sábado, 16 de agosto de 2014

TRANSMISSÃO DA PSICANÁLISE EM NOSSOS TEMPOS - Resenha por Betty B. Fuks


Resenha 1 
Transmissão da psicanálise  em nossos tempos.
Resenha do livro “Entrevistas Preliminares em Psicanálise; Rocha Fernando J. B. Casa do Psicólogo. São Paulo. 2011. 219pgs.
Autora: Betty B Fuks.  Psicanalista.
 No conto “A terceira margem do rio”, Guimarães Rosa fala da transmissão: um pai decide e ir-se numa canoa para o meio do rio, sem nunca voltar a uma das duas margens possíveis.  Os filhos assistem à partida do pai que abençoa apenas um deles, aquele que pede para ir junto com ele. Um dia acena a este filho para que  o substitua na tarefa de manter-se no fluxo contínuo do rio.  Mas tomado pelo pânico que o apelo lhe causara, o filho não atende o pedido e o conto, daí em diante, é o relato de sua culpa.  A crítica literária, em geral,  traduz o  impasse entre o pai e o filho como o impasse de todo escritor diante do rio da tradição. Para criar sua obra o escritor deve ocupar o lugar da terceira margem, lugar simbólico que permite a transmissão de  uma herança cultural[1].
O mesmo vale para o impasse dos psicanalistas diante da transmissão e da preservação do  lugar da psicanálise na cultura.   É esta a lição que encontramos no livro, recentemente lançado pela editora Casa do Psicólogo,  Entrevistas Preliminares em Psicanálise.  O autor Fernando José Barbosa Rocha possui um estilo de transmissão que parece estar calcada no mandato de um outro Fernando, o poeta dos heterônimos: Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: "Navegar é preciso;  viver não é preciso"./ Quero para mim o espírito [d]esta frase,    
transformada a forma para a casar como eu sou: Viver não é necessário;  o que é necessário é criar”.   Assim,  o nosso Fernando das entrevistas preliminares propõe,  na introdução do livro,  aproximar, sob a égide da alegoria, navegação e  psicanálise.  Com isso,  aponta um problema que toca de perto a transmissão da psicanálise: de que modo conciliar o valor dos chamados conceitos que instituem a teoria psicanalítica com uma prática que se dá essencialmente na transferência, na relação com o outro, nas formas tornadas possíveis pelo desenvolvimento da linguagem?
               Rocha propõe  as duas grandes qualidades de Freud, criatividade e precisão clínica,  como o norte do trabalho  que irá apresentar nas páginas de  um livro marcado pela leitura de vários autores que se debruçaram sobre a clínica e a teoria  analítica em seu mais de cem anos de existência.    Partindo da própria experiência  que viveu em outro país,  o autor escolhe  trabalhar um dos temas mais importantes da psicanálise, colocado em destaque por Freud no texto “O início do tratamento” em 1912.   Para evitar a interrupção da análise, a fim de se conhecer o caso e decidir sobre a possibilidade de sua analisabilidade  o inventor do método psicanalítico entendia como necessário um tratamento preliminar no qual  o analista avalia as condições do paciente à transferência, motor da análise.   Esse período foi chamado de “entrevistas preliminares” por Jacques Lacan na releitura que empreendeu da escritura freudiana.  Para o mestre de Paris não poderia haver entrada em análise sem as referidas entrevistas.  Ele as definiu como um tempo que compreende a formulação do diagnóstico estrutural até o momento em que se inicia a análise propriamente dita. 
            Num esforço de traduzir a importância deste período, Rocha expõe algumas vinhetas clínicas, o que é extremamente incomum no universo das publicações psicanalíticas.   Diga-se de passagem que são poucos os analistas que têm a coragem de dar testemunho, por escrito,  da condução das análises que empreende.    Nosso  autor  mostra, através de algumas análises que conduziu,   que a prática  das entrevistas preliminares inicia quando um paciente marca uma primeira entrevista com um psicanalista.   Expondo  a experiência,  Rocha  facilita ao leitor apreender do que se trata e qual a função destas entrevistas com a qual o analista procura garantir  o êxito da condução do tratamento.  Por outro lado ressalta, também, que  a diversidade de constelações psíquicas  sempre reservam ao analistas um elemento de surpresa que ele não tem como prever.
           A aspiração de  Rocha  em distinguir o ato clínico do relato do analista certamente foi o que o levou a desenvolver uma técnica  de transmissão a partir da própria experiência psicanalítica.  O que os pacientes lhe transmitiram,  portanto lhe ensinaram durante um determinado período,   é que  a  importância das entrevistas preliminares é de tal monte  que não há análise sem o estabelecimento destas entrevistas.    Rocha deixa claro que no início de um tratamento o analista está diante de uma encruzilhada: criar com o analisante condições para que o sintoma que o leva a procurar um analista seja transformado em sintoma analítico,  ou aceitar a impossibilidade de seguir adiante com a cura.    Ao analista cabe “redirecionar a demanda do entrevistando, podendo, assim, conduzi-lo a uma demanda de análise” (Rocha, p. 35).   Esta ação instala o dispositivo da transferência, o playground, como dizia Freud,  onde se desenrolará uma  análise.   Neste lugar que espelha  não apenas o motor de uma análise mas a própria resistência do inconsciente,   o analista encontra meios de fazer com que o analisante se submeta à associação livre,  cuidando dele próprio  não fugir, jamais,  de manter sua escuta voltada  ao que emerge em função dos efeitos desta regra básica.    A insistência neste dispositivo que emerge nas referidas entrevistas reaparece em todos os capítulos do livro.  No próprio sumário observa-se que o autor, preocupado em circunscrever os momentos  e as condições cruciais  que venham garantir o sucesso da direção de um tratamento,  se manterá do início ao fim da obra fiel ao tema anunciado claramente no próprio título do livro.
         Um outro aspecto do valor da exposição de Rocha  encontra-se na reflexão que o leitor  é levado a fazer sobre o futuro da psicanálise em nosso tempo, um tempo marcado pela cultura do extermínio do sujeito do inconsciente. Ameaças cientificistas pesam sobre a psicanálse : as neurociências, na pretensão de explicar o inconsciente em termos neuronais,  concorrem para que o sujeito do desejo seja categoricamente  exterminado.  Portanto, um livro que dá mostra da importância da transmissão dos valor das ferramentas teóricas que permitem operar a prática clínica,  merece saudações.      “Entrevistas Preliminares” estabelece no último capítulo uma forte resistência a que o corpo biológico -  em voga no momento através da metodologia estatística do DSM e do CID  que  encarrega  a nova psiquiatria  tratar os sofrimentos humanos, exclusivamente, através de medicamentos  e  descartar totalmente o sentido do sofrimento, o sintoma como produção  de linguagem -, se sobreponha ao corpo da linguagem.
          Aí reside, ao meu ver, um dos maiores valores  do livro  em questão:  defender a excepcionalidade das entrevistas preliminares  na contemporaneidade, um tempo invadido pelas patologias do corpo.   Resguardar o que foi prescrito por Freud na contemporaneidade  significa,   navegar com os instrumentos precisos de seu legado e,  ao mesmo tempo, estar aberto à criatividade para enfrentar o acaso com a qual o analista se depara a cada caso, a cada interrupção abrupta do tratamento;  e, finalmente, a cada término de uma viagem por mares nunca dantes navegados. 




