Psicanálise: práxis libertadora[1]
Fernando
Rocha
Hoje estamos
aqui para comemorar os cem anos dos Escritos Técnicos de Freud. Mas a esta
comemoração podemos agregar outra: a entrada da obra freudiana para o domínio
público. Fugindo ao restrito meio psicanalítico, a obra do mestre vienense
passa a ser objeto de inúmeras traduções. Num interessante artigo publicado no jornal
francês Le Monde, a historiadora e
estudiosa da psicanálise Elisabeth Roudinesco lembra as disputas e lutas em
torno da obra freudiana. Para ela, esta é uma oportunidade inédita para
analisar as questões históricas e doutrinais dessa “nova batalha freudiana”, e
dar voz aos tradutores.
É oportuno, na
contemporaneidade – momento em que muitos questionam o valor da psicanálise –, ressaltarmos
a importância de Freud. Importância que pode ser observada quando verificamos
que, de forma parcial, sua obra foi traduzida em 60 línguas, e que traduções
integrais, cronologicamente organizadas, foram realizadas em cinco idiomas: alemão,
inglês, italiano, espanhol e japonês. No que tange às correspondências, estas
não se encontram ainda totalmente traduzidas. A estimativa é que Freud tenha
escrito 15 mil cartas, das quais 5 mil foram perdidas e 3 mil já foram
publicadas e ou estão sendo traduzidas em várias línguas.
Roudinesco
lembra que em todo o mundo a obra freudiana se tornou um “caso de escritores,
estudiosos e historiadores”, possibilitando à psicanálise olhar para “fora do
meio psicanalítico”.
No que concerne
especificamente aos Escritos Técnicos, pode-se dizer que a evolução da técnica
freudiana encontrou uma importante modificação realizada a partir de 1892-93,
na qual Freud abandona a catarse e a
hipnose e passa a utilizar a chamada “coerção associativa”: método que
consistia em fazer pressão com a mão sobre a fronte do paciente, sugerindo-lhe que
pensasse em alguma coisa[2]. É
a partir do método da coerção associativa que nasce o conceito de resistência,
deixando como legado importantes repercussões, entre elas as associações livres
– carregadas de significação inconsciente –, a interpretação e a transferência.
No que se refere
ao descobrimento da transferência, aparece a neurose de transferência,
assinalando o reconhecimento de que o analista estará não só na base da relação
com seu paciente, mas na origem de toda a experiência.
Se é possível
falarmos de uma evolução da técnica freudiana, temos de sublinhar dois
momentos: no primeiro, a indicação técnica é tornar consciente o inconsciente,
obedecendo, assim, uma lógica tópica; o segundo ocorre a partir do
descobrimento da resistência, na qual se trata de analisar o que resiste a se
desvelar, seguindo uma trajetória dinâmica.
Freud já havia
assinalado, no Projeto para uma
Psicologia Científica (1895), que o excesso de estimulação ultrapassava a
capacidade de elaboração, exigindo que veículos de linguagem fossem criados a
fim de servirem de receptáculo para essas quantidades.
A descoberta
freudiana evoluiu da submissão da hipnose à possibilidade de transformação da
subjetividade, resgatando a perspectiva crítica contida no mecanismo da
transferência. Assim, Freud realiza uma mudança: de uma postura de submissão
para uma perspectiva libertadora.
Mas, em nossa
época, o que a psicanálise teria a dizer?
Vivemos fruto de
uma contemporaneidade marcada pela existência de dispositivos e agenciamentos
sociais que produzem e são produzidos por um narcisismo que encontra na
ausência de Lei um dos seus sustentáculos. Permissiva, a sociedade gera a
ilusão de que, num estado de gozo, o homem poderia ingressar no ilimitado.
Vivemos sob o
manto de diversos paradoxos: o crescente fluxo de informações e a impotência
para absorvê-las; o uso de novos e sofisticados equipamentos eletrônicos, que
exige muito reflexo, confrontado com a reduzida reflexão; a crescente interatividade
confrontada com o aumento da solidão.
