do movimento criativo.
Como bem escreveu Drummond: A cada dia que vivo, mas me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca. E, esquivando-nos do sofrimento, perdemos também a felicidade.
O envelhecimento talvez possa ser metaforicamente comparado ao que Cartola poetou em sua composição "O inverno do meu tempo", na qual diz que os sonhos do passado no passado estão presentes no amor que não envelhece jamais. De outra maneira, Paulinho da Viola, também reafirma essa noção de passado no presente, quando lembra: Não sinto saudades porque não vivo no passado; o passado é que vive em mim [6].
Assim, revitalizado, o passado atualiza-se no presente. Num presente que necessita ganhar expressão em cada história de vida, em cada corpo: corpo-mão, corpo-pé, corpo-voz, corpo-mente, corpo-olho e corpo-memória. A possibilidade de criar a partir do que se tem confere vigor a cada vida, pois confirma o seu encantamento, o que nela há de desconhecido e mágico. Magia que possibilita "criar a criação".
Para vivenciar o envelhecimento como um novo horizonte, temos antes que admitir que nele a morte se apresente como fim, pois trazendo a morte para a vida podemos verdadeiramente amar a vida, como aponta Freud (1915) no seu texto "Nossa atitude para com a morte" (SE Vol. XIV).
Ou “viver a vida pela vida”, como disse Darcy Ribeiro numa entrevista: “Eu me exerci de várias formas. Se me exercesse só como político ou só como educador, teria mais profundidade no que faço, mas vivi a vida pelo gosto de viver, porque viver é gostoso. Exercer papéis diferentes permite que você enxergue melhor" (Goldfeld, 1997).
O que torna a vida difícil não é a realidade, mas a negação desta. Assim, a tristeza provocada pelo envelhecimento só se torna patológica quando negamos a crueza da vida. E nada melhor para evitar essa negação do que as experiências de criatividade. Como lembra o filósofo Heine, "Deus criou o mundo para não adoecer".

