sábado, 23 de fevereiro de 2013


Psicanálise: práxis libertadora[1]
Fernando Rocha

Hoje estamos aqui para comemorar os cem anos dos Escritos Técnicos de Freud. Mas a esta comemoração podemos agregar outra: a entrada da obra freudiana para o domínio público. Fugindo ao restrito meio psicanalítico, a obra do mestre vienense passa a ser objeto de inúmeras traduções. Num interessante artigo publicado no jornal francês Le Monde, a historiadora e estudiosa da psicanálise Elisabeth Roudinesco lembra as disputas e lutas em torno da obra freudiana. Para ela, esta é uma oportunidade inédita para analisar as questões históricas e doutrinais dessa “nova batalha freudiana”, e dar voz aos tradutores.
É oportuno, na contemporaneidade – momento em que muitos questionam o valor da psicanálise –, ressaltarmos a importância de Freud. Importância que pode ser observada quando verificamos que, de forma parcial, sua obra foi traduzida em 60 línguas, e que traduções integrais, cronologicamente organizadas, foram realizadas em cinco idiomas: alemão, inglês, italiano, espanhol e japonês. No que tange às correspondências, estas não se encontram ainda totalmente traduzidas. A estimativa é que Freud tenha escrito 15 mil cartas, das quais 5 mil foram perdidas e 3 mil já foram publicadas e ou estão sendo traduzidas em várias línguas.
Roudinesco lembra que em todo o mundo a obra freudiana se tornou um “caso de escritores, estudiosos e historiadores”, possibilitando à psicanálise olhar para “fora do meio psicanalítico”.
No que concerne especificamente aos Escritos Técnicos, pode-se dizer que a evolução da técnica freudiana encontrou uma importante modificação realizada a partir de 1892-93, na qual  Freud abandona a catarse e a hipnose e passa a utilizar a chamada “coerção associativa”: método que consistia em fazer pressão com a mão sobre a fronte do paciente, sugerindo-lhe que pensasse em alguma coisa[2]. É a partir do método da coerção associativa que nasce o conceito de resistência, deixando como legado importantes repercussões, entre elas as associações livres – carregadas de significação inconsciente –, a interpretação e a transferência.
No que se refere ao descobrimento da transferência, aparece a neurose de transferência, assinalando o reconhecimento de que o analista estará não só na base da relação com seu paciente, mas na origem de toda a experiência.
Se é possível falarmos de uma evolução da técnica freudiana, temos de sublinhar dois momentos: no primeiro, a indicação técnica é tornar consciente o inconsciente, obedecendo, assim, uma lógica tópica; o segundo ocorre a partir do descobrimento da resistência, na qual se trata de analisar o que resiste a se desvelar, seguindo uma trajetória dinâmica.
Freud já havia assinalado, no Projeto para uma Psicologia Científica (1895), que o excesso de estimulação ultrapassava a capacidade de elaboração, exigindo que veículos de linguagem fossem criados a fim de servirem de receptáculo para essas quantidades.
A descoberta freudiana evoluiu da submissão da hipnose à possibilidade de transformação da subjetividade, resgatando a perspectiva crítica contida no mecanismo da transferência. Assim, Freud realiza uma mudança: de uma postura de submissão para uma perspectiva libertadora.
Mas, em nossa época, o que a psicanálise teria a dizer?
Vivemos fruto de uma contemporaneidade marcada pela existência de dispositivos e agenciamentos sociais que produzem e são produzidos por um narcisismo que encontra na ausência de Lei um dos seus sustentáculos. Permissiva, a sociedade gera a ilusão de que, num estado de gozo, o homem poderia ingressar no ilimitado.
Vivemos sob o manto de diversos paradoxos: o crescente fluxo de informações e a impotência para absorvê-las; o uso de novos e sofisticados equipamentos eletrônicos, que exige muito reflexo, confrontado com a reduzida reflexão; a crescente interatividade confrontada com o aumento da solidão.
Como escreveu Rouanet, “o mundo contemporâneo está cheio de amnésicos assim: os desmemoriados, que não se lembram de nada, e os memoriosos, que se lembram de tudo, exceto do essencial”[3].
Participamos de um mundo no qual predomina o descartável e o efêmero, no qual o homem de nosso tempo exime-se de qualquer compromisso com o longo prazo. Intolerante à espera, avesso a toda fixidez, o homem se move para chegar a lugar nenhum e, como lembra Bauman[4], num quase sem-rumo, “tropeça” acidentalmente em outros.  Assim, num momento em que se tenta apagar a figura do Outro, a não espera é louvada, a satisfação plena é cultuada, fortalecendo-se um narcisismo que sustenta o divórcio entre a Lei e a Cultura: a Cultura torna-se mais o locus do gozo do que da interdição.   
Assistimos, então, ao declínio lento e gradual da imagem do pai, da Lei do pai, cuja função é, justamente, marcar o sujeito com a inscrição de uma falta estruturante, instituindo limites e fixando lugares. Essas transformações produzem novas subjetividades.
Fenômenos como o psicossomático, as patologias do ato – tais como as compulsões, a delinquência, a toxicomania e a psicopatia –, as patologias que se expressam nos distúrbios em relação à imagem corporal – tais como a anorexia e a bulimia  –, ou ainda a melancolia, a síndrome do pânico, as chamadas perturbações narcísicas, os casos- limite ou borderlines, apresentam-se impondo novos desafios à Psicanálise.
Diante dessas “novas doenças da alma”[5], o que os Escritos Técnicos freudianos teriam para nos ensinar?
Freud não deixa de chamar a atenção para o fato de existirem outros tipos de conflitos que, estando fora do âmbito da simbolização, adquirem rumos diversos como possibilidade de descarga de energia. 
Diferentes das patologias que têm como parâmetro de definição diagnóstica o complexo de Édipo, as patologias atuais traduziriam uma problemática mais referida a questões de ordem narcísica. Embora não se possa afirmar que algumas dessas patologias contemporâneas estivessem ausentes em outras épocas (para alguns, a síndrome do pânico já havia sido descrita por Freud como neurose de angústia), o fato é que a incidência com que ocorrem é uma característica da nossa contemporaneidade. 
Essas novas patologias alma exigem que a clínica atual repense tipos de intervenções adequadas às situações nas quais os sistemas de simbolização, inclusive o da expressão verbal, mostram-se fragilizados e preteridos.
Talvez o que configure uma das singularidades do processo analítico seja a força e o poder que a palavra possui, podendo ser verificados inclusive no silêncio, silêncio que só faz sentido porque inserido na ordem simbólica.
No entanto, não se pode dizer que apenas a palavra simbólica seja garantia do processo de elaboração psíquica. Se verbalizar possibilita uma via de realização que não seja pelo ato, não assegura uma mudança psíquica. Neste sentido, somente a experiência analítica pode propiciar a transformação da compulsão à repetição em mudança psíquica.  
Na precariedade simbólica apresentada pela contemporaneidade, na qual as atuais patologias se desenvolvem, cabe mais ao analista ter uma maior participação nas construções de sentido em que, emprestando suas fantasias numa construção compartilhada, pode promover sentidos, já que a angústia pode ser o resultado de uma falta de representação.
Se não cabe ao analista ser um aconselhador, diante dos pacientes que apresentam carência na simbolização ele é desafiado a promover possibilidades de sentido a partir das próprias fantasias.
Podemos pensar que a escuta pode evocar um diálogo entre duas fantasias, instaurando um momento de criação[6]. Criação de palavras para dizer o que jamais foi dito. Não porque estivesse sob o regime do recalque, mas por não ter sido ainda nomeado. É o momento, portanto, de ingressarmos numa certa ordem de imprevisibilidade, de não-saber, conscientes de que para chegar ao saber devemos não só escutar a fantasia, mas ir além, tentando torná-la objeto de produção de sentido. Neste caso, interpretar é ir além da formalidade que o signo oferece, é poder buscar luz ao obscuro no paciente.
Só os analistas preguiçosos, ou seja, aqueles que hesitam em deixar em suspensão a teoria, seguem cartilhas teóricas na ilusão de que no setting seja possível a previsibilidade, evitando assim ser surpreendido pelo novo, pelo imprevisível. Já os não preguiçosos valorizam a produção de sentidos nascidos do não-saber. Mais do que nunca, aqui parece pertinente a ideia de que “analisar não seria um saber-fazer, mas um fazer-saber”.
Em suma, analisar é retomar contato com a criança perdida, a ela oferecendo um instrumental simbólico que lhe possibilitará a expressão. Assim, para os carentes de simbolização, a psicanálise poderia colocar a criação simbólica no lugar da angústia.  Esses são os objetivos da produção de sentido. Produção que não deve conduzir a certezas, à ilusão de que há um saber fixo, mas a produção de cadeias de sentidos, na qual a incerteza comanda as novas buscas.
Seja no passado, seja no presente, a noção de cura nos escritos freudianos deve ser considerada como ressaltei na minha palestra anterior. Refiro-me à pertinente analogia entre a cura psicanalítica e a cura do queijo, elaborada pelo saudoso colega Fabio Herrmann (2000), na qual comenta que, “curado, um queijo torna-se plenamente queijo daquela espécie”. Assim, enfatiza que a cura na análise é a cura do desejo. Curado, diz Herrmann, o homem cuida do próprio desejo. Curado, o homem habita-se, habita o desejo próprio, “não descura, não deixa de tomar cuidado com ele”. Com isso,
aprendemos que quando a gente tenta curar algo ou alguém, com critérios de uma outra coisa, de uma outra pessoa, de uma outra cultura, ou simplesmente de outro grupo social, o nosso, por exemplo – gostaria que meu paciente ficasse como eu imagino que sou –, o resultado pode ser catastrófico: pode-se curar de menos, pode-se curar de mais, no sentido do queijo, e pode-se curar errado, que é o pior de tudo, ou seja, dar uma direção completamente alheia ao sentido do desejo (HERRMANN, 2000, p. 121).