RESENHA 2


      
Entrevistas Preliminares em Psicanálise: incursões clínico – teóricas
Rocha, Fernando J. B., Casa do Psicólogo. 2011. 219pp
Resenha por Sandra Gonzaga e Silva

Um aviso ao leitor incauto: este não é um livro sobre Entrevistas Preliminares em Psicanálise. É claro que Fernando Rocha não os está enganando como bem nos alerta Sergio Zaidhaft em seu prefácio ao livro, no entanto é da viagem - análise, seus inícios, mas também seu percurso, que nos fala o autor.
Se” navegar é preciso” e a vida não tem precisão, o cuidado no manejo do enquadre de que fazem parte as entrevistas iniciais e seus atributos é fundamental para conter a inelutável errância do material clínico.
Necessário é dizer, seguindo Fernando, que o diário de bordo desta viagem só poderá ser escrito a posteriori, sendo em suas palavras “a articulação teórica que não diz a vivência do analisando, mas é sobretudo um mapeamento desta.”(pg17)
A afirmação é importante para refletirmos sobre o engessamento da escrita que vemos ocorrer com frequência nos Institutos de formação em psicanálise. A ilusão da fidedignidade entendida como tradução simultânea pode estar entre os fatores que inibem a produção dos relatos psicanalíticos.
Ainda no Cais
Rocha justifica e enfatiza o tempo das entrevistas preliminares como campo de investigação dos critérios de analisabilidade e definição da possibilidade de um dado analista empreender o processo psicanalítico com um dado paciente. Em outras palavras, às interrogações feitas ao candidato à análise, corresponderiam perguntas que o analista se faria sobre seu lugar de analista em relação à determinado analisando.
Tendo sempre como norte a dupla singular analista analisando, são discutidas dentre outras, as noções de pedido de ajuda e demanda de análise, diagnóstico flutuante e divã temperado, balizas para o processo a ser iniciado. É na escuta das entrevistas preliminares que o analista poderá perceber as possibilidades do candidato à análise abrir-se para a construção de novos sentidos no que tange ao seu sofrimento psíquico. A construção de um esboço diagnóstico neste momento orientará as adaptações que porventura sejam necessárias no enquadre analítico. Incluído nesta etapa estará o desejo de analisar do analista, tributário de seu próprio processo análitico.         


