domingo, 27 de janeiro de 2013

MATERIA PUBLICADA NO LE MONDE SOBRE O FALECIMENTO DE J.B.PONTALIS


J. B. Pontalis aos 46 anos

Matéria publicada no Jornal Le Monde no dia seguinte do falecimento de J.B.Pontalis Paris, 16 janvier, 2013

Por Elisabeth  Roudinesco
Tradução de Fernando Rocha
           
15 de janeiro 1924 – Nascimento em Paris
1945 -  Publica na revista de Sartre, “Les Temps Modernes”
1964 -  Membro da Association Psychanalytique de France
1970 - Funda a “Nouvelle Revue de Psychanalyse”
15 de janeiro 2013 – Falecimento em Paris

            Nascido em Paris em 15 de janeiro de 1924, Jean-Bertrand Lefèvre Pontalis, apelidado de “jibê”, faleceu em Paris, na terça 15 de janeiro. Originário da grande burguesia, neto do senador Antonin Lefèvre-Pontalis e sobrinho neto do industrial Louis Renault, ele não gostava que lhe fosse lembrado sua genealogia, sobre a qual ele fala nos seus relatos autobiográficos.
            Sobre sua infância, falará no ensaio datado de 2006 (Frère du précedent, Gallimard -, que ganhou o prêmio Médicis de ensaio) sobre a difícil relação que viveu com o irmão mais velho: “Mesmo se ele morreu já há alguns anos, não consigo ainda saber se ele me detestava ou se me amava. Mas, por pudor, eu não gostaria de me deter numa simples descrição desta relação. Escolhi, então, me interessar, por meio de uma série de jogos de espelhos, a outros casais (couples) de irmãos, reais ou de ficção: Marcel e Robert Proust, Vincent e Théo Van Gogh, os irmãos Champollion. Ou ainda os Goncourt: na morte do cacuça, Jules, o seguinte, foi apelidado de “a viúva” – a palavra “casal” carrega aí toda sua força”.
Pontalis pertence à terceira geração psicanalítica francesa, da qual ele foi, juntamente com Wladimir Granoff, Serge Leclaire et Jean Laplanche, um dos mais brilhantes representantes. Cheio de charme, petillant (crepitante) de ineligência, dotado de um bonito talento literário, conseguia pela vida afora obter todos os sucessos possíveis, sem jamais se separar da editora Gallimard, à qual seu nome permanece ligado. Na Gallimard ele foi autor, editor, diretor de coleção e membro do comitê editorial. Em 2011, recebeu o Grande Prêmio da Academia francesa pelo conjunto de sua obra, composta de muitos ensaios e romances, e de várias dezenas de artigos.
É logo depois da segunda guerra mundial que “jibê”, bastante engajado à esquerda passa no exame de agregação de filosofia e exerce o metier de professor.  Na esteira do ensino de Maurice Merleau-Ponty, ele se interessa à fenomenologia e, deste 1945, publica notas de leituras na revista de Jean Paul Sartre, Les Temps modernes. Uma dezena de anos mais tarde, ele se torna oficialmente o porta voz da psicanálise na revista, estando, ao mesmo tempo,  tanto próximo de  Daniel Lagache como de Jacques Lacan, com o qual ele efetua sua análise didática no seio da Sociedade Francesa de Psicanálise (SFP). Admirando a obra de Lacan, mas recusando de nele ver um “maître à penser”, realiza para o Bolletin de Psychologie uma bela transcrição resumida de vários seminários de Lacan, que permanece uma fonte maior utilizada por numerosos pesquisadores.
No momento da ruptura entre Sartre e Merleau-Ponty, ele não deixa a revista e entra em 1962 no comitê de redação. Em 1960 ele assina o Manifesto dos 121 em favor do direito à insubmissão na guerra da Algéria e, dois anos mais tarde, decide, como muitos outros de seus amigos, não seguir Lacan por ocasião da segunda cisão do movimento psicanalítico. Também se torna, em 1964, juntamente com outros, um membro importante da Association Psychanalytique de France, que ele não abandonará  jamais. É com Jean Laplanche que ele redige o Vocabulário de Psicanálise (PUF, 1967), que será traduzido em vinte e cinco idiomas e cujo valor jamais foi desmentido, mesmo se a obra nunca foi reatualizada.