A MÚSICA COMO ELABORAÇÃO CRIATIVA NO ENVELHECER
“É muito simples: eles e elas estão cantando. Eu sempre pensei, escrevi e disse: aquilo que um ser humano é capaz de fazer, todos podem fazer. Se Pelé é o maior jogador do mundo, eu também posso chutar: tenho pés e cabeça, ora! Não farei mil gols, como ele, mas darei meus passes, meus dribles” (Palavras de Augusto Boal no primeiro programa do espetáculo “Chuveiro Iluminado”, Rio, 1999)
Assim, qualquer experiência de criação pode conduzir a uma vivência de "júbilo" e reencontro com a vida. Pela especificidade da música, esta mereceu o elogio de alguns filósofos que, como Nietzsche, a privilegiaram. "Mas, é igualmente evidente que o sentimento jubiloso do ser, o prazer de existir, estão presentes em muitos, independentemente de qualquer interesse musical”, dirá Nietzsche (citado por Rosset, 2000).
Neste sentido, a música, pelo que possibilita como elaboração criativa, como horizonte vital, envolve e facilita um renascer tanto para aquele que é o interprete como para aquele que é o espectador. Para este último há o deleite propiciado pela sonoridade, pelo ritmo, em que cada nota, som, palavra são evocadores de memórias que logo abandonam seu lugar de passado e ingressam no presente.
Um desses exemplos vem sendo a minha experiência no grupo “Cantores do Chuveiro”. Tudo começou com um grupo de amigos que se reunia para cantar ‘músicas de sempre’. Numa dessas reuniões, depois de uma cantoria que varou a madrugada, Augusto Boal que participava naquela noite, disse: “vocês deviam fazer um show pra valer”. As pessoas riram da “brincadeira”, mas uma delas levou à sério e disse “nós temos que fazer esse show”. Logo se pensou em quem iria participar e convidou-se um músico para fazer a direção musical. Boal sugeriu que o show se chamasse “Chuveiro Iluminado” em alusão engraçada aos que cantam no chuveiro. À medida que íamos nos encontrando, ensaiando com a ajuda do experiente diretor do Teatro do Oprimido, o show foi tomando corpo e, com êxito, foi lançado no porão do teatro Laura Alvin[7]. Após o Teatro Laura Alvin fomos cantar em Paris, no Theâtre L´´Epée de Bois”, com sucesso. A música em cada um dos componentes do grupo, cuja faixa etária oscilava entre 50 e 75 anos, teve uma repercussão muito positiva..
O prazer de cantar, de dividir emoções durante e depois do espetáculo denotou a satisfação vivida por cada componente do Grupo. O que  surpreende é o fato de se tratar de um espetáculo que iniciou sem nenhuma pretensão, mas logo passou a fazer sucesso de público. O show atraiu, inicialmente, as pessoas de “terceira idade” que, nos saudavam e abraçavam como se fizéssemos parte também da história delas. Posteriormente, cativou o público em geral.
Em seguida, sob a batuta do escritor e competente pesquisador musical Ricardo Cravo Albin, o grupo apresentou um espetáculo que teve como título “Cantores do Chuveiro – 100 anos de MPB”. Realizamos também, sob a direção de Eduardo Dussek outro show sobre as músicas tocadas e cantadas no cinema nacional, que se intitulou “Luz, Chuveiro, Ação!”. Nossa última apresentação, iniciada em outubro de 2007 e que também teve a direção de Ricardo Cravo Albin chamou-se “Quem canta faz a hora” (com músicas de protesto) [8].
Nunca vou esquecer de um momento em que os “Cantores do Chuveiro” se apresentaram no Sesc de São João do Meriti: No final do espetáculo as pessoas cantavam conosco. Após os aplausos finais,  uma senhora subiu ao palco e disse com humor e emoção: "amanhã as farmácias de São João de Meriti vão ter prejuízo. Este show é o nosso melhor remédio!”   
O grupo, com algumas variações na sua composição é formado de cantores e cantoras que não fizeram do canto uma  primeira  opção profissional. No entanto, certamente, nenhum deles gostaria hoje de se ver fora da música. É como se essa atividade sempre tivesse feito parte da vida de cada um.
Na atualidade, o grupo movimenta-se para render homenagem a Augusto Boal e comemorar seus dez anos de existência com a reapresentação em inícios de 2010 do seu show inaugural “Chuveiro Iluminado”.
            Também, como possibilidade de resgate do passado, tornando-o presença-presente cito o trabalho realizado na gravação do meu CD "Um brasileiro à Paris". Nele, cada música interpretada é o movimento com o qual torno minha vivência de dez anos em Paris presença, ainda presente e viva, a despeito do transcorrer do tempo cronológico já vivido após meu retorno ao Brasil. Se neste trabalho musical tentei resgatar memórias dos dez anos que vivi em Paris, o trabalho com o CD "Palavra Nordestina", foi a maneira que encontrei para re-visitar a infância e adolescência  pernambucanas.
Essas várias experiências são “viagens sonoras” que  revitalizam o que se poderia chamar de "tempo perdido".
            Atualmente estou em processo de gravação de um novo CD, desta vez sobre  a música de Dorival Caymmi.
Referindo-se à "essência da alegria musical", Clément Rosset (2000) escreve: 
É evidente que em Nietzsche como em outros, a música é o momento do mais intenso júbilo vital, gozo comparável e superior a qualquer outro gozo físico e psíquico, notadamente sexual". "(...) A alegria de ser culmina na expressão musical, momento em que se encontra a suprema e última realização. Para outros, isso se passa de modo diferente, e não há, naturalmente, lugar para deduzir daí um júbilo menor.
Júbilo talvez comparável ao rejuvenescimento das águias, no antigo mito da cultura mediterrânea. Conta o mito que de tempos em tempos, a águia, como a fênix egípcia, se renova totalmente. Por voar cada vez mais alto, até chegar perto do sol, suas penas se incendeiam e ela se lança qual flecha nas águas frias do lago. A experiência de fogo e de água propicia à velha águia rejuvenescer, voltando a adquirir novas penas, garras afiadas, olhos penetrantes e o vigor da juventude. Leonardo Boff  associa esse mito ao salmo 103, que diz: "O Senhor faz com que minha juventude se renove como uma águia".
Mas podemos também associar o rejuvenescer da águia com o ato de entregar à morte o velho que em nós habita e que não nos engrandece: os hábitos e as atitudes que não nos dignificam, como a falta de solidariedade, o desinteresse pelo bem comum, a vontade de ter razão e vantagem em tudo, ou mesmo o desrespeito para com os seres vivos, além do homem. Somente quando entregamos esse velho à morte é que podemos renascer e rejuvenescer tal como a águia: recomeçar, podendo ouvir o novo, aprender com o velho e revisitar o passado.
Assim, neste campo de luta, entre o “não mais” que será instalado pela morte e o “ainda não” que se abre como tempo da esperança, tal como escreveu Zeferino Rocha (2005), “o homem é um peregrino e seus pés não se cansam de criar novos caminhos, pois seu destino é caminhar e sua alma é uma “alma viajeira”. Por isso, o fim a que chega em cada etapa de sua grande viagem, é de onde ele sempre está partindo para novas estradas e para novas aventuras”.





REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1998.
 BOFF, L. O despertar da águia. 9a ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1999.
ELIADE, M. Tratado das crenças e das religiões. Lisboa: Cosmos. 1970. 
ELIAS, N. A solidão dos moribundos. Rio de Janeiro: Zahar, 2001
FERRAZ, C. F. Tempo e Ato na Perversão. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005.
FREUD, S. (1915) "Reflexões para os tempos de guerra e morte" - II: Nossa atitude para com a morte. Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio: Imago, 1969.
GOLDFELD, Z. Encontros de vida. Rio de Janeiro/São Paulo: Record. 1997.
LINS, M.I.A. Ver-se e ser visto na terceira idade. In Dimensões do Envelhecer. Dulcinéa da Mata Monteiro (Org.) Rio, Revinter, 2004.
PERES, M. R.S. "O homem e as marcas do tempo" (Tese de Mestrado "Viver e conviver com a idade", Universidade de la Habana, Cuba, agosto de 1999). In: Dimensões do envelhecer. Dulcinéa da Mata Ribeiro Monteiro (Org). Rio: Revinter, 2004.
QUINTANA, M. Antologia poética. Porto Alegre: L & Pocket, 2003.
ROETZLER DE CASELLA, A.S. O Idoso diante da Morte. Trabalho de conclusão de Curso de Pos-graduação em geriatria clínica. Hospital Pró-cardíaco. Rio de Janeiro, 2009.
ROCHA, Z. Freud: Aproximações. Série Estudos Universitários. Editora Universitária –UFPE. Recife: 1993.
 __   ROCHA, Z. “Esperança não é esperar, é caminhar”. Reflexões sobre a esperança e suas ressonâncias na teoria e clínica psicanalíticas. Conferência na Abertura do X Encontro Psicanalítico do Centro de Pesquisa em Psicanálise da Cidade do Recife, maio de 2005.                                                                                                                             . ROSSET, C. Alegria – A Força Maior. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.

Endereço do Autor:
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Email: fernando1rocha@uol.com.br




