René Diatkine
Vou
falar sobre a maneira como um recém-nascido, um bebê, dá sentido
ao que está em torno dele, e ao que está nele, e como tenta dominar
o que representa justamente este sentido. Com freqüência, na
prática reeducativa ou educativa, quaisquer que sejam as posições
filosóficas conscientes ou espontâneas de uns e de outros, se faz
apelo a uma realidade exterior facilmente definida, que o ser humano,
desde seu nascimento, deve aprender a conhecer, e, sobretudo, a
designar. Esta visão é muito simplista e não corresponde ao que se
passa. Se esta visão fosse utilizada para ajudar as crianças que
seguem caminhos particulares, isto correria o risco de seguir um
andamento mecanicista estéril.
Apenas
há alguns anos sabemos que desde os primeiros dias de vida, o
universo está longe de ser indiferente para o ser humano: este tem
reações diferentes diante das pessoas de seu ambiente, reações
que não são determinadas somente pelas necessidades físicas. As
reações dos bebês em presença da mãe são diferentes daquelas
diante de outras pessoas, e isto imediatamente. Em seguida tudo se
complica e tudo o que vai se passar depende da experiência: a
resposta às condutas de apelo do bebê provoca uma modulação
dessas condutas de apelo que se diferenciam e se carregam de nuances.
No entanto, a ausência de resposta provoca uma espécie de
desligamento e de abatimento do bebê sobre ele próprio, reação
sempre idêntica. Muito rapidamente, a criança responde de maneira
diferente a certo número de sinais que se combinam. Temos o direito
de perguntar a que se deve esta valorização de certos sinais.
É aí
que uma das mais antigas hipóteses de Freud toma lugar: muito cedo
aparece na criança a capacidade de reproduzir psiquicamente uma
experiência de satisfação. Mas à época de Freud, a experiência
de satisfação que servia de modelo se referia à satisfação das
necessidades físicas. Conhecemos agora a existência de toda uma
série de outros elementos estimulantes cujo desaparecimento coloca
muito cedo em perigo a continuidade do sujeito.
A
alucinação da experiência de satisfação, tanto como a alucinação
daquilo que provoca esta experiência, encontra sua fonte no
auto-erotismo, em um movimento muito mais contínuo que a satisfação
da fome ou da sede. Há a construção do objeto, construção
totalmente psíquica e que vem de dentro do sujeito. Pode-se ver como
a criança maneja esta oposição entre o que é percebido e o que é
representado. A alucinação da experiência de satisfação pode
encontrar sua fonte na erogeneidade do corpo. Quem diz alucinação,
diz projeção para o exterior do que se passa no interior do
sujeito. Isto é, no meu ponto de vista, um dos elementos essenciais
à construção do objeto. É a partir deste momento que o objeto é
reconhecido como tal, que sua ausência é reconhecida como tal. A
criança deseja apropriar-se das qualidades do objeto para suportar a
sua ausência.
Desde o
segundo semestre, a criança manifesta seu desagrado diante da
ausência, e este desagrado carrega uma diferenciação de suas
reações para com sua mãe e para com aquele ou aquela que não é
sua mãe. O que é de uma importância extrema, é que a criança é
capaz, a partir de uma experiência que não é um dado em si, de
atribuir um lugar específico a diferentes personagens, comparáveis
à sua mãe, mas diferenciados, e de maneira alguma intercambiáveis.
Na mesma
época, ou seja, no segundo semestre da vida, surge um fato essencial
aos olhos daqueles que se interessam pelo aparecimento da linguagem:
é o reconhecimento do valor do “ícone”. Quando se mostra aos
bebês de dez meses imagens, belas imagens – pois a qualidade do
grafismo e da apresentação é muito importante -, vê-se esses
bebês acariciar a imagem de um gato (por exemplo), acariciar de
maneira seletiva a figura e não o fundo; não é o papel que
interessa, mas a figuração. Este fenômeno nos surpreendeu muito,
mas ele se repete e é inegável. Podemos constatar que, por seu
comportamento, a criança mostra que não somente reconhece o valor
do ícone, mas ela sabe que o ícone não é a coisa. Isto é
fundamental porque isto precede o aparecimento dos primeiros
elementos da linguagem.
