sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

O ACESSO AO SENTIDO1


René Diatkine




Vou falar sobre a maneira como um recém-nascido, um bebê, dá sentido ao que está em torno dele, e ao que está nele, e como tenta dominar o que representa justamente este sentido. Com freqüência, na prática reeducativa ou educativa, quaisquer que sejam as posições filosóficas conscientes ou espontâneas de uns e de outros, se faz apelo a uma realidade exterior facilmente definida, que o ser humano, desde seu nascimento, deve aprender a conhecer, e, sobretudo, a designar. Esta visão é muito simplista e não corresponde ao que se passa. Se esta visão fosse utilizada para ajudar as crianças que seguem caminhos particulares, isto correria o risco de seguir um andamento mecanicista estéril.
Apenas há alguns anos sabemos que desde os primeiros dias de vida, o universo está longe de ser indiferente para o ser humano: este tem reações diferentes diante das pessoas de seu ambiente, reações que não são determinadas somente pelas necessidades físicas. As reações dos bebês em presença da mãe são diferentes daquelas diante de outras pessoas, e isto imediatamente. Em seguida tudo se complica e tudo o que vai se passar depende da experiência: a resposta às condutas de apelo do bebê provoca uma modulação dessas condutas de apelo que se diferenciam e se carregam de nuances. No entanto, a ausência de resposta provoca uma espécie de desligamento e de abatimento do bebê sobre ele próprio, reação sempre idêntica. Muito rapidamente, a criança responde de maneira diferente a certo número de sinais que se combinam. Temos o direito de perguntar a que se deve esta valorização de certos sinais.
É aí que uma das mais antigas hipóteses de Freud toma lugar: muito cedo aparece na criança a capacidade de reproduzir psiquicamente uma experiência de satisfação. Mas à época de Freud, a experiência de satisfação que servia de modelo se referia à satisfação das necessidades físicas. Conhecemos agora a existência de toda uma série de outros elementos estimulantes cujo desaparecimento coloca muito cedo em perigo a continuidade do sujeito.
A alucinação da experiência de satisfação, tanto como a alucinação daquilo que provoca esta experiência, encontra sua fonte no auto-erotismo, em um movimento muito mais contínuo que a satisfação da fome ou da sede. Há a construção do objeto, construção totalmente psíquica e que vem de dentro do sujeito. Pode-se ver como a criança maneja esta oposição entre o que é percebido e o que é representado. A alucinação da experiência de satisfação pode encontrar sua fonte na erogeneidade do corpo. Quem diz alucinação, diz projeção para o exterior do que se passa no interior do sujeito. Isto é, no meu ponto de vista, um dos elementos essenciais à construção do objeto. É a partir deste momento que o objeto é reconhecido como tal, que sua ausência é reconhecida como tal. A criança deseja apropriar-se das qualidades do objeto para suportar a sua ausência.
Desde o segundo semestre, a criança manifesta seu desagrado diante da ausência, e este desagrado carrega uma diferenciação de suas reações para com sua mãe e para com aquele ou aquela que não é sua mãe. O que é de uma importância extrema, é que a criança é capaz, a partir de uma experiência que não é um dado em si, de atribuir um lugar específico a diferentes personagens, comparáveis à sua mãe, mas diferenciados, e de maneira alguma intercambiáveis.
Na mesma época, ou seja, no segundo semestre da vida, surge um fato essencial aos olhos daqueles que se interessam pelo aparecimento da linguagem: é o reconhecimento do valor do “ícone”. Quando se mostra aos bebês de dez meses imagens, belas imagens – pois a qualidade do grafismo e da apresentação é muito importante -, vê-se esses bebês acariciar a imagem de um gato (por exemplo), acariciar de maneira seletiva a figura e não o fundo; não é o papel que interessa, mas a figuração. Este fenômeno nos surpreendeu muito, mas ele se repete e é inegável. Podemos constatar que, por seu comportamento, a criança mostra que não somente reconhece o valor do ícone, mas ela sabe que o ícone não é a coisa. Isto é fundamental porque isto precede o aparecimento dos primeiros elementos da linguagem.
Isto se passa ao mesmo tempo que a transformação dos balbucios. A criança se põe a imitar a melodia dos adultos que a cercam. É em torno desta idade que se distingue o jeito de falar do bebê, podemos já distinguir o jeito de falar de uma pequenina inglesa do de uma pequenina chinesa, é alguma coisa que, ao mesmo tempo, faz parte do psiquismo e dá sentido ao que é percebido do exterior.
Cabrejo estudou o funcionamento da linguagem associando-o à passagem da indicação (gestual) à designação do objeto ausente. Ora, a linguagem só aparece verdadeiramente quando a ausência é vivenciada e a necessidade de se identificar ao outro para obter o reaparecimento do objeto ausente é uma necessidade. Cabrejo remarca que para indicar, isto é, para manifestar um desejo que se refere a um objeto percebido, um único elemento é suficiente, o gesto. A criança exprime claramente o que quer, e este desejo é compreendido por aqueles que a cercam. A partir do momento em que se trata de designar um objeto ausente, isto necessita a organização de vários elementos; faz-se necessário que haja ao mesmo tempo a representação mental de qualquer coisa que não se encontra no campo perceptivo do sujeito e sua evocação por um mínimo de sintagmas.
Para mim, o aparecimento da linguagem não é somente destinado à comunicação – esta idéia me parece redutora -. Para mim, trata-se de uma elaboração psíquica infinitamente mais importante que a função de comunicação em si mesma.
Mostrou-se com freqüência que o desejo começa a partir do momento em que o objeto se oculta e torna-se frustrante. Eu acredito que, em todos os começos, a atividade alucinatória é uma atividade psíquica de ponte, ou seja, que ela permite ao sujeito sobreviver entre duas experiências de satisfação. A partir do momento em que os objetos são reconhecidos e identificados como tais, a partir do momento em que o objeto-mãe designa o elo que liga o sujeito a uma pessoa, e não a outra, esta definição mesma contêm a frustração maior. Pois esta definição provoca forçosamente limitações no tempo e no espaço. O que toma a maior importância, a partir deste momento, é a maneira como o sujeito vai ser capaz de elaborar esta frustração sem se desorganizar. É aqui que a possibilidade de representação torna-se o elemento essencial.
Esta elaboração se constrói em dois níveis: o primeiro é uma maneira de evocar um desejo imediato, ligado globalmente a uma via corporal. A outra é a evocação do objeto ausente, domínio que necessita uma organização no tempo do discurso. A salvaguarda de sua continuidade psíquica passa por este tipo de operação. Neste momento, a comunicação se faz entre um sujeito que tenta dominar um mundo exterior que ele construiu como fundamentalmente limitado e frustrante, e outras pessoas que não são abstratas, que investem o sujeito e reagem em função de sua própria história, de suas próprias angústias, e de seus próprios desejos face a ele, face ao que exprime o discurso nascente da criança.
Que entende a criança da linguagem do seu entorno? Ele entende duas ordens de discursos. Há a língua materna falada, língua bastante reduzida. Ainda que não se esteja mais no registro da indicação, é uma língua na qual há muitas convenções íntimas, e na qual a entonação e a proximidade corporal desempenham um papel importante. Para um grande número de crianças, há logo um contato com uma outra língua que chamarei de escrita-falada. Fora da língua corrente, língua da mãe, existe esta língua oral-escrita, que já tem a forma que tomará a língua escrita.
Muitas crianças encontram esta língua no decurso de instantes privilegiados, como por exemplo o momento da noite ou antes de adormecer, quando escutam contar uma história. Esta história que se conta às crianças para ajudá-las a entrar no sono, a se separar dos adultos, é uma história que já segue as regras do escrito. Estas crianças reconhecem rapidamente a diferença entre os dois registros. Outras, que não foram familiarizadas com esta língua da narração, só o conseguem muito dificilmente, ou de nenhuma maneira, pois não têm a prática. Ora, desde que a criança entra na escola, mesmo na maternal, ela vai se haver com essa língua particular, já estruturada como a própria língua. A partir do momento em que um ensino se dirige a um grupo de crianças, no cenário da escola, ele fala uma nova língua, diferente daquela que se fala na família. Se percebe que é a língua do domínio da ausência.
A fórmula que abre a maior parte dos contos exerce uma grande atração sobre as crianças: “Era uma vez” anuncia qualquer coisa que as crianças captam como um meio de elaborar a angústia de separação e elaborar as fantasias. Ora, esta língua veicula uma quantidade de representações angustiantes, às quais a criança é confrontada muito jovem. Nos bons casos, é com grande facilidade que ela toma posse dessa língua, a torna sua, e enquanto ouvinte, no início, capta as nuances, evitando a angústia.
O nível seguinte, também importante, é o das trocas por intermédio da linguagem, diretamente ligado ao afeto do sujeito no momento em que ele fala. Por exemplo: “Tenho fome, eu sofro, eu te amo”, exigindo mais ou menos rapidamente uma resposta daquele a quem se dirige. Este nível de trocas vai durar toda a vida.
O outro nível de linguagem é da ordem de uma elaboração que permite o manejo com as representações e as representações de afetos, sem que o sujeito viva a experiência traumática. Nos contos são evocadas as fantasias terrificantes de morte, de destruição. A estrutura mesma da língua permite sentir prazer na história, sem se sentir ameaçado, e a sentir prazer na repetição reasseguradora graças à estrutura do relato.
Quando uma professora de maternal diz simplesmente: “Agora vamos levantar e sair em silêncio”, esta fórmula não tem nada a ver com a língua oral-falada. É um enunciado que não se dirige pessoalmente a uma criança e que poderá ser escrito. Graças a este enunciado, as crianças de três anos param de chorar e começam a manter uma relação de um novo tipo com alguém que, falando no cenário da escola, se dirige mais ao seu “imaginário” do que à sua afetividade. Nos primeiros meses, em uma pequena classe de escola maternal, quando uma criança chora, é necessário tomá-la nos braços para acalmá-la. No final de alguns meses, outro tipo de relação se criou, não um outro tipo de relação social, mas uma relação que, graças a um trabalho mental, lhe permite elaborar a ausência (de sua mãe ou de uma relação única com a professora, que representa um substituto materno).
Nossa civilização é marcada pela importância do livro. Todas as formas do escrito, a começar pelo escrito-falado, permitem ao sujeito não estar, em todos os momentos, dependente do outro. Se não se leva em conta estes dois níveis, não se pode compreender as dificuldades que têm as crianças em se apropriar da língua oral e, mais tarde, da escrita. O escrito, portanto, não tem somente uma estrutura diferente da oral; ele tem também uma outra função. O que alguém é capaz de ler ou de escrever lhe permite afrontar as angústias mais terrificantes, continuando a se interessar pela leitura. Existem dois níveis de organização que persistem durante toda a vida, mas se queremos nos situar em uma dimensão histórica, percebemos que cada nível de funcionamento tem uma originalidade estrutural perfeitamente definida em relação à outra.

Tradução de Fernando Rocha

Nota:
Conheci o Prof. René Diatkine em Paris, no Centre Alfred Binet (Centro de atendimento de saúde mental de crianças e adolescentes do 13º bairro de Paris), onde ele foi meu mestre, supervisor e colega e onde trabalhei durante oito anos como coordenador de uma das sete equipes daquela instituição da qual ele foi um dos fundadores.
René Diatkine era psicanalista, membro da Société Psychanalytique de Paris. De família originária da Bielorússia, nasceu em Paris em 1918, onde faleceu em 1998. Na França deu um formidável impulso ao progresso da psiquiatria e da psicanálise da criança e do adulto, à compreensão da psicose, dedicando-se especialmente à linguagem e às atividades psíquicas da criança.

1 Este texto foi traduzido de uma publicação intitulada “Langages et activités psychiques de l´enfant avec René Diatkine”, coordenada por Madeleine Van Waeyenberghe. Paris: Ed Papyrus, 2004. Foi uma palestra realizada pelo Prof. Diatkine em 1987, em jornada científica consagrada às “Novas Aproximações da Linguagem”, organizada pelo Sindicato das Ortofonistas da região parisiense.




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