Dentro dessa concepção de cura do desejo, o CEPdePA traz uma importante contribuição. Como bem lembrou Lores Pedro Meller, na abertura da jornada científica comemorativa dos 10 anos do CEP, em 1994, da qual tive a honra de participar, “a psicanálise nasceu como ciência promotora da emancipação do ser humano”.  Nos dias de hoje, comemorando os cem anos dos Escritos Técnicos de Freud, o CEPdePA parece continuar dando provas de vitalidade e da força do desejo, quando continua a promover diálogos e reflexões que fortalecem a perspectiva libertadora da psicanálise.












[1] Palavras na abertura da jornada comemorativa dos cem anos dos Escritos Técnicos de Freud, promovida pelo CEPdePA em outubro de 2012.
[2] Conflito entre as representações traumáticas sexuais intoleráveis e a consciência recalcadora.
[3] Sergio Paulo Rouanet. Fim das Utopias, O Globo, agosto, 2012.
[4] Bauman, Z. O mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
[5] Titulo de livro de Julia Kristeva, no qual ela aborda de modo interessante, entre outras coisas, a redução do espaço psíquico, provocado por condições da vida moderna.
[6]  Gerando a criação de uma possível interpretação-construção (inter: entre as duas fantasias). Isto faz pensar no simbolon



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