Em 1966, Pontalis conquista sua independência uma segunda vez criando na Gallimard a mais prestigiosa coleção psicanalítica da cena freudiana francesa: “Connaissance de L´inconscient”. Nesta coleção, ele fará surgir grandes clássicos, dos textos e das correspondências de Freud, até as obras de Donald Woods Winnicott ou de Masud R. Khan, pasando pela “Fortaleza Vazia”, de Bruno Bettelheim.
“Uma função, não um ser”.
Três anos mais tarde, Sartre, hostil ao meio psicanalítico e ao estruturalismo,  decide publicar nos Temps Modernes um estranho manuscrito no qual um paciente narra sua revolta tentando impor ao seu analista a presença de um gravador. No seu comentário, ao mesmo tempo em que afirmava que não era um “falso amigo” da psicanálise, ele afirma que este texto testemunhava a irrupção do sujeito contra uma prática estereotipada na ortodoxia. Diante do que ele, considera como uma agressão, Pontalis prefere deixar a revista. Depois da morte de Sartre, ele editará na sua coleção o soberbo Scénario Freud, acompanhado de um comentário no qual ele explicará que Sartre fabricou por ele próprio um Freud à sua imagem.
Em 1970, ele funda a Nouvelle Revue Revue de Psychanalyse, cuja publicação ele encerrará em 1994. Nas cinqüenta publicações desta revista, que foi a melhor de todo o campo psicanalítico francês, se acha a vontade de juntar a psicanálise à literatura, à arte e à todas as disciplinas das ciências humanas, sem jamais ocultar o que lhe parecia a condição primeira de todo trabalho de escrita: tornar sensível sem apagar a marca do inconsciente nos textos leves e desprovidos de qualquer movimento para agradar a um mestre ou sistema de pensamento. E é na mesma perspectiva que ele cria em 1989, sempre na Gallimard, uma elegante coleção (“L´un et L´autre”), dedicada a colocar em cena mais “vias tais que a memória as inventa”: “Psicanalista, é uma função, não um ser”, dizia ele em 2010, “não é uma identidade. Espero, por exemplo não sê-lo com meus próximos, não bombardeá-los  com interpretações mais ou menos selvagens. Não faço isso nem no meu consultório.  Quando era psicanalista iniciante, eu me perguntava o que eu estava fazendo ali, com que direito? Digo com freqüência que tomar-se por um analista é o começo da impostura. E se eu consigo me tornar, é bem porque eu não me tomei por um analista”.
Pontalis havia afirmado sempre que não amava nem os estudos doutos (‘savantes’), nem os arquivos. Ele queimava papeis e cartas, mas conservava todo tipo de fotografias coladas em álbuns ou dispersas diante dos livros da biblioteca. É porque ele se empenhava, através uma obra compósita e em efervescência, de redigir curtos relatos sabiamente construídos e destinados a dar a ilusão que o tempo não tem idade.
Encontramos a quintessência disto em um belo opúsculo, “Avant” (Antes), publicado em 1912: “Era melhor antes”, diz ele, fazendo um pastiche do “Je me souviens” de Georges Perec, de quem ele foi o segundo analista entre 1971 e 1975. Era melhor “quando a palavra revolução era portadora de esperança”, “quando Lacan (...) não havia ainda fabricado lacaneanos”, ou ainda “quando Sartre não era célebre” e “quando eu ia dançar no Bal nègre, rue Blomet”. Não se saberia melhor dizer de um analista que, no fim de sua vida, era exclusivamente voltado para o passado e que considerava que no tratamento (‘dans la cure’) “o silêncio é a condição da palavra”. 