Isto se
passa ao mesmo tempo que a transformação dos balbucios. A criança
se põe a imitar a melodia dos adultos que a cercam. É em torno
desta idade que se distingue o jeito de falar do bebê, podemos já
distinguir o jeito de falar de uma pequenina inglesa do de uma
pequenina chinesa, é alguma coisa que, ao mesmo tempo, faz parte do
psiquismo e dá sentido ao que é percebido do exterior.
Cabrejo
estudou o funcionamento da linguagem associando-o à passagem da
indicação (gestual) à designação do objeto ausente. Ora, a
linguagem só aparece verdadeiramente quando a ausência é
vivenciada e a necessidade de se identificar ao outro para obter o
reaparecimento do objeto ausente é uma necessidade. Cabrejo remarca
que para indicar, isto é, para manifestar um desejo que se refere a
um objeto percebido, um único elemento é suficiente, o gesto. A
criança exprime claramente o que quer, e este desejo é compreendido
por aqueles que a cercam. A partir do momento em que se trata de
designar um objeto ausente, isto necessita a organização de vários
elementos; faz-se necessário que haja ao mesmo tempo a representação
mental de qualquer coisa que não se encontra no campo perceptivo do
sujeito e sua evocação por um mínimo de sintagmas.
Para
mim, o aparecimento da linguagem não é somente destinado à
comunicação – esta idéia me parece redutora -. Para mim,
trata-se de uma elaboração psíquica infinitamente mais importante
que a função de comunicação em si mesma.
Mostrou-se
com freqüência que o desejo começa a partir do momento em que o
objeto se oculta e torna-se frustrante. Eu acredito que, em todos os
começos, a atividade alucinatória é uma atividade psíquica de
ponte, ou seja, que ela permite ao sujeito sobreviver entre duas
experiências de satisfação. A partir do momento em que os objetos
são reconhecidos e identificados como tais, a partir do momento em
que o objeto-mãe designa o elo que liga o sujeito a uma pessoa, e
não a outra, esta definição mesma contêm a frustração maior.
Pois esta definição provoca forçosamente limitações no tempo e
no espaço. O que toma a maior importância, a partir deste momento,
é a maneira como o sujeito vai ser capaz de elaborar esta frustração
sem se desorganizar. É aqui que a possibilidade de representação
torna-se o elemento essencial.
Esta
elaboração se constrói em dois níveis: o primeiro é uma maneira
de evocar um desejo imediato, ligado globalmente a uma via corporal.
A outra é a evocação do objeto ausente, domínio que necessita uma
organização no tempo do discurso. A salvaguarda de sua continuidade
psíquica passa por este tipo de operação. Neste momento, a
comunicação se faz entre um sujeito que tenta dominar um mundo
exterior que ele construiu como fundamentalmente limitado e
frustrante, e outras pessoas que não são abstratas, que investem o
sujeito e reagem em função de sua própria história, de suas
próprias angústias, e de seus próprios desejos face a ele, face ao
que exprime o discurso nascente da criança.
Que
entende a criança da linguagem do seu entorno? Ele entende duas
ordens de discursos. Há a língua materna falada, língua bastante
reduzida. Ainda que não se esteja mais no registro da indicação, é
uma língua na qual há muitas convenções íntimas, e na qual a
entonação e a proximidade corporal desempenham um papel importante.
Para um grande número de crianças, há logo um contato com uma
outra língua que chamarei de escrita-falada. Fora da língua
corrente, língua da mãe, existe esta língua oral-escrita, que já
tem a forma que tomará a língua escrita.
Muitas
crianças encontram esta língua no decurso de instantes
privilegiados, como por exemplo o momento da noite ou antes de
adormecer, quando escutam contar uma história. Esta história que se
conta às crianças para ajudá-las a entrar no sono, a se separar
dos adultos, é uma história que já segue as regras do escrito.
Estas crianças reconhecem rapidamente a diferença entre os dois
registros. Outras, que não foram familiarizadas com esta língua da
narração, só o conseguem muito dificilmente, ou de nenhuma
maneira, pois não têm a prática. Ora, desde que a criança entra
na escola, mesmo na maternal, ela vai se haver com essa língua
particular, já estruturada como a própria língua. A partir do
momento em que um ensino se dirige a um grupo de crianças, no
cenário da escola, ele fala uma nova língua, diferente daquela que
se fala na família. Se percebe que é a língua do domínio da
ausência.