Soltando as âncoras
O livro de Fernando Rocha foi elaborado a partir de seminários ministrados em instituições psicanalíticas e em grupos de estudo. Acompanhando os seminários verificamos que ali pelo segundo, já embarcaram os analisandos presentes nas vinhetas clínicas e os autores que a partir de Freud e a ele retornando em releituras iluminadoras, colaboram com o autor na apresentação dos conceitos do arcabouço psicanalítico, que vão sendo revisitados ao longo dos seminários numa integração teórico clínica exemplar.      
É dessa maneira que a apresentação do caso de “Monsieur M” e a eclosão de um ato falho (espada/escada) em uma de suas entrevistas preliminares, põe em evidência o conceito de retificação subjetiva, entendida como a mudança de posição do analisando, que ao se implicar na formação de seu sintoma, muda a relação com sua demanda e retifica seu lugar diante de seu sofrimento, sendo esta a mudança que inaugura sua entrada em análise. (pag55). O conceito intuído por Freud quando lança à Dora a pergunta sobre sua participação na desordem de que se queixa, é nomeado posteriormente pela releitura que lhe dá Lacan.
Essa forma de integrar a vivência clínica com a reflexão teórica de maneira clara e didática a cada seminário, nos permite tomar contato com temas seminais da psicanálise como a transferência, a castração, experiência de satisfação, recalque, ego ideal e ideal de ego, as organizações psíquicas e suas consequências no manejo clínico, as teorias pulsionais etc. A transmissão da psicanálise ancorada na leitura de Freud e dos autores pós freudianos depuradas ao longo da sólida experiência profissional do autor traduz-se numa escrita a um só tempo densa e simples, resultando numa leitura extremamente prazerosa.
Acompanhar a viagem que Fernando Rocha empreende com seus analisandos  tendo como ponto de partida as entrevistas preliminares, possibilita inúmeras reflexões sobre o fazer psicanalítico, seus impasses, sua potência.
Se pensarmos as resistências que a contemporaneidade oferece à psicanálise com seus atributos de eficácia, imediatismo, satisfação plena, o tudo poder, tudo ser, fenômenos sobre os quais Bauman, citado por Rocha, se debruçou em seu livro O mal estar na pós modernidade (pg161,162), poderíamos afirmar que a dimensão ética da psicanálise se instaura quando caminha na contramão da lógica do gozo ilimitado, expressão  da pulsão de morte nos tempos atuais.

Ao desenhar o enquadre analítico como representante da Lei que interdita, limita e propicia o acesso ao simbólico, Rocha vai sublinhar o caráter estruturante do desejo que permite representar ao invés de agir e que discrimina o agir concreto do agir simbólico.”Somente quando nos encontramos interditados, limitados é que podemos aspirar ao ilimitado”(pag67) nos fala Fernando enfatizando o encontro do sujeito com sua incompletude,” submetido à temporalidade que o circunscreve em sua dimensão finita”(pg69).
Em que porto ancoramos?
Guardando a especificidade de cada viagem, as tormentas, as calmarias e as tantas surpresas que enfrentam analista e analisando, chegar ao término do percurso analítico para Fernando Rocha diz respeito a um aspecto formal, pois leva em conta que a experiência analítica uma vez introjetada é uma aventura interminável. Uma análise que termina encontrará o sujeito cuidando de seu desejo, bem acompanhado de si e dos novos laços que construirá em suas novas viagens. 


RESENHA 3

Entrevistas preliminares em psicanálise: incursões clínico-teóricas
Rocha, Fernando J. B. Casa do Psicólogo. São Paulo. 2011. 219 pp.
Resenha por Viviane Frankenthal, psicanalista da SBPRJ.