J.B. Pontalis - foto recente

                                                

sábado, 19 de janeiro de 2013

Noticia do falecimento de J.B. Pontalis

É com pesar que comunico o falecimento de J.B. Pontalis - Psicanalista francês membro da Association Psychanalytique de France ocorrido em 16 de janeiro em Paris. O enterramento se realizará hoje (19/01/13). Vide abaixo noticia publicada pelo Jornal Liberation.


sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

O ACESSO AO SENTIDO1


René Diatkine




Vou falar sobre a maneira como um recém-nascido, um bebê, dá sentido ao que está em torno dele, e ao que está nele, e como tenta dominar o que representa justamente este sentido. Com freqüência, na prática reeducativa ou educativa, quaisquer que sejam as posições filosóficas conscientes ou espontâneas de uns e de outros, se faz apelo a uma realidade exterior facilmente definida, que o ser humano, desde seu nascimento, deve aprender a conhecer, e, sobretudo, a designar. Esta visão é muito simplista e não corresponde ao que se passa. Se esta visão fosse utilizada para ajudar as crianças que seguem caminhos particulares, isto correria o risco de seguir um andamento mecanicista estéril.
Apenas há alguns anos sabemos que desde os primeiros dias de vida, o universo está longe de ser indiferente para o ser humano: este tem reações diferentes diante das pessoas de seu ambiente, reações que não são determinadas somente pelas necessidades físicas. As reações dos bebês em presença da mãe são diferentes daquelas diante de outras pessoas, e isto imediatamente. Em seguida tudo se complica e tudo o que vai se passar depende da experiência: a resposta às condutas de apelo do bebê provoca uma modulação dessas condutas de apelo que se diferenciam e se carregam de nuances. No entanto, a ausência de resposta provoca uma espécie de desligamento e de abatimento do bebê sobre ele próprio, reação sempre idêntica. Muito rapidamente, a criança responde de maneira diferente a certo número de sinais que se combinam. Temos o direito de perguntar a que se deve esta valorização de certos sinais.
É aí que uma das mais antigas hipóteses de Freud toma lugar: muito cedo aparece na criança a capacidade de reproduzir psiquicamente uma experiência de satisfação. Mas à época de Freud, a experiência de satisfação que servia de modelo se referia à satisfação das necessidades físicas. Conhecemos agora a existência de toda uma série de outros elementos estimulantes cujo desaparecimento coloca muito cedo em perigo a continuidade do sujeito.
A alucinação da experiência de satisfação, tanto como a alucinação daquilo que provoca esta experiência, encontra sua fonte no auto-erotismo, em um movimento muito mais contínuo que a satisfação da fome ou da sede. Há a construção do objeto, construção totalmente psíquica e que vem de dentro do sujeito. Pode-se ver como a criança maneja esta oposição entre o que é percebido e o que é representado. A alucinação da experiência de satisfação pode encontrar sua fonte na erogeneidade do corpo. Quem diz alucinação, diz projeção para o exterior do que se passa no interior do sujeito. Isto é, no meu ponto de vista, um dos elementos essenciais à construção do objeto. É a partir deste momento que o objeto é reconhecido como tal, que sua ausência é reconhecida como tal. A criança deseja apropriar-se das qualidades do objeto para suportar a sua ausência.
Desde o segundo semestre, a criança manifesta seu desagrado diante da ausência, e este desagrado carrega uma diferenciação de suas reações para com sua mãe e para com aquele ou aquela que não é sua mãe. O que é de uma importância extrema, é que a criança é capaz, a partir de uma experiência que não é um dado em si, de atribuir um lugar específico a diferentes personagens, comparáveis à sua mãe, mas diferenciados, e de maneira alguma intercambiáveis.
Na mesma época, ou seja, no segundo semestre da vida, surge um fato essencial aos olhos daqueles que se interessam pelo aparecimento da linguagem: é o reconhecimento do valor do “ícone”. Quando se mostra aos bebês de dez meses imagens, belas imagens – pois a qualidade do grafismo e da apresentação é muito importante -, vê-se esses bebês acariciar a imagem de um gato (por exemplo), acariciar de maneira seletiva a figura e não o fundo; não é o papel que interessa, mas a figuração. Este fenômeno nos surpreendeu muito, mas ele se repete e é inegável. Podemos constatar que, por seu comportamento, a criança mostra que não somente reconhece o valor do ícone, mas ela sabe que o ícone não é a coisa. Isto é fundamental porque isto precede o aparecimento dos primeiros elementos da linguagem.
Isto se passa ao mesmo tempo que a transformação dos balbucios. A criança se põe a imitar a melodia dos adultos que a cercam. É em torno desta idade que se distingue o jeito de falar do bebê, podemos já distinguir o jeito de falar de uma pequenina inglesa do de uma pequenina chinesa, é alguma coisa que, ao mesmo tempo, faz parte do psiquismo e dá sentido ao que é percebido do exterior.
Cabrejo estudou o funcionamento da linguagem associando-o à passagem da indicação (gestual) à designação do objeto ausente. Ora, a linguagem só aparece verdadeiramente quando a ausência é vivenciada e a necessidade de se identificar ao outro para obter o reaparecimento do objeto ausente é uma necessidade. Cabrejo remarca que para indicar, isto é, para manifestar um desejo que se refere a um objeto percebido, um único elemento é suficiente, o gesto. A criança exprime claramente o que quer, e este desejo é compreendido por aqueles que a cercam. A partir do momento em que se trata de designar um objeto ausente, isto necessita a organização de vários elementos; faz-se necessário que haja ao mesmo tempo a representação mental de qualquer coisa que não se encontra no campo perceptivo do sujeito e sua evocação por um mínimo de sintagmas.
Para mim, o aparecimento da linguagem não é somente destinado à comunicação – esta idéia me parece redutora -. Para mim, trata-se de uma elaboração psíquica infinitamente mais importante que a função de comunicação em si mesma.