Como escreveu
Rouanet, “o mundo contemporâneo está cheio de amnésicos assim: os
desmemoriados, que não se lembram de nada, e os memoriosos, que se lembram de
tudo, exceto do essencial”[3].
Participamos de
um mundo no qual predomina o descartável e o efêmero, no qual o homem de nosso
tempo exime-se de qualquer compromisso com o longo prazo. Intolerante à espera,
avesso a toda fixidez, o homem se move para chegar a lugar nenhum e, como
lembra Bauman[4], num
quase sem-rumo, “tropeça” acidentalmente em outros. Assim, num momento em que se tenta apagar a
figura do Outro, a não espera é louvada, a satisfação plena é cultuada,
fortalecendo-se um narcisismo que sustenta o divórcio entre a Lei e a Cultura:
a Cultura torna-se mais o locus do
gozo do que da interdição.
Assistimos,
então, ao declínio lento e gradual da imagem do pai, da Lei do pai, cuja função
é, justamente, marcar o sujeito com a inscrição de uma falta estruturante,
instituindo limites e fixando lugares. Essas transformações produzem novas
subjetividades.
Fenômenos como o
psicossomático, as patologias do ato – tais como as compulsões, a delinquência,
a toxicomania e a psicopatia –, as patologias que se expressam nos distúrbios
em relação à imagem corporal – tais como a anorexia e a bulimia –, ou ainda a melancolia, a síndrome do
pânico, as chamadas perturbações narcísicas, os casos- limite ou borderlines,
apresentam-se impondo novos desafios à Psicanálise.
Diante dessas “novas
doenças da alma”[5], o que os
Escritos Técnicos freudianos teriam para nos ensinar?
Freud não deixa
de chamar a atenção para o fato de existirem outros tipos de conflitos que,
estando fora do âmbito da simbolização, adquirem rumos diversos como
possibilidade de descarga de energia.
Diferentes das
patologias que têm como parâmetro de definição diagnóstica o complexo de Édipo,
as patologias atuais traduziriam uma problemática mais referida a questões de
ordem narcísica. Embora não se possa afirmar que algumas dessas patologias
contemporâneas estivessem ausentes em outras épocas (para alguns, a síndrome do
pânico já havia sido descrita por Freud como neurose de angústia), o fato é que
a incidência com que ocorrem é uma característica da nossa
contemporaneidade.
Essas novas
patologias alma exigem que a clínica atual repense tipos de intervenções
adequadas às situações nas quais os sistemas de simbolização, inclusive o da
expressão verbal, mostram-se fragilizados e preteridos.
Talvez o que
configure uma das singularidades do processo analítico seja a força e o poder
que a palavra possui, podendo ser verificados inclusive no silêncio, silêncio
que só faz sentido porque inserido na ordem simbólica.
No entanto, não
se pode dizer que apenas a palavra simbólica seja garantia do processo de elaboração
psíquica. Se verbalizar possibilita uma via de realização que não seja pelo
ato, não assegura uma mudança psíquica. Neste sentido, somente a experiência
analítica pode propiciar a transformação da compulsão à repetição em mudança
psíquica.
Na precariedade
simbólica apresentada pela contemporaneidade, na qual as atuais patologias se
desenvolvem, cabe mais ao analista ter uma maior participação nas construções
de sentido em que, emprestando suas fantasias numa construção compartilhada, pode
promover sentidos, já que a angústia pode ser o resultado de uma falta de
representação.
Se não cabe ao
analista ser um aconselhador, diante dos pacientes que apresentam carência na
simbolização ele é desafiado a promover possibilidades de sentido a partir das
próprias fantasias.