[1] Publicado no livro “Um outro envelhecer é possível”. Lucia Ribeiro (Organizadora). Editora Idéias & Letras. São Paulo: 2012
[2] Guapemirim – Nova Friburgo, RJ, Outubro, 2007.
[3] Gege Edições Musicais Ltda (Brasil e América do Sul).
[4] Lemos no Gênesis 2-3: “O Senhor Deus tomou o homem e o colocou lá no jardim de Éden para o cultivar e guardar. O Senhor Deus deu ao homem uma ordem, dizendo: “Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas da arvore do conhecimento do bem e do mal não deves comer, porque no dia em que o fizeres serás condenado a morrer”.  Mais adiante vemos algo sobre o pecado: “A serpente era o mais astuto de todos os animais selvagens que o Senhor Deus tinha feito. Ela disse à mulher: “É verdade que Deus vos disse ‘não comais de nenhuma das árvores do jardim?’ E a mulher respondeu à serpente: “Do fruto das árvores do jardim, podemos comer. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus nos disse ‘não comais dele nem sequer o toqueis, do contrário morrereis’”. A serpente replicou à mulher: “De modo algum morrereis.” É que Deus sabe: no dia em que dele comerdes vossos olhos se abrirão e sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal”. (...) Mais adiante está escrito no Gênesis: “E o Senhor Deus disse: “Eis que o homem se tornou como um de nós, capaz de conhecer o bem e o mal. Não vá agora estender a mão também à àrvore da vida para comer dela e viver para sempre”. E o Senhor Deus o expulsou do jardim de Éden, para cultivar o solo donde fora tirado. Sendo expulso o homem, colocou diante  do jardim de Éden os querubins com o cintilar  da espada fulgurante, para guardar o caminho da árvore da vida”.



[5] Mario Lago, citado por João Máximo em artigo do Jornal “O Globo” – Segundo Caderno, Rio, 23 de março de 2006.
[6]  Citação de Zuenir Ventura no Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 19.08, 2000.

[7] Assim foi apresentado este show numa reportagem de capa do segundo cardeno d´O Globo de  08 de março de 1999: “Eles não podem ser considerados exatamente oprimidos. Mas são as novas apostas de Augusto Boal. Em um primeiro momento, é verdade, a cena beira o sureal. Pois o diretor – criador do Teatro do Oprimido, responsável por espetáculos  como o mitológico Arena conta Zumbi -  comanda há dois meses um elenco sui-generis em que pontificam as vozes poderosas dos psicanalistas Fernando Rocha, Suzana Tonin e Cecília Boal, dos diplomatas Afonso Arinos de Mello Franco e Sylvia Waschner, da crítica Laura Sandroni e do jurista  Octavio Mello Alvarenga. Pois esses gogós nobilíssimos estarão se apresentando ao público, a partir do dia 12, no porão da Casa de Cultura Laura Alvin, em Ipanema, em um espetáculo musical que não poderia ser melhor batizado: Chuveiro Iluminado. Os ensaios abertos a preços populares (R$5,00) acontecem hoje, às 21h30 e amanhã às 20h30.”. (Eduardo Graça).
[8] Deste espetáculo fizeram parte como cantores: Clara Redig, Fernando Rocha, Laura Sandroni, Octávio Brandão, Maria Helena Alvarenga e Paulo César Correa Lopes.



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Blog do Fernando Rocha


Notas de Jorge de Campos Valadares



O livro do Fernando Rocha.
 No conto “A terceira margem do rio”, Guimarães Rosa fala da transmissão: um pai decide e ir-se numa canoa para o meio do rio, sem nunca voltar a uma das duas margens possíveis.  Os filhos assistem à partida do pai que abençoa apenas um deles, aquele que pede para ir junto com ele. Um dia acena a este filho para que  o substitua na tarefa de manter-se no fluxo contínuo do rio.  Mas tomado pelo pânico que o apelo lhe causara, o filho não atende o pedido e o conto, daí em diante, é o relato de sua culpa.  A crítica literária, em geral,  traduz o  impasse entre o pai e o filho como o impasse de todo escritor diante do rio da tradição. Para criar sua obra o escritor deve ocupar o lugar da terceira margem, lugar simbólico que permite a transmissão de  uma herança cultural. Resenha da Betty B Fuks, para o livro de Fernando Rocha.
Pontalis,
1  J’aimerais jamais n’avoir rien écrit une ligne qui  ne soit venue de ce que me patients m’ont  permis de  deviner.  ( Noticia  da morte de Pontalis, por  Robert Maggiore / Libération 19/13/2013)
2  La parole qui inlassablement, elle se donne et s’accueille …
3  A criança deseja apropriar-se das qualidades do objeto para suportar a sua ausência.Diatkine.