Mostrou-se com freqüência que o desejo começa a partir do momento em que o objeto se oculta e torna-se frustrante. Eu acredito que, em todos os começos, a atividade alucinatória é uma atividade psíquica de ponte, ou seja, que ela permite ao sujeito sobreviver entre duas experiências de satisfação. A partir do momento em que os objetos são reconhecidos e identificados como tais, a partir do momento em que o objeto-mãe designa o elo que liga o sujeito a uma pessoa, e não a outra, esta definição mesma contêm a frustração maior. Pois esta definição provoca forçosamente limitações no tempo e no espaço. O que toma a maior importância, a partir deste momento, é a maneira como o sujeito vai ser capaz de elaborar esta frustração sem se desorganizar. É aqui que a possibilidade de representação torna-se o elemento essencial.
Esta elaboração se constrói em dois níveis: o primeiro é uma maneira de evocar um desejo imediato, ligado globalmente a uma via corporal. A outra é a evocação do objeto ausente, domínio que necessita uma organização no tempo do discurso. A salvaguarda de sua continuidade psíquica passa por este tipo de operação. Neste momento, a comunicação se faz entre um sujeito que tenta dominar um mundo exterior que ele construiu como fundamentalmente limitado e frustrante, e outras pessoas que não são abstratas, que investem o sujeito e reagem em função de sua própria história, de suas próprias angústias, e de seus próprios desejos face a ele, face ao que exprime o discurso nascente da criança.
Que entende a criança da linguagem do seu entorno? Ele entende duas ordens de discursos. Há a língua materna falada, língua bastante reduzida. Ainda que não se esteja mais no registro da indicação, é uma língua na qual há muitas convenções íntimas, e na qual a entonação e a proximidade corporal desempenham um papel importante. Para um grande número de crianças, há logo um contato com uma outra língua que chamarei de escrita-falada. Fora da língua corrente, língua da mãe, existe esta língua oral-escrita, que já tem a forma que tomará a língua escrita.
Muitas crianças encontram esta língua no decurso de instantes privilegiados, como por exemplo o momento da noite ou antes de adormecer, quando escutam contar uma história. Esta história que se conta às crianças para ajudá-las a entrar no sono, a se separar dos adultos, é uma história que já segue as regras do escrito. Estas crianças reconhecem rapidamente a diferença entre os dois registros. Outras, que não foram familiarizadas com esta língua da narração, só o conseguem muito dificilmente, ou de nenhuma maneira, pois não têm a prática. Ora, desde que a criança entra na escola, mesmo na maternal, ela vai se haver com essa língua particular, já estruturada como a própria língua. A partir do momento em que um ensino se dirige a um grupo de crianças, no cenário da escola, ele fala uma nova língua, diferente daquela que se fala na família. Se percebe que é a língua do domínio da ausência.
A fórmula que abre a maior parte dos contos exerce uma grande atração sobre as crianças: “Era uma vez” anuncia qualquer coisa que as crianças captam como um meio de elaborar a angústia de separação e elaborar as fantasias. Ora, esta língua veicula uma quantidade de representações angustiantes, às quais a criança é confrontada muito jovem. Nos bons casos, é com grande facilidade que ela toma posse dessa língua, a torna sua, e enquanto ouvinte, no início, capta as nuances, evitando a angústia.
O nível seguinte, também importante, é o das trocas por intermédio da linguagem, diretamente ligado ao afeto do sujeito no momento em que ele fala. Por exemplo: “Tenho fome, eu sofro, eu te amo”, exigindo mais ou menos rapidamente uma resposta daquele a quem se dirige. Este nível de trocas vai durar toda a vida.
O outro nível de linguagem é da ordem de uma elaboração que permite o manejo com as representações e as representações de afetos, sem que o sujeito viva a experiência traumática. Nos contos são evocadas as fantasias terrificantes de morte, de destruição. A estrutura mesma da língua permite sentir prazer na história, sem se sentir ameaçado, e a sentir prazer na repetição reasseguradora graças à estrutura do relato.
Quando uma professora de maternal diz simplesmente: “Agora vamos levantar e sair em silêncio”, esta fórmula não tem nada a ver com a língua oral-falada. É um enunciado que não se dirige pessoalmente a uma criança e que poderá ser escrito. Graças a este enunciado, as crianças de três anos param de chorar e começam a manter uma relação de um novo tipo com alguém que, falando no cenário da escola, se dirige mais ao seu “imaginário” do que à sua afetividade. Nos primeiros meses, em uma pequena classe de escola maternal, quando uma criança chora, é necessário tomá-la nos braços para acalmá-la. No final de alguns meses, outro tipo de relação se criou, não um outro tipo de relação social, mas uma relação que, graças a um trabalho mental, lhe permite elaborar a ausência (de sua mãe ou de uma relação única com a professora, que representa um substituto materno).
Nossa civilização é marcada pela importância do livro. Todas as formas do escrito, a começar pelo escrito-falado, permitem ao sujeito não estar, em todos os momentos, dependente do outro. Se não se leva em conta estes dois níveis, não se pode compreender as dificuldades que têm as crianças em se apropriar da língua oral e, mais tarde, da escrita. O escrito, portanto, não tem somente uma estrutura diferente da oral; ele tem também uma outra função. O que alguém é capaz de ler ou de escrever lhe permite afrontar as angústias mais terrificantes, continuando a se interessar pela leitura. Existem dois níveis de organização que persistem durante toda a vida, mas se queremos nos situar em uma dimensão histórica, percebemos que cada nível de funcionamento tem uma originalidade estrutural perfeitamente definida em relação à outra.