Podemos pensar
que a escuta pode evocar um diálogo entre duas fantasias, instaurando um
momento de criação[6]. Criação
de palavras para dizer o que jamais foi dito. Não porque estivesse sob o regime
do recalque, mas por não ter sido ainda nomeado. É o momento, portanto, de
ingressarmos numa certa ordem de imprevisibilidade, de não-saber, conscientes
de que para chegar ao saber devemos não só escutar a fantasia, mas ir além, tentando
torná-la objeto de produção de sentido. Neste caso, interpretar é ir além da
formalidade que o signo oferece, é poder buscar luz ao obscuro no paciente.
Só os analistas
preguiçosos, ou seja, aqueles que hesitam em deixar em suspensão a teoria, seguem
cartilhas teóricas na ilusão de que no setting
seja possível a previsibilidade, evitando assim ser surpreendido pelo novo,
pelo imprevisível. Já os não preguiçosos valorizam a produção de sentidos
nascidos do não-saber. Mais do que nunca, aqui parece pertinente a ideia de que
“analisar não seria um saber-fazer, mas um fazer-saber”.
Em suma, analisar
é retomar contato com a criança perdida, a ela oferecendo um instrumental simbólico
que lhe possibilitará a expressão. Assim, para os carentes de simbolização, a
psicanálise poderia colocar a criação simbólica no lugar da angústia. Esses são os objetivos da produção de sentido.
Produção que não deve conduzir a certezas, à ilusão de que há um saber fixo,
mas a produção de cadeias de sentidos, na qual a incerteza comanda as novas
buscas.
Seja no passado,
seja no presente, a noção de cura nos escritos freudianos deve ser considerada
como ressaltei na minha palestra anterior. Refiro-me à pertinente analogia
entre a cura psicanalítica e a cura do queijo, elaborada pelo saudoso colega
Fabio Herrmann (2000), na qual comenta que, “curado, um queijo torna-se
plenamente queijo daquela espécie”. Assim, enfatiza que a cura na análise é a
cura do desejo. Curado, diz Herrmann, o homem cuida do próprio desejo. Curado,
o homem habita-se, habita o desejo próprio, “não descura, não deixa de tomar
cuidado com ele”. Com isso,
aprendemos que quando a gente tenta curar algo ou
alguém, com critérios de uma outra coisa, de uma outra pessoa, de uma outra
cultura, ou simplesmente de outro grupo social, o nosso, por exemplo – gostaria
que meu paciente ficasse como eu imagino que sou –, o resultado pode ser
catastrófico: pode-se curar de menos, pode-se curar de mais, no sentido do
queijo, e pode-se curar errado, que é o pior de tudo, ou seja, dar uma direção
completamente alheia ao sentido do desejo (HERRMANN, 2000, p. 121).
Dentro dessa concepção de cura do
desejo, o CEPdePA traz uma importante contribuição. Como bem lembrou Lores
Pedro Meller, na abertura da jornada científica comemorativa dos 10 anos do
CEP, em 1994, da qual tive a honra de participar, “a psicanálise nasceu como ciência
promotora da emancipação do ser humano”.
Nos dias de hoje, comemorando os cem anos dos Escritos Técnicos de
Freud, o CEPdePA parece continuar dando provas de
vitalidade e da força do desejo, quando continua a promover diálogos e reflexões
que fortalecem a perspectiva libertadora da psicanálise.
[1]
Palavras na abertura da jornada comemorativa dos cem anos dos Escritos Técnicos
de Freud, promovida pelo CEPdePA em outubro de 2012.
[2]
Conflito entre as representações traumáticas sexuais intoleráveis e a
consciência recalcadora.
[3] Sergio
Paulo Rouanet. Fim das Utopias, O Globo,
agosto, 2012.
[4] Bauman,
Z. O mal-estar na pós-modernidade.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
[5]
Titulo de livro de Julia Kristeva, no qual ela aborda de modo interessante,
entre outras coisas, a redução do espaço psíquico, provocado por condições da
vida moderna.
[6] Gerando a criação de uma possível
interpretação-construção (inter: entre as duas fantasias). Isto faz pensar no simbolon
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