“Entrevistas Preliminares” - assunto de interesse para os psicanalistas de qualquer tempo e escola - nos é apresentado de um jeito novo desta vez. Sob a forma de seminários, questões são levantadas e reflexões oferecidas, baseadas no pensamento singular clínico e teórico do autor, apurado e depurado durante sua extensa vida profissional.
Como o sofrimento se transforma em demanda de análise?
Fernando Rocha nos conduz pelos caminhos que a psicanálise traçou, ontem e hoje, para compreender essas questões. O fio condutor é o tema das entrevistas iniciais, mas ao puxá-lo, o autor desenrola toda a teoria psicanalítica. Navega pelas águas profundas da psicanálise, trazendo à tona conceitos e acepções de diversos autores da maneira simples que só uma grande experiência pode proporcionar. Os textos mais relevantes da teoria psicanalítica escolhidos a dedo pelo autor fundamentam, de forma clara e didática, seus argumentos.
Proust nos vem à mente quando nos sentimos invadidos pelo mesmo sentimento que ele descreve em “Sobre a leitura”. Ou seja, as tarefas diárias tornam-se meras interrupções para o leitor que se debruça sobre esse texto querendo continuar a ler e refletir sem quebrar o encadeamento criativo que o escritor apresenta. Como em uma conversa solitária, onde a personalidade do autor está presente, não queremos nos distrair...
O original neste livro é a forma como o autor encadeia as ideias para tecer o texto de cada seminário e como o texto de cada seminário, por sua vez, está vinculado ao seminário anterior e ao posterior. Vamos seguindo seu pensamento e nos damos conta, em certa altura do trajeto, de que nosso patrimônio teórico, assim como nossa compreensão da clínica psicanalítica, cresceu. Há um verdadeiro processo de aprendizagem no seguimento desses seminários.
Outro ponto alto no texto são os exemplos clínicos e sua compreensão, vividos pelo próprio autor durante sua vida profissional, desde o início até hoje. Começa com Mireille e o lapso que propicia a sua entrada em análise, após algumas entrevistas preliminares: “eu queria amá-lo” em vez de “eu queria matá-lo”. Ou o ato falho de Monsieur M: “filme de capa e escada”...
Rocha nos alerta para um risco que deve ser evitado nessas entrevistas: “... o estímulo a uma relação transferencial, prolongando o número de entrevistas” (pág. 25). Isso nos fez pensar em um dos primeiros livros de Phillip Roth, “O Complexo de Portnoy” onde o protagonista, deitado no divã do psicanalista Dr. Spielvogel, narra sua história, suas lembranças de criança, da adolescência, seus dilemas sexuais, seus conflitos com a mãe judia e com o pai ausente, durante sessões de análise que se estendem por todo o livro. A narrativa termina com a única fala do psicanalista: “Então, agora talvez a gente possa começar”. O difícil “momento certo” de começar o percurso analítico para o analisando teria a ver com o reconhecimento de seu sofrimento psíquico: “o conflito interno é um estado de sofrimento onde o sujeito “se sabe” participante da situação geradora do sofrimento” (pág. 22). E todo cuidado é pouco para preservar o entrevistando de ser perturbado psiquicamente antes da decisão de tomá-lo em análise. O analista é implicado nessa decisão, cabendo a este interrogar-se sobre sua própria problemática psíquica. Esse caminho nos levará a conceitos básicos da Psicanálise como transferência, ego ideal e ideal de ego.
Entretanto, “trata-se de provar o quê”? Esta é a indagação que o autor se faz sobre as entrevistas preliminares denominadas “análises de prova” por Freud. Envereda pela problemática do diagnóstico diferencial, “diagnóstico flutuante” e analisabilidade, termos sempre caros à clínica psicanalítica e que não podem ser deixados de lado na construção do processo de análise.
Nas entrevistas preliminares, segundo Rocha, o analista faz intervenções que não são interpretações, pois estas terão efeito só após o estabelecimento da transferência. Ainda não utiliza o conjunto de recursos técnicos psicanalíticos, no entanto, “a escuta psicanalítica deverá ser mantida e exercida... já que esse modo de escutar é determinante para propiciar a entrada do potencial analisando em análise” (pág. 44). 
Fernando Rocha nos mostra como a clássica pergunta de Freud à sua analisanda Dora, “Qual é a sua participação na desordem da qual você se queixa?” poderia ser feita, ainda hoje, a todos os analisandos nas primeiras entrevistas.
Revisitamos, então, as recomendações de Freud aos analistas iniciantes e sua oposição a qualquer mecanização da técnica. Passeamos pela criação da neurose de transferência e pelo papel simbólico do contrato analítico, sob a ótica do autor fundamentada em sua clínica. Rocha destaca o lugar do analista como o lugar do simbólico, de onde irá “tecer com o analisando uma nova narrativa para a história deste” (pág. 64).