Tradução de Fernando Rocha

Nota:
Conheci o Prof. René Diatkine em Paris, no Centre Alfred Binet (Centro de atendimento de saúde mental de crianças e adolescentes do 13º bairro de Paris), onde ele foi meu mestre, supervisor e colega e onde trabalhei durante oito anos como coordenador de uma das sete equipes daquela instituição da qual ele foi um dos fundadores.
René Diatkine era psicanalista, membro da Société Psychanalytique de Paris. De família originária da Bielorússia, nasceu em Paris em 1918, onde faleceu em 1998. Na França deu um formidável impulso ao progresso da psiquiatria e da psicanálise da criança e do adulto, à compreensão da psicose, dedicando-se especialmente à linguagem e às atividades psíquicas da criança.

1 Este texto foi traduzido de uma publicação intitulada “Langages et activités psychiques de l´enfant avec René Diatkine”, coordenada por Madeleine Van Waeyenberghe. Paris: Ed Papyrus, 2004. Foi uma palestra realizada pelo Prof. Diatkine em 1987, em jornada científica consagrada às “Novas Aproximações da Linguagem”, organizada pelo Sindicato das Ortofonistas da região parisiense.




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ENTREVISTA COM FERNANDO ROCHA - ALTER – Revista de Estudos Psicanalíticos da Sociedade de Psicanálise de Brasilia Inestigação – Vol. 30 (1), junho, 2012-


1 - Fernando, em primeiro lugar, gostaríamos de agradecer sua
disponibilidade em conceder essa entrevista, que é o desdobramento de
uma rica conversa que aconteceu na SPB. Naquele encontro, que tinha
como tema central o papel da entrevista inicial no tratamento
psicanalítico, muitas questões importantes foram discutidas, mas penso
que o grupo ficou com desejo de alongar a conversa.
E para começar esta conversa no papel, gostaríamos que você nos
falasse um pouco sobre essa ênfase na investigação que observamos ao
acompanhar seu percurso na psicanálise. Como ela foi se constituindo,
e o que a fundamenta?

Fernando: Para iniciar esta conversa, quero dizer que tive grande prazer em trocar idéias psicanalíticas com os colegas da SPB e agradecer a maneira simpática e interessada como me acolheram.
Contar como aconteceu meu primeiro encontro, minha ‘primeira entrevista’, com a psicanálise, talvez esclareça o meu gosto pela investigação, que teve início quando quis entender o meu desejo em relação à escolha por uma área de estudo. Isto aconteceu pouco antes de concluir o segundo grau, momento de indecisões e dúvidas pelo qual passa com frequência a maior parte dos jovens nesse período de escolha de uma profissão. Morando numa pequena cidade do interior, qualquer que fosse minha decisão, implicava viajar. Haviam me falado em casa a respeito de um primo médico, sobrinho de meu pai, que morava na capital e que “curava com palavras”. Fiquei fascinado com a idéia e fui ao seu encontro. Zaldo Rocha, psiquiatra-psicoterapeuta infantil, estudioso pesquisador do inconsciente, apresentou-me, nesse encontro, Freud e ao mesmo tempo a psicanálise. Naquela época, não existia psicanalista, nem formação psicanalítica em Recife. O fato de Zaldo ser também exímio violonista, me aproximou ainda mais dele, por termos a música em comum. O lado médico de Zaldo ia ao encontro do desejo do meu pai de, como bom nordestino, querer “ter um filho doutor” e a mim, encantava ser um “doutor” que curasse com as palavras. Essa primeira investigação do meu desejo abriu o caminho para o curso de medicina, depois a especialização em psiquiatria em Porto Alegre e formação psicanalítica em Paris, onde morei durante dez anos. A ‘entrevista’ com Zaldo revelou meu desejo de ser um investigador. De investigar a dor? Desde a minha formação no Instituto da Sociedade Psicanalítica de Paris, nos anos 1970, me interessei, particularmente, por um seminário sobre as entrevistas preliminares. Esse seminário foi também uma boa descoberta da relevância dos começos e a partir dali com o meu trabalho clínico passei a valorizar ainda mais esse tempo que precede a análise – a importância do ‘prólogo da análise’.
A descoberta da importância dos começos foi ganhando relevo: começo de análise, de formação, histórias de investigações. Momento inaugural, as entrevistas são a instalação de um espaço, onde analista e futuro analisante se interrogam sobre seus respectivos desejos.
Não posso deixar de mencionar o meu encontro em Porto Alegre, com Paulo Guedes, com quem iniciei minha primeira análise, interrompida precocemente com o falecimento dele. Em seguida um outro começo: recomeço de análise agora em Paris. Na experiência analítica com J.B. Pontalis, foi possível retomar a análise interrompida no Brasil. Logo nas primeiras sessões, ao escutar o pigarro característico de fumante, pude associar imediatamente com o pigarro que emitia o ex-analista, e também o pigarro do meu pai. Foi de fato um encontro – um reencontro. Reencontro que me fez desde então refletir cada vez mais sobre a importância dos primeiros encontros: das primeiras entrevistas.
O encontro analítico: o desvendamento dos encontros e desencontros dos amores dos começos... A volta aos primeiros encontros, aos amores infantis. A transferência.
Meu percurso como investigador se iniciou, portanto, quando indaguei o meu desejo, e prosseguiu quando na clínica passei a escutar as indagações dos meus analisantes. Compreendi que o escutar das indagações dos desejos dos analisantes leva o analista a querer continuar, na tarefa sem fim, de escutar seu próprio desejo.

2 - Retomando o tema específico de nosso encontro aqui na SPB,
gostaríamos que você nos falasse um pouco mais a respeito da função
das entrevistas preliminares no tratamento analítico.

Fernando: Considero que o momento das entrevistas preliminares possibilita ao analista situar-se diante do tipo de demanda que lhe faz o entrevistando – analisante em potencial. Ao analista cabe, então, a tarefa de tentar transformar o pedido de ajuda em demanda de análise, por meio da retificação subjetiva. Trabalho que pode propiciar a transformação do sofrimento explícito ou implícito do entrevistando em demanda de análise. Ao mesmo tempo, representa o momento no qual o analista deverá interrogar-se sobre suas possibilidades de empreender o trabalho com aquele entrevistando específico.
Assim, se há um prólogo da análise, este não se restringe apenas às interrogações referentes à demanda do entrevistando, mas, também, àquelas que o analista deverá se fazer sobre suas possibilidades de assumir o lugar de analista, com aquele entrevistando particular. As entrevistas preliminares devem considerar tanto a dimensão que situa a indicação da análise como adequada, ou não, quanto a que se volta à motivação do analista no empreendimento da análise com aquele analisante específico.
A pertinência do método analítico coloca questões quanto aos procedimentos a serem adotados nos casos em que não há indicação de “análise clássica”; quando o analisando se expressa, sobretudo, por meio de comportamentos sintomáticos que ocupam o lugar da elaboração psíquica; quando no funcionamento psíquico há entraves que dificultam a busca de uma significação para o sofrimento; quando a idéia de um tratamento pela palavra é desvalorizada, é inquestionável a necessidade de operar adaptações a fim de fazer face a essas situações.
Ao decidir ocupar o lugar de analista com aquele sujeito específico, o analista deverá reconhecer, independentemente da etiqueta nosográfica, a sua própria problemática psíquica, repensar seus pontos de resistência (embora saibamos que a maioria deles é da ordem do inconsciente), e poder formular um autodiagnóstico que, no dizer de Piera Aulagnier, lhe propicie rever sua “capacidade de investir e de preservar uma relação transferencial não com um neurótico, um psicótico, um caso-limite, mas com o que pode prever, para além do sintoma, sobre a singularidade do sujeito que está diante dele’’1.
O tempo das entrevistas preliminares apresenta questões fundamentais, cujo manejo poderá ajudar o psicanalista a lançar mão dos critérios de analisabilidade e definir a maneira mais adequada de investigar e de encaminhar o processo psicanalítico.
Neste sentido, é de fundamental importância compreender a dimensão que o termo “analisabilidade” adquire, numa perspectiva de análise que considera as entrevistas preliminares como um dos momentos indispensáveis na construção do processo de análise.
Por fim lembro o questionamento feito por J.B. Pontalis2 sobre analisabilidade, quando diz que “constatamos que se uma análise “não anda” com este analista, não terá que esbarrar no mesmo obstáculo intransponível com um outro, que, estagnada aqui, ela poderá desemperrar adiante, sem que nisto se possa considerar sempre a extensão da experiência adquirida como um fator determinante”. Em síntese, “ao analisável não caberia outros limites que não os do analista”.
Um dos aspectos importantes a ser evitado nessas entrevistas é que se estimule uma relação transferencial, prolongando o número de entrevistas, quando o analista percebe que a problemática do entrevistando é incompatível com o seu desejo de analisá-lo. Este cuidado denuncia a inadequação de se estabelecer, aprioristicamente, um número de entrevistas embora deva ser mantido como princípio básico um número que preserve o entrevistando de uma perturbação na sua economia psíquica.

3 - Tem se debatido muito a respeito da pertinência ou não da ideia de
diagnóstico e de estrutura em psicanálise. Para você qual a
importância em se definir tais noções na condução do tratamento
analítico?

Fernando: Embora seja na relação transferencial que irá se revelar a organização psíquica do analisando, já nas entrevistas preliminares o analista pode fazer suas primeiras hipóteses sobre o diagnóstico. Dizemos primeiras hipóteses porque, em psicanálise, todo diagnóstico proveniente das entrevistas preliminares deve ficar em suspenso, embora servindo de balizador flutuante que propicie tanto o diagnóstico de analisabilidade, quanto o manejo da técnica. Podemos dizer, então, que as entrevistas preliminares nos levam ao âmago do paradoxo do diagnóstico em psicanálise, paradoxo que deverá estar sempre presente na escuta psicanalítica. Se por um lado, dizemos da impossibilidade de fixar um diagnóstico – ao contrário do que ocorre na medicina -, por outro, dizemos quão fundamental são as entrevistas preliminares na formulação da hipótese diagnóstica.
Concondo com François Ganthertet quando diz: “Entre o trabalho de pensamento do analista escutando, abrindo-se para compreender, e o trabalho de pensamento do analista teorizando, entre essas suas práticas, há separação de ressonância; “ponto de basta”. É nesse ponto que os dois registros se encontram, “se colam durante um tempo um ao outro, e vastos espaços onde seguem sozinhos seus caminhos. (...) Para tentar traduzir essa paradoxal relação eu não escuto com a metapsicologia na cabeça, e portanto, eu não saberia escutar sem ela”3.
No entanto, além da importância que as entrevistas preliminares possuem na elaboração do diagnóstico, devemos também considerar a escolha teórica do analista.
Os gregos tinham uma forma interessante de pensar a teoria: O termo teoria significa “contemplação”, “ação de olhar”, deriva da palavra theorós. O "theorós" era um tipo de funcionário público na Grécia, encarregado de assistir as maratonas. Cada cidade mandava o seu theóros, ao término eles retornavam para suas respectivas cidades e, em praça, relatavam o que tinham visto. Essa narrativa variava, pois dependia do lugar onde cada um havia se posicionado.
Com essa pequena estória podemos entender que a teoria depende do lugar onde cada teórico se coloca para poder criar e se posicionar diante dos fenômenos.
No livro que escrevi sobre o tema das entrevistas preliminares em psicanálise, escolhi o conceito de Castração como ponto de referência, marcando que seria somente na travessia do Complexo de Édipo e na experiência da entrada na fase fálica que as organizações psíquicas iriam se revelar.
Certa vez, quando ainda iniciava minha clínica em Paris, recebi para entrevista uma mulher aparentemente com uma sintomatologia neurótica. Naquela época, minha experiência quanto à prática das entrevistas preliminares era restrita, e por isso, de forma prematura, indiquei o divã para a paciente. No período que havia programado para minhas férias, avisei-lhe que estaria ausente. Ao voltar das férias, encontrei uma carta da paciente na qual ela se mostrava muito zangada, alegando que fora desconsiderada, uma vez que havia comparecido a todas as suas sessões e que eu havia faltado às mesmas.
Apressei-me em telefonar-lhe e já no telefone dei-me conta de que ela não havia registrado a minha comunicação a respeito das férias. Dias depois, deitada no divã, ela me pergunta, após um pesado silêncio: “Porque é que você está querendo me matar”?
Somente naquele momento é que pude perceber na paciente uma falha no que concerne a simbolização da ausência, denotando uma organização psicótica. Esta vinheta ilustra que a indicação de divã foi uma precipitação.

4 - Com as chamadas “patologias contemporâneas”, muitas das condições
de analisabilidade que Freud considerou têm sido colocadas em debate.
Como você se coloca diante desta questão? Há pacientes inanalisáveis?

Fernando: O incremento das Patologias do Ato, juntamente com o fenômeno psicossomático, pode ser entendido como fruto de uma época marcada pela existência de dispositivos e agenciamentos sociais que produzem e são produzidos por um narcisismo que encontra na ausência de Lei um dos seus sustentáculos. Permissiva, a sociedade gera a ilusão de que, num estado de gozo, o homem poderia ingressar no ilimitado.
Em nossa época, o que teria para dizer a psicanálise? Vivemos sob o manto de diversos paradoxos: o crescente fluxo de informações e impotência para absorvê-las; o uso de novos e sofisticados equipamentos eletrônicos, que exige muito reflexo, confrontados com a reduzida reflexão; a crescente interatividade confrontada com o aumento da solidão. Participando de um mundo no qual predomina o descartável e o efêmero, o homem de nosso tempo exime-se de qualquer compromisso com o longo prazo.
Como se localizar em uma época na qual vige o fluxo contínuo de um tempo sempre presente? Intolerante a qualquer espera, avesso a toda fixidez, o homem se move para chegar a lugar nenhum, e, num quase sem-rumo, "tropeça" acidentalmente em outros. Assim, num momento em que se tenta apagar a figura do Outro, a não espera é louvada, a satisfação plena é cultuada, fortalecendo-se um narcisismo que sustenta o divórcio entre a Lei e a Cultura: a Cultura torna-se mais o locus do gozo do que da interdição.
Assistimos, então, o declínio lento e gradual da imagem do pai, da lei do pai, cuja função é, justamente, marcar o sujeito com a inscrição de uma falta estruturante, instituindo limites e fixando lugares. Essas transformações produzem novas subjetividades.
É nesta contemporaneidade sem “futuro”, desprovida de sonhos e de respeito – no sentido de respicere (“olhar para”, que conota o olhar para o outro na sua diferença, na sua singularidade) – que a delinqüência, a toxicomania, a psicopatia, a adolescência prolongada, as inibições múltiplas ganham dimensões alarmantes.
Freud não deixa de chamar a atenção para o fato de existirem outros tipos de conflitos que, estando fora do âmbito da simbolização, adquirem rumos diversos como possibilidade de descarga de energia. Assim, fenômenos como o psicossomático, as patologias do ato – compulsões, delinquência, toxicomania, psicopatia –, as patologias que se expressam nos distúrbios em relação à imagem corporal - anorexia e bulimia -, ou ainda a melancolia, a síndrome do pânico, as chamadas perturbações narcísicas, os casos limite, ou borderlines,. apresentam-se impondo novos desafios à Psicanálise, cabendo discriminar o agir concreto do agir simbólico.
Sobre essas duas noções, no “Argumento” da Nouvelle Revue de Psychanalyse sobre Os Atos (l985), encontramos um importante subsídio em seu reconhecimento de uma ambigüidade na noção de ato. Haveria uma distinção não apenas formal ou terminológica entre a ação e o agir. Enquanto este último traduz o compulsivo, o repetitivo, a ação é o resultado de um trabalho psíquico4.
Diferentes das patologias que têm como parâmetro de definição o complexo de Édipo, as patologias atuais envolveriam questões que traduziriam uma problemática mais referida ao narcisismo. Embora não se possa afirmar que algumas dessas patologias contemporâneas estivessem ausentes em outras épocas (para alguns a síndrome do pânico já havia sido descrita por Freud como neurose de angústia), o fato é que a incidência com a qual elas ocorrem é uma características da nossa contemporaneidade.
Essas “novas doenças da alma”5 exigem que a clínica atual repense tipos de intervenções adequadas às situações nas quais os sistemas de simbolização, inclusive o da expressão verbal, mostram-se fragilizados e preteridos. A expressão “patologias do não agir” se refere a certos comportamentos, entre eles das “inibições múltiplas” e o da “adolescência prolongada”, este último incentivado e mesmo produzido pela família6. Nessa precariedade simbólica, cabe mais ao analista “emprestar” suas fantasias para que seu paciente possa construir sentido, já que há uma carência nas possibilidades de fazer ressignificações.

5 –  Em alguns de seus escritos técnicos, Freud já manifestava
preocupação com uma clínica social. Sabemos que ela esbarra em muitas
dificuldades práticas e teóricas. Como você vê a clínica social? Qual
sua importância para a psicanálise?

Fernando: Podemos começar pensando sobre os dois termos: clínica e social.
O termo clínica psicanalítica pode remeter tanto ao atendimento clínico propriamente dito, como à reflexão teórica e técnica do trabalho psicanalítico, ou ainda à pesquisa do trabalho clínico realizado.
Já o termo social destaca o aspecto social deste atendimento, ao tipo de população que nos procura e como respondemos à demanda de tratamento por parte de uma população que, em principio, não teria condições, por razões financeiras, de freqüentar os consultórios particulares.
Assim, uma clínica social deveria possibilitar que os benefícios do tratamento psicanalítico fossem estendidos a uma camada social mais ampla, especialmente àqueles com recursos financeiros reduzidos. Sabemos, contudo, que podem existir outras razões, diferentes das impostas por limitações financeiras, para a busca de tratamento numa clínica social. Estou assinalando aqui razões referentes à economia psíquica.
A titulo de exemplo destas outras razões, lembro-me da Clinica Social da Sociedade Psicanalítica de Paris, no momento em que eu participava de seminários de formação que tratavam, entre outros temas, das “entrevistas preliminares”. Nessa Clínica, o interesse pela pesquisa era marcante e uma dessas pesquisas buscava desenhar e compreender o perfil dos demandantes. Foi curioso identificarmos que alguns pacientes, apesar de possuírem as condições financeiras necessárias para uma análise em consultório, procuravam a Clinica Social. Essa procura se dava não por motivos financeiros, mas por razões psíquicas: necessitavam sentir-se assegurados por uma instância superior ao analista, no caso, a instituição.
Essa busca de uma “instância superior” me fez lembrar também que algumas vezes, quando coordenava a Clinica Social da SBPRJ, fui procurado por pacientes que queriam se queixar de seus analistas, revelando assim, em alguns casos, uma transferência marcada pela desconfiança.
Se existem pessoas que procuram a clinica social em busca de uma instância superior, a maioria procura por limitações financeiras: são pessoas que só podem se beneficiar da psicanálise se for por intermédio de uma Clínica Social.
Podemos até ousar dizer que a clinica social oferece a possibilidade de a psicanálise realizar de forma abrangente o que Sergio Rodrigues e Manoel Berlinck no livro “Psicanálise de Sintomas Sociais” consideram como sendo a “peculiar democracia” da psicanálise.
Para esses autores, essa peculiar democracia pretendida pela psicanálise asseguraria, em cada um, a liberdade da palavra que lhe falta, mas que está presente como sintoma. Essa democracia consistiria em assegurar o caminho da palavra recalcada. Palavra intimamente vinculada à violência e à dor e que, quando silenciada, se expressaria como sintoma. Lembram ainda esses autores que uma das importantes condições para que haja essa liberdade da palavra é a existência do psicanalista. Este proporcionaria um “‘dispositivo’ favorável à palavra que falta e que está presente como sintoma”7.
Neste sentido, sendo o psicanalista uma das peças-chave para que o processo de “democratização psíquica” seja deflagrado, a clínica social passa a ser de grande valor para aqueles que estariam excluídos dessa vivência por impossibilidades financeiras.
Além disso, não podemos esquecer que as características da clínica social exigem instigantes reflexões a respeito da triagem feita nessas Clínicas. O que significa a realização de uma primeira entrevista, cujo entrevistador não será o analista daquele entrevistando? O precioso relato de Danielle Quinodoz (2007)8 no qual é assinalada a importância da primeira entrevista, pois nela estaria contido, em germe, tudo aquilo que irá se constituir como a problemática central do tratamento, nos lança para importantes reflexões. Uma delas, é justamente quando o entrevistador - objeto propício a ser alvo desta repetição -, não será o analista daquele demandante.
Mesmo quando o entrevistador (que não será o analista do entrevistando) evita uma postura estimulante de uma relação transferencial, me pergunto se será possível evitar a transferência, uma vez que não é possível definir o que é acionado para que ela ocorra. São situações a serem objeto de reflexão a respeito do delicado momento inaugural de uma análise.
Pela importância da Clínica Social, assim como a Instituição Psicanalítica, devemos nela valorizar as melhores condições para que a transmissão da psicanálise possa ocorrer, de modo a propiciar autênticas trocas entre pares, preservando o respeito pelas diferenças e singularidades, abrindo espaços para que todos os seus membros permaneçam expostos à experiência do inconsciente. Uma Clinica que cuide para que a burocratização da formação não sufoque a criatividade, o que pode ocorrer quando rituais são criados no lugar de uma interrogação que priorize as questões psicanalíticas.