A
fórmula que abre a maior parte dos contos exerce uma grande atração
sobre as crianças: “Era uma vez” anuncia qualquer coisa que as
crianças captam como um meio de elaborar a angústia de separação
e elaborar as fantasias. Ora, esta língua veicula uma quantidade de
representações angustiantes, às quais a criança é confrontada
muito jovem. Nos bons casos, é com grande facilidade que ela toma
posse dessa língua, a torna sua, e enquanto ouvinte, no início,
capta as nuances, evitando a angústia.
O nível
seguinte, também importante, é o das trocas por intermédio da
linguagem, diretamente ligado ao afeto do sujeito no momento em que
ele fala. Por exemplo: “Tenho fome, eu sofro, eu te amo”,
exigindo mais ou menos rapidamente uma resposta daquele a quem se
dirige. Este nível de trocas vai durar toda a vida.
O outro
nível de linguagem é da ordem de uma elaboração que permite o
manejo com as representações e as representações de afetos, sem
que o sujeito viva a experiência traumática. Nos contos são
evocadas as fantasias terrificantes de morte, de destruição. A
estrutura mesma da língua permite sentir prazer na história, sem se
sentir ameaçado, e a sentir prazer na repetição reasseguradora
graças à estrutura do relato.
Quando
uma professora de maternal diz simplesmente: “Agora vamos levantar
e sair em silêncio”, esta fórmula não tem nada a ver com a
língua oral-falada. É um enunciado que não se dirige pessoalmente
a uma criança e que poderá ser escrito. Graças a este enunciado,
as crianças de três anos param de chorar e começam a manter uma
relação de um novo tipo com alguém que, falando no cenário da
escola, se dirige mais ao seu “imaginário” do que à sua
afetividade. Nos primeiros meses, em uma pequena classe de escola
maternal, quando uma criança chora, é necessário tomá-la nos
braços para acalmá-la. No final de alguns meses, outro tipo de
relação se criou, não um outro tipo de relação social, mas uma
relação que, graças a um trabalho mental, lhe permite elaborar a
ausência (de sua mãe ou de uma relação única com a professora,
que representa um substituto materno).
Nossa
civilização é marcada pela importância do livro. Todas as formas
do escrito, a começar pelo escrito-falado, permitem ao sujeito não
estar, em todos os momentos, dependente do outro. Se não se leva em
conta estes dois níveis, não se pode compreender as dificuldades
que têm as crianças em se apropriar da língua oral e, mais tarde,
da escrita. O escrito, portanto, não tem somente uma estrutura
diferente da oral; ele tem também uma outra função. O que alguém
é capaz de ler ou de escrever lhe permite afrontar as angústias
mais terrificantes, continuando a se interessar pela leitura.
Existem dois níveis de organização que persistem durante toda a
vida, mas se queremos nos situar em uma dimensão histórica,
percebemos que cada nível de funcionamento tem uma originalidade
estrutural perfeitamente definida em relação à outra.
Tradução
de Fernando Rocha
Nota:
Conheci o Prof. René Diatkine em Paris, no Centre Alfred Binet (Centro de atendimento de saúde mental de crianças e adolescentes do 13º bairro de Paris), onde ele foi meu mestre, supervisor e colega e onde trabalhei durante oito anos como coordenador de uma das sete equipes daquela instituição da qual ele foi um dos fundadores.
Conheci o Prof. René Diatkine em Paris, no Centre Alfred Binet (Centro de atendimento de saúde mental de crianças e adolescentes do 13º bairro de Paris), onde ele foi meu mestre, supervisor e colega e onde trabalhei durante oito anos como coordenador de uma das sete equipes daquela instituição da qual ele foi um dos fundadores.
René
Diatkine era psicanalista, membro da Société Psychanalytique de
Paris. De família originária da Bielorússia, nasceu em Paris em
1918, onde faleceu em 1998. Na França deu um formidável impulso ao
progresso da psiquiatria e da psicanálise da criança e do adulto, à
compreensão da psicose, dedicando-se
especialmente à linguagem e às atividades psíquicas da criança.
1
Este texto foi traduzido de uma publicação intitulada
“Langages et activités psychiques de l´enfant avec René
Diatkine”, coordenada por Madeleine Van Waeyenberghe. Paris: Ed
Papyrus, 2004. Foi uma palestra realizada pelo Prof. Diatkine em
1987, em jornada científica consagrada às “Novas Aproximações
da Linguagem”, organizada pelo Sindicato das Ortofonistas da
região parisiense.
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