Quando recebemos uma pessoa para entrevistas iniciais, recorremos a conceitos teóricos sobre o que ocorre no psiquismo desta até o movimento que a levou ao encontro com um analista. Seu conflito interno, seu sofrimento existencial, como nos mostra Rocha, pelo que foi perdido irreversivelmente. No entanto, os parágrafos já escritos da vida daquele que nos procura, podem ser reescritos junto com o analista, transformando esse encontro numa aventura sempre inusitada, desafiadora e imprevista. Nos seminários ministrados por Fernando Rocha esses conceitos são colocados sempre de forma articulada com a clínica, a clínica dele, o que nos dá uma dimensão da consistência de suas palavras.
É o que ocorre no caso Nicole. Um pequeno atraso do analista mobiliza uma cadeia associativa inesperada. Sabemos que atrasos, férias e mudanças mobilizam. Mas o interessante é ver como a surpresa do analista pode ser pensada: “o que surpreende é a maneira singular pela qual a história de cada um é evocada” (pág. 79). E Rocha nos alerta para o risco de ficarmos numa relação baseada no nosso próprio pensamento imaginário, o que nos levaria a interpretar antes de aparecer o elemento surpresa. O autor nos mostra sempre, ao longo do livro, seu extremo cuidado no garantir a função de analista. E esse cuidado é um dos méritos do livro, pois aponta com clareza como o predomínio do pensamento imaginário do analista o deixa indiscriminado de seu analisando com graves consequências para o processo analítico.
No caso do “Homem das Vacas”, já vemos logo de início um fato recorrente em primeiras entrevistas. Uma lembrança de infância condensando os principais elementos da trama do imaginário do analisando e em torno da qual o processo analítico se desenrola propiciando mudanças. Também neste exemplo clínico, o autor trata da questão do final da análise e do destino dado ao analista. Questão essa que nos fala da condição humana e sua incompletude, da busca incessante que move o desejo.
As primeiras hipóteses diagnósticas podem ser pensadas nas primeiras entrevistas, mas só no decorrer do processo, na relação transferencial, é que se revelará a organização psíquica do analisando. Aqui o autor se refere ao paradoxo do diagnóstico em psicanálise que sempre estará presente na escuta psicanalítica. No seminário 6, ele vai tratar das estruturas psíquicas, de sua gênese a partir do complexo de Édipo, com referência na castração. Vamos percorrer um caminho profícuo desde o “Projeto para uma psicologia científica” de Freud, passando por conceitos fundamentais da psicanálise como “vivência de satisfação” e “angústia de castração” até a formação das estruturas neurótica, perversa e psicótica, desembocando no fenômeno psicossomático. Além de Freud, conversamos com Piera Aulagner, Françoise Dolto, Marty e outros autores que através do entender de Rocha vão compondo o texto até o inegável papel social da psicanálise no mundo contemporâneo.
Aqui caberia avisar ao futuro leitor de Fernando Rocha que, se tocamos nesses pontos do livro, é porque este não se esgota neles, vai muito além deste pequeno trecho apresentado! E mesmo quando terminamos de ler o livro, vemos que Proust, em seu pequeno texto “Sobre a leitura” que já citamos aqui, tem razão ao dizer que nós leitores gostaríamos de receber respostas, mas o autor só pode nos dar desejos.
Ao formular a instigante pergunta: “O que teria para dizer hoje a psicanálise? Como caracterizar a nossa época?” (pág.160), o autor incita novas perguntas e novas questões, mergulhados como estamos em nosso tempo, cada vez mais ligados em redes sociais e talvez cada vez mais sós... 
Fernando Rocha, ao resgatar Freud e outros mestres da psicanálise, nos faz ouvir Proust mais uma vez ainda: “Mas é a uma outra coisa que eu prefiro, para terminar, atribuir essa predileção dos grandes espíritos pelas obras antigas. É que elas não têm apenas para nós, como as obras contemporâneas, a beleza que nelas soube incutir o espírito que as criou. Elas recebem uma outra beleza ainda mais emocionante do fato de que a sua própria matéria – ouço a língua em que foram escritas - é como um espelho da vida”.
Por fim, o autor fala da viagem interminável intrínseca ao processo analítico. E também da solidão que bem acompanha o sujeito que termina uma análise formalmente e da aquisição de autonomia nas escolhas que ele faz sobre suas companhias na viagem da vida.
Pois bem, durante a leitura deste livro, nós fazemos parte da viagem da vida profissional de Fernando Rocha. E vale